A vida social do tucumã-tucum

De um modo ou de outro, não se pode negar que o tucum ocupa lugar fulcral no viver e no comer dessas bandas do Norte brasileiro, particularmente das comunidades rurais que compõem essas territorialidades amazônicas.

O tucumã (Astrocaryum vulgare), ou tucum, como é conhecido pelos caboclos e caboclas que povoam a Amazônia Atlântica paraense, é o fruto da palmeira chamada por aqui de tucunzeira, a qual pode alcançar até dez metros de altura, cujos caules e folhas são tomados por espinhos e produz cachos com numerosos tucuns de formato ovoide.

Segundo dona Ana Rizete, que é nativa da comunidade de Araí, em Augusto Corrêa, nordeste paraense, mas que vive em Ananindeua, região metropolitana de Belém há mais de trinta anos, existem dois tipos de tucum: o vermelho e o cará. Este último, diferente do primeiro, é de cor amarela e de sabor inconfundível, segundo dona Ana, é mais doce que o vermelho e também mais apreciado e mais raro.

De um modo ou de outro, não se pode negar que o tucum ocupa lugar fulcral no viver e no comer dessas bandas do Norte brasileiro, particularmente das comunidades rurais que compõem essas territorialidades amazônicas.

Foto: Miguel Picanço/Arquivo pessoal

O termo tucum “[…] deriva do idioma tupi e significa “agulha para costura”. A espécie recebe esse nome porque os indígenas brasileiros utilizavam seus espinhos para costurar. (PINHEIRO, 2021).

O tucumã se destaca entre as frutas amazônicas pelo sabor inconfundível, pela tonalidade que por ser tão amarelada chega a se aproximar da cor vermelha, embelezando não apenas as paisagens das florestas da Amazônia Atlântica e as estradas que dão aceso às comunidades, como também as feiras e as mesas amazônicas. Aliás, além de ser uma belezura, o tucumã é uma delícia e por isso mesmo dá corpo a um vasto repertório alimentar, conforme apontado pelo portalamazonia.com:

[…] com polpa grudenta e fibrosa muito popular na região Norte do país. Podendo ser encontrada de várias formas na culinária, como em saladas, em tapiocas, no famoso sanduíche típico de Manaus, o x-caboquinho ou in natura, o tucumã também é possível fazer sucos, geleias, doces e vitaminas.” (https://portalamazonia.com, 2021).

Torna-se importante frisar que, dentre as comidas que derivam do tucumã, parece que, para os manauaras, o x-caboquinho (conforme mostrado na imagem abaixo), constitui-se naquela que mais agrada. Em Manaus, a presença e importância dessa iguaria é tamanha que, em 2019, a Câmara de vereadores aprovou o Projeto que outorgou ao sanduíche amazônico o título de Patrimônio Cultural e Imaterial daquela cidade.

Foto: Ana Graziela Maia

Conforme matéria publicada no portalamazonia.com, a feitura do x-caboquinho requer os seguintes ingredientes:

  • Lascas de tucumã
  • Queijo coalho
  • Banana pacovã madura
  • Manteiga.

E o modo de fazê-lo se dá da seguinte forma:

  • Frite as fatias de banana pacovã numa frigideira.
  • Aqueça e derreta um pouco fatias de queijo coalho.
  • Doure o pão na frigideira com manteiga
  • Abra o pão e colocar queijo, banana pacovã e lascas de tucumã.

Dito isso, importa apontar que, assim como em Manaus, nas comunidades rurais e quiçá nas cidades da Amazônia Atlântica, o tucumã, ou melhor, o tucum, como é carinhosamente chamado por essas bandas do Norte brasileiro, foi e continua a ser apreciado de diferentes maneiras, dada a sua versatilidade alimentar, conforme me contou dona Ana Rizete:

Pra mim, o tucum ou tucumã, no nosso interior nos conhecemos como tucum, é um dos alimentos mais completos de nossa região. Antigamente, nós matávamos a fome com ele. E dele se aproveitava de tudo. Começando pela árvore que servia de esteio, que as pessoas tiravam para levantar casas, ranchos e pra fazer cercas. (Conversa, via whatsapp, com Ana Rizete, em janeiro de 2022.)

