Como as hidrelétricas estão acabando com os peixes no Rio Madeira

De acordo com cientistas, as centrais hidrelétricas da Bacia do Madeira, afetaram o ciclo hidrológico devido a oscilações irregulares.

Foto: Bruno Kelly

Ao amanhecer, vinte pescadores receberam a informação de que peixes matrinxãs estavam descendo o rio Aripuanã em direção ao Madeira, o maior afluente da Bacia Amazônica. Era a oportunidade de interromper uma semana de pesca improdutiva em Novo Aripuanã, município do sul do Amazonas, para se dividirem em três canoas de madeira e irem para o rio. Deveria ser simples: só esperar o cardume, que nada na superfície, e lançar a rede.

Às 11 horas da manhã, sem sinal dos matrinxãs (Brycon melanopterus), metade dos pescadores desistiu e, na canoa maior, retornaram à cidade. Um pescador observava tudo desde as margens daquele encontro de águas brancas e pretas no Médio Madeira, ao mesmo tempo em que, logo à sua frente, vários botos cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e tucuxis (Sotalia fluviatilis) surgiam para respirar enquanto caçavam peixes. “Talvez o cardume nem chegue aqui, porque o rio está muito seco”, diz Raimundo Dias.

No final de abril, a bacia do Madeira estava em transição da estação chuvosa para a vazante. Com o nível da água ainda alto, os peixes se agrupam em cardumes e migram dos lagos, afluentes e igarapés para se alimentar de frutos, sementes e invertebrados terrestres que caem nos igapós e nas várzeas do Madeira.

No entanto, há uma década, mudanças abruptas e frequentes nos níveis dos rios têm desorientado os padrões migratórios. Cientistas e pescadores atribuem esses picos irregulares às usinas hidrelétricas do Madeira, duas grandes unidades instaladas no estado vizinho de Rondônia.

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 Foto: Bruno Kelly

Nascido e criado em Novo Aripuanã, Dias tem 50 anos e sempre viveu da pesca, mas diz ele que manter a atividade tem sido cada vez mais difícil devido à redução das capturas no Madeira, o rio mais diversificado da Amazônia, com 1.406 espécies de peixes catalogadas. “Havia muita fartura, não tinha como não pegar peixe aqui. De 10 anos para cá, a pesca diminuiu. Essa hidrelétrica acabou com a gente”, diz o pescador.

A usina de Santo Antônio, em Porto Velho, entrou em operação em março de 2012 e tem a quinta maior capacidade energética do Brasil, e a de Jirau, instalada 115 quilômetros rio acima, opera desde setembro de 2013; é a quarta maior do país.

De acordo com Dias, as espécies mais afetadas pelas hidrelétricas são as mais consumidas localmente: pacu (Mylossoma), aracu (Leporinus fasciatus), sardinha (Triportheus auritus, T. angulatus), matrinxã (Brycon) e jaraqui (Semaprochilodus insignis, S. taeniurus). Espécies de peixes de alto valor comercializadas para as grandes cidades, como os bagres migratórios dourada (Brachyplatystoma rousseauxii) e piramutaba (B. vaillantii), também desapareceram.

Essa escassez tem impacto não só no comércio, mas também na alimentação dos moradores de Novo Aripuanã. O peixe, principal fonte de proteína da população ribeirinha da Amazônia, encareceu nos mercados e restaurantes. “A gente vendia um punhado de matrinxãs por cinco reais. Agora, custa até 40 reais”, diz Dias.

Vídeo: Reprodução/YouTube – Mongabay Brasil

Um rio imprevisível

Em Humaitá, município na divisa com Rondônia, a produtividade pesqueira é fortemente influenciada pela sazonalidade. Quando o rio seca, muitas espécies vêm do Baixo Amazonas, entram no Madeira pela foz e nadam rio acima até o rio de águas brancas, onde se reproduzem.