A expressão antigamente sinalizada na narrativa de dona Ana refere-se às décadas de 1970 a 1980, tempo em que ela, ainda menina, habitava na comunidade de Araí, lugar no qual, o tucum ocupava lugar privilegiado no território do comer e do viver daquela gente:

O tucum, era muito proveitoso. Aproveitávamos a partir do momento que saía o cacho, ainda verde. Cortávamos os tucuns e tomávamos a água contida dentro deles. A água do tucum era muito apreciada, principalmente pelas crianças. Lembro que, na época, cortávamos o cacho e ficávamos sentados na beira do caminho e ali tomávamos a água de tucum. Antes de amadurecer, também partíamos o tucum para comer a polpa contida dentro do tucum. Na época, chamávamos de “catarro do tucum”, muito gostoso, por sinal. (Conversa, via whatsapp, com Ana Rizete, em janeiro de 2022.)

Mas, como diria dona Ana, antigamente os atravessamentos do tucum na vida dos araienses não parava por aí, pois, segunda ela: “depois de maduro apanhávamos o tucum e o comíamos com farinha de mandioca ou com mingau de farinha. Agente tomava o mingau acompanhado do tucum. “Assim como mostra a imagem abaixo: 

Ainda, segundo dona Ana, em Araí, os tucuns eram consumidos após serem colhidos logo após se desprenderem do cacho, já amolecidos, portanto, próprios ao consumo, ou os frutos eram colhidos ainda verdes e amolecidos em casa. Esse processo de amolecimento “doméstico” se dava de duas maneiras: empalhado ou enterrado. O tucum empalhado, conforme me contou dona Ana, dava-se da seguinte maneira:

Forrava-se um paneiro com folhas de guarumã, depois de todo forrado colocávamos o tucum, dentro do paneiro. Depois disso, fechávamos o paneiro e deixávamos em um canto da casa. Uma semana depois abria-se o paneiro e o fruto já estava pronto para o consumo.

Por outro lado, a outra maneira de amolecer os tucuns tinha como finalidade deixar os frutos próprios para fazer uma iguaria singular, a saber, o vinho de tucum. Para tanto, o fruto precisa ficar vinhoso.

Então, além de empalhar, a gente amolecia o tucum de outro jeito que chamávamos de tucum vinhoso. Para isso, enterrávamos os tucuns, ou seja, nós cavávamos um buraco no quintal e dentro dele colocávamos os tucuns e fechávamos o buraco. Depois de uma semana mais ou menos podíamos desenterrar que o fruto já estava vinhoso, pronto para fazer o vinho.

Importa saber que o tucum se encontra vinhoso quando ele está em um estado inicial de apodrecimento, estado próprio para a feitura do vinho, o qual se fazia assim:

Raspava-se a fibra do fruto com uma colher, inclusive com a casca. Depois, colocava-se em uma vasilha, como um alguidar, com um pouco de água. E com as próprias mãos ia-se amassado as fibras até que a polpa se separasse do caroço e do bagaço, como chamávamos. Depois desse processo, colocava-se mais água, coava-se em uma peneira, para posteriormente adoçá-lo com açúcar, a gosto. Pronto, o vinha estava pronto e era degustado com farinha de mandioca.

Segundo dona Ana, naquele tempo, na comunidade de Araí, morava uma senhora, a qual era uma exímia conhecedora do mundo-vida (INGOD, 2015) do tucumã, uma guardiã do saber fazer as iguarias que desse fruto derivam. Dona Ana se refere à saudosa tia Macina, a qual “[…] sabia onde tinha tucum carnudo, doce, onde tinha tucum bom ou não. Esses processos de empalhar e enterrar o fruto eu aprendi com ela, vi ela fazer muitas vezes. Ela era a maior conhecedora de tucumã do nosso lugar”, afirmou dona Ana.

Afora isso, faz-se necessário frisar que em outrora, em Araí, o tucumã alimentava humanos e não humanos, pois, conforme me contou dona Ana, o fruto servia de ração para os animais: galinhas, patos, porcos. Naquela época, era comum as mulheres de Araí no final da tardese sentarem em suas portas com uma cuia na coxa cortando com uma faca a polpa dos tucuns. Cortavam em pequeninos pedaços, de modo que as aves pudessem comer. Já os porcos, na maioria das vezes, comiam o fruto in locus, ou seja, debaixo das tucunzeiras que compunham abundantemente a paisagem de Araí.

Até os caroços do fruto eram aproveitados durante o inverno, tempo no qual os araienses costumavam queimar os caroços do tucum, pois a fumaça que da queima emanava afugentava os insetos, como as carapanãs. “Depois de consumir, nós guardávamos os caroços, e quando o inverno chegava, à noitinha, colocávamos dentro de caqueiro e ali ficavam fazendo fumaça, por sinal muito cheirosa, em um canto da casa. Essa fumaça afugentava as carapanãs.”, afirmou dona Ana.