No entanto, o pescador José Pessoa, de 58 anos, diz que essa migração foi prejudicada porque o rio perdeu a correnteza após as barragens. “O peixe precisa de corredeiras para fazer a piracema”, explica, referindo-se ao período de reprodução. “Se não encontra no Madeira, ele pega o Amazonas, nada até o Solimões e vai embora. Aqui, a gente acaba não tendo nada.”

A pesca artesanal é também afetada pela crise climática, que intensifica os fenômenos meteorológicos. Em outubro de 2023, o Madeira sofreu a pior seca da história, quando atingiu 1,10 metro de profundidade, influenciado pelo El Niño e pelo aquecimento do Oceano Atlântico Norte. O Madeira baixou quase três metros em 15 dias, em junho de 2024, e Rondônia decretou estado de alerta para a seca.

Na comunidade de Paraisinho, localizada 10 km ao norte de Humaitá, a pesca se tornou ‘quase inexistente’, segundo João Mendonça, presidente da associação de agricultores locais, que também representa os pescadores. A comunidade se sustenta graças à agricultura de várzea, cuja produção é adquirida por programas governamentais de alimentação.

As barragens adotam o modelo a fio d’água, que retém menos água em seu reservatório, mas ainda assim afeta a hidrologia do Madeira. Depois de analisar os dados de descarga de três estações hidrológicas, os cientistas descobriram que “as operações da barragem aumentaram significativamente a variabilidade do fluxo diário e subdiário”.

Os cientistas mediram isso monitorando mudanças repentinas no fluxo do rio — ou eventos de ‘reversão’, as mudanças repentinas de um período de aumento para um período de queda dos níveis, ou vice-versa, em dois dias consecutivos. Esse evento quase dobrou (94%) na estação de Porto Velho, 5 km a jusante da barragem de Santo Antônio. Em Humaitá, a 255 km dessa usina, o aumento foi atenuado (13%), mas ainda significativo, segundo os pesquisadores, que atribuem os números às oscilações na demanda de energia.

O peixe sabe que precisa sair das planícies de inundação, florestas e lagos alagados e nadar até o rio principal quando o nível da água começa a subir diária e gradualmente, diz Doria. “Se essa cheia e seca acontecer, o peixe nem sai do afluente. Ele se perde. Fisiologicamente, há um descontrole.”

Barreiras para a obtenção de peixes saudáveis

Os moradores de Humaitá estavam acostumados com períodos bem definidos para a pesca. “Os peixes que a gente mais esperava na cheia eram o jaraqui e a matrinxã. Na seca, era o pintado, o pacu e o curimatã”, diz Mendonça. “A gente pegava em grande quantidade. Hoje, não dá para contar com isso”.

A dinâmica dos peixes está intimamente ligada à disponibilidade de água na bacia, segundo Marcelo dos Anjos, coordenador do Laboratório de Ictiologia e Ordenamento Pesqueiro do Vale do Rio Madeira, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Segundo ele, essa perda de conectividade está ligada a um conjunto de fatores: hidrelétricas, desmatamento, assoreamento dos rios, mineração de ouro, assentamentos e expansão do agronegócio.

Samuel de Moraes, presidente da associação de pescadores de Humaitá, observou que os ribeirinhos do Madeira não podem mais se planejar de acordo com a dinâmica natural do ambiente. 

Além das mudanças na vazão do rio, os peixes também sofrem com a má qualidade da água, que vem caindo no Madeira, de acordo com Adriano Nobre, biólogo da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). “As alterações antrópicas [feitas pelo homem] afetam diretamente a qualidade da água”, diz Nobre. “As mudanças no regime hidrológico feitas por hidrelétricas, a presença de mineração, o desmatamento, entre outros fatores, têm influência sobre a manutenção da vida aquática.