Aliás, importa salientar que, para além de fonte de fumaça dos caroços de tucum, quando quase apodrecidos, emanam uma espécie de larva conhecida como o bicho do tucum, conforme mostra a imagem que segue. 

Foto: Reprodução/Blog Max Escritor

Era de costume dos araienses capturar os referidos bichos e levá-los ao fogo em uma frigideira. À medida em que eles iam sendo fritos, emanavam uma espécie de óleo, o qual “[…] era usado como fitoterápico (remédio) e principalmente para hidratação capilar, especialmente nos cabelos das mulheres. O óleo deixava os cabelos sedosos, brilhosos, muito bonitos, isso foi o que me contou dona Ana e confirmado por dona Júlia:

A minha mãe não fica sem o óleo do bicho do tucum. Ela dizia que era bom para curar as dores nas pernas, nas veias, era bom para reumatismo. Quando alguém sofria algum baque, fazia massagem com o óleo pra sarar. Também é muito bom para hidratação do cabelo. (Em conversa com Júlia, via whatsapp, 2022).

Afora isso, os bichos de tucum constituíam-se em uma saborosa iguaria, uma vez que depois de fritos e da retirada do óleo, eles ficavam como um torresmo, muito apreciado, em outrora, pelos araienses. Digo em outrora porque na atualidade essa prática alimentar mantém-se apenas nas memórias dos mais antigos de Araí, ou seja, não se come mais torresmos do bicho do tucum.

Isso posto, torna-se importante dizer que, diferentemente de Araí, no estado do Maranhão, particularmente nas comunidades rurais como na comunidade Barão de Tromaí – localizada no Município de Cândido Mendes, no Nordeste daquele estado – não apenas ainda se come a iguaria, como por lá o bicho tem nome próprio, a saber, Gongo, e ocupa lugar fulcral nogosto alimentar daquela gente, conforme afirmou dona Maria Dolores:

[…] quando o tucum envelhece, eles quebram a amêndoa, tiram o bicho e torram em uma frigideira. E quando fica bem torradinho, pode pegar ele e salpicar no tempero: sal e limão e comer. Tem gosto de tocinho, é muito gostoso. (Em conversa, via whatsapp, com Maria Dolores, 2022).

Dona Maria Dolores é professora de língua portuguesa e nativa de Barão de Tromaí, onde vive ainda hoje. É mãe de Mary Pereira, que também é nativa de Barão de Tromaí e por lá viveu até os 14 anos de idade. Hoje, habita em Ananindeua, na região metropolitana de Belém e é professora doutora em Educação. Mary me contou que o tucumã ocupa um lugar especial em sua vida, que sua trajetória em Barão de Tromaí foi marcada pela intensa presença desse fruto:

Quando eu morava lá no Maranhão até os meus 14 anos, a gente se reunia a tarde, eu com minha mãe e meu pai e ele pegava um paneiro e um facão e íamos atrás do tucumã. Onde ele apanhava o tucumã e ele quebrava e a gente comia o miolinho verde. Era nosso lazer, nossa diversão e ao mesmo tempo nossa alimentação. Então, eu amava. Até hoje, toda vez que eu vou lá eu procuro onde tem tucumã pra eu comer. Eu gosto muito, é uma delícia. […] todo mundo na minha comunidade gosta do tucumã verde. (Em conversa, via whatsapp, com Mary Pereira, 2022).

Dito isso, retorno ao Gongo para dizer que essa prática alimentar dos maranhenses é antiga e por isso mesmo constitui-se em importante ativador das memórias afetivas daquela gente, conforme pode ser notado nas narrativas do professor doutor e filósofo Lincol Serejo e sua esposa, dona Josefa Serejo:

[…] Eu tenho lembranças de quando era menino, criança, até 12 anos, eu me lembro que eu ia com meu tio pro interior do Maranhão, mais precisamente, para um lugarejo chamado Santa Bárbara, na cidade de São Vicente de Ferrer. Me lembro que naquela época não havia energia elétrica, era a lamparina e às vezes nós íamos para a roça e eles tiravam o Gongo e eles comiam. A princípio, eu ficava meio assim, mais depois comecei a comer e gostei. Comíamos cru. (Em conversa, via whatsapp, com Lincol, 2022).

Assim como Lincol, dona Josefa também teve experiências com o Gongo. Segundo ela, o Gongo era comida muito apreciada pelos moradores da comunidade de São José, no município de Itapecuru Mirim, no centro-oeste maranhense. Lá, quando criança e como moradora da referida comunidade, dona Josefa comia o Gongo frito e com farinha de mandioca, comia como farofa de Gongo. A iguaria era comida ordinariamente apreciada.