Em abril, pesquisadores da UEA começaram a desenvolver o primeiro Índice de Qualidade da Água (IQA) para um rio de águas brancas na Amazônia, para entender a saúde do Madeira. Em março, o grupo lançou o primeiro IQA para a Bacia Amazônica, desenvolvido para rios de águas pretas.

Os investigadores da UEA navegaram quase 800 km no Rio Madeira para avaliar o seu WQI; os resultados ainda não foram divulgados.

Foto: Bruno Kelly

A pesca em crise

No mercado local de Humaitá, Osvaldo de Araújo limpava branquinhas em sua banca enquanto relembrava a época em que pescava no Lago de Três Casas, 45 km rio abaixo. “Era tanto peixe que não dava para aguentar”, diz Araújo, um peixeiro de 63 anos. “A gente pegava qualquer espécie que quisesse.”

Araújo costumava pegar até meia tonelada de peixe em cinco dias em sua canoa, mas diz que hoje um pescador pode levar pelo menos 10 dias para pegar 100 quilos. “Nesse mercado, se não fosse o peixe de viveiro, essas bancas estariam vazias”, diz ele.

Houve uma redução de 39%, de 267 para 163 toneladas, na média anual do desembarque de peixes em Humaitá, segundo estudo da Ufam, comparando os períodos antes (2002-10) e depois (2012-16) das barragens. As espécies mais impactadas foram branquinha (Curimata inornata), pirapitinga (Piaractus brachypomus), tucunaré (Cichia), curimatã (Prochilodus lineatus), jaraqui e pacu. 

“Essas espécies são muito utilizadas na culinária local, principalmente entre os ribeirinhos, e também representam grande parte do esforço de pesca dessa população para o comércio regional”, diz o biólogo Rogério Fonseca, coautor do artigo e coordenador do Laboratório de Interações Fauna e Floresta da Ufam.

No período analisado, os anos mais produtivos ocorreram antes da entrada em operação das hidrelétricas: 2002 (294 toneladas), 2006 (350) e 2011 (407). Já os piores desembarques de peixes aconteceram após as barragens: 2014 (158), 2015 (94) e 2017 (101). “Hoje, não estamos mais chegando a 100 toneladas”, diz Moraes.

A associação de Humaitá tem cerca de 3.700 pescadores. O impacto das barragens “representa uma perda de aproximadamente 1,8 milhão de reais por ano para a atividade pesqueira em Humaitá”, segundo os pesquisadores.

Outro estudo recente concluiu que cinco pontos de pesca tradicionais se tornaram improdutivos. Há também locais com forte declínio nas capturas. No Córrego Beem, antes o mais produtivo, a captura caiu 99%, de 164 toneladas para 1,3. No Lago Três Casas, a redução foi de um terço, de 4,2 para 2,8 toneladas. Os pescadores precisaram buscar lugares mais distantes e passaram a pescar em 25 novos locais, segundo os pesquisadores. Em cada viagem de pesca, os ribeirinhos adquirem combustível, gelo, contratam funcionários e compram alimentos para o tempo no rio. 

Em 2013, mais de 1.500 pescadores de Humaitá entraram na Justiça contra as empresas proprietárias das usinas, com base em estudos que atribuíam às barragens impactos sobre a pesca e o pescado. As ações pediam danos morais e patrimoniais.

No entanto, o juiz de Humaitá considerou que os transtornos aos pescadores começaram durante a construção das usinas, em 2007, e decidiu que as ações estavam prescritas porque o prazo já havia passado. Os pescadores recorreram da sentença, e os processos estão agora no Tribunal de Justiça do Amazonas.

Foto: Bruno Kelly

Uma tradição em risco

Numa tarde de sexta-feira, muitas caixas cheias de jaraquis chegam ao mercado local de Manicoré, um município 355 km a jusante de Humaitá. “Este ano, esperávamos uma produção melhor, mas só agora esse peixe está chegando”, diz Ancelmo de Menezes, um pescador de 59 anos. Antes das barragens, ele conta que costumava capturar peixes em maior quantidade e diversidade. “Era matrinxã, era tudo. Agora, como vocês podem ver, só tem esse peixe aqui.”