Antes de prosseguir, preciso registrar aqui que, assim como no Maranhão por aqui, pelo Pará, o tucumã continua a ativar as memórias afetivas, conforme pode ser notado na memória da paraense e professora Franciléia Martins:

Eu lembro que quando nos íamos visitar o vovô Tiago, o pai da minha mãe, que morava la em São Miguel do Guamá. Então, ele morava literalmente dentro do mato. Então nos descíamos na beira da pista e tínhamos que entrar na mata até chegar na casa do vovô e pelo meio do caminho ia catando as frutas, e uma delas era o tucumã. ( Em conversa, via whatsapp, com Franciléia Martins, 2021).

Isso posto, importa lembrar que aqueles benefícios fitoterápicos e cosméticos do tucumã, descobertos pelos araienses, nas décadas de 1970 e 1980, têm sido comprovados por estudos científicos que apontam que o fruto é rico em ômega 3, uma gordura responsável por diminuir a inflamação e o colesterol alto, além de auxiliar no controle do nível de açúcar no sangue. Ademais, o tucumã é portador das vitaminas A, B1 e C, Além disso, é fonte de proteínas e rico em cálcio. Além disso, a indústria cosmética tem se apropriado do fruto para a fabricação de produtos como cremes hidratantes, máscaras para hidratação capilar, etc.

Afora isso, da amêndoa do tucumã são produzidas as biojoias, como brincos e, particularmente, anéis, como mostrado na imagem abaixo: 

Foto: Divulgação

Os anéis de tucum são tomados de histórias e carga simbólica, conforme apontou Pinheiro (2021):

Também conhecido como anel de coquinho, anel de coco e tucum, o surgimento do acessório e seu material representa muitos significados há muitas décadas atrás. A história inicial do anel de tucum nasce no tempo do Império do Brasil, com início no século XIX. Na época, a realeza usava jóias de metais e ouro, enquanto que escravos e indígenas criaram o chamado anel de tucum. Os senhores de engenho e as sinhás, em seus matrimônios usavam anéis de ouro, mas os escravos o faziam com o anel de tucum.

Assim, segundo Pinheiro (2021), para o povo escravizado no Brasil, o referido anel tornou-se símbolo de resistência e da luta pelo fim da escravidão, tornando-se desde então um marcador da luta dos povos oprimidos, representando aliança e parceria entre os socialmente excluídos. Tornando-se “[…] um símbolo de amizade entre si, pactos matrimoniais e também de resistência na luta por libertação. Desse modo, o anel de tucum era um símbolo cuja linguagem só eles conheciam. Um símbolo secreto da amizade deles e de suas lutas cotidianas.” (PINHEIRO, 2021).

Mais tarde, na década dos anos de 1960, o referido anel tornar-se-ia um símbolo da fé cristã, particularmente com o advento da teologia da Libertação e, mais recentemente, tem funcionado como marcador das lutas pelas causas da comunidade LGBTQIA+, uma vez que “[…] utilizam o anel de tucum em diferentes dedos, como uma forma de identificação da orientação sexual. […] é comum o uso do anel de tucum no polegar entre lésbicas, como uma forma de identificação entre elas. (PINHEIRO, 2021).

Então, não poderia findar este texto sem antes confessar às leitoras e aos leitores que, dentre as frutas amazônicas, o tucum é um dos meus preferidos e atravessa minha vida em Araí, que é minha terra natalonde vivi até meus doze anos de idade. Naquele tempo e naquela comunidade por muitas vezes tínhamos o tucum como única fonte de alimento e eu adorava degustá-lo in natura debaixo das tucunzeiras, juntando-os e simplesmente os comendo. Saboreava-os com farinha ou com mingau de farinha lavada. Mas, de todas as possibilidades, a que mais me agradava era do vinho e com muita, mais muita farinha. Sempre que retorno à comunidade de Araí, durante o inverno amazônico, embrenho-me mata adentro à procura de tucum, conforme mostrado nas imagens que findam este artigo. 

Referências

INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petropolis, RJ: Vozes, 2015.

PINHEIRO, Karina. A história do Anel de Tucum ou popularmente conhecido, anel de coco.2021. disponível em: https://portalamazonia.com/cultura/a-historia-do-anel-de-tucum-ou-popularmente-conhecido-anel-de-coco.

REDAÇÃO – JORNALISMO@PORTALAMAZONIA.COM – X-caboquinho, 2021. Disponível em: https://portalamazonia.com/amazonia-az/x-caboquinho– 2021.

Sobre o autor

Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista.

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