“As espécies de peixes mais abundantes ficaram muito escassas”, diz Antônio Veiga, presidente da associação de pescadores de Manicoré. Para ele, o declínio só não foi maior porque Manicoré é cercada por cinco grandes afluentes do Rio Madeira, onde os lagos têm boa produtividade.

Segundo Veiga, que está à frente da associação há 25 anos, não houve nenhuma audiência ou consulta pública sobre as usinas hidrelétricas na região. “Não tínhamos conhecimento de nada de bom ou ruim que ela poderia trazer para o nosso município. Elas foram instaladas em Rondônia, mas o impacto veio para o Amazonas”, diz.

Em Manicoré, os transtornos no rio e nos peixes fizeram com que muitos pescadores desistissem e passassem a exercer outras atividades. Alguns começaram a garimpar ouro no curso principal do Madeira, o que também causa muitos danos ao rio, acrescentou Veiga, mas essa atividade ilegal está diminuindo após batidas da Polícia Federal.

Em setembro de 2023, os agentes destruíram 302 balsas e dragas de garimpo espalhadas entre Manicoré e Autazes. Em maio de 2023, 86 embarcações foram desativadas na região de Humaitá.

Um futuro crítico

No final de junho, os pescadores de Novo Aripuanã ainda estavam surpresos com a ausência de cardumes de matrinxã. “Até agora, eles não desceram”, diz Allan de Barros, presidente da associação de pescadores da cidade. Esse é um exemplo da incerteza da atividade pesqueira causada pelo desequilíbrio do Madeira.

“Consumíamos de 100 a 150 toneladas de peixe por ano no município e exportávamos mais de 500 toneladas para Porto Velho e Manaus”, diz Barros. “Hoje, não pegamos nem o suficiente para atender a demanda da cidade. É um fenômeno fora do normal”.

Em Novo Aripuanã, a piramutaba subia o Madeira até três vezes por ano, mas, desde a instalação das barragens, “nunca mais vimos um cardume em nosso rio”, diz Barros. Ele também observa que as espécies de bagres diminuíram de tamanho: o filhote (Brachyplatystoma filamentosum) chegava a 80 kg e a dourada, a 40 kg, mas hoje não passam, respectivamente, de 10 kg e 6 kg.

Em meio a esse contexto, o número de pescadores ativos na associação caiu quase pela metade. “Os peixes estão longe e a despesa é enorme”, diz Barros. “A cidade não tem fábrica de gelo ou subsídios para diesel e gasolina. Não temos uma câmara fria para armazenar o peixe, assim poderíamos vendê-lo mais barato na baixa temporada. Como o pescador irá tão longe para pegar esse peixe e vendê-lo por um preço justo?”

Os pescadores de Novo Aripuanã ainda não entraram na Justiça para serem reconhecidos como atingidos pelas barragens. Mas Barros diz que a melhor compensação seria um repasse contínuo de recursos, por exemplo, via royalties ou fundo de apoio, para que o município pudesse investir na piscicultura artesanal, a fim de atender às demandas dos cidadãos e ter recursos emergenciais para mitigar eventos extremos.

No encontro dos rios Madeira e Aripuanã, Raimundo Dias diz à Mongabay que a seca histórica de 2023 também contribuiu para o ano de pesca improdutiva na bacia do Madeira. Como resultado, os preços de outros tipos de alimentos também subiram. Com o rio secando rapidamente outra vez, dias espera outra época difícil. “Se continuar secando assim até agosto ou setembro, teremos uma crise muito grande aqui”.

Kevin Damasio e Bruno Kelly juntaram-se à expedição ao Rio Madeira com o apoio da Mongabay e da Ambiental Media.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Kevin Damasio, com fotos de Bruno Kelly.

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