A mandicueira: Um mingau singular, in memoriam dos mortos

Na comunidade de Araí, no meio rural de Augusto Corrêa, no Pará, a mandioca e seus derivados desempenham relevante papel na elaboração de suas experiências cotidianas, funcionando como recursos que fortalecem e garantem a permanência dos costumes alimentares, religiosos e econômicos.

Como é sabido, a mandioca tem desempenhado papel decisivo na formação da História do Brasil. Sua relevância tem sido tanta que obras célebres como ‘O Índio na Cultura Brasileira’, Ribeiro (2013); ‘Importância sociocultural da farinha de mandioca no Brasil’, Marcena (2012); ‘História da Alimentação no Brasil’, Cascudo (2011); ‘Casa Grande & Senzala’, Freyre (2005); ‘Farinha, feijão e carne seca: Um tripé culinário no Brasil’, Silva (2005); ‘O que faz o brasil, Brasil?’, DaMatta (1986); têm reconhecido e destacado sobremaneira sua importância, asseverando que a mandioca foi, e continua sendo, um dos mais importantes alimentos da mesa do brasileiro, senão o mais importante deles, funcionando como recurso, um instrumento que, no decorrer do tempo, desenhou a nossa cozinha, ajudando, dessa maneira, na construção de nossa “brasilidade”, de nossa identidade, se assim podemos dizer.

Sua importância é tanta que no Estado do Pará ela é majestosa e reina absoluta, acionando um conjunto de práticas, relações sociais e experiências cujos conteúdos revelam um elevado valor êmico, presente no cotidiano daqueles que habitam aquele território, particularmente na cidade de Belém e na região nordeste daquele Estado, especialmente na comunidade de Araí, no meio rural de Augusto Corrêa, para quem a mandioca e seus derivados desempenham relevante papel na elaboração de suas experiências cotidianas, funcionando como recursos que fortalecem e garantem a permanência dos costumes alimentares, religiosos e econômicos, ao mesmo tempo que permitem a reinvenção de algumas dessas experiências.
Foto: Miguel Picanço/Acervo pessoal

De um modo ou de outro, as experiências do povo araiense são fortemente marcadas e elaboradas, como diria Ingold (2015), a partir de um emaranhado de comidas derivadas da mandioca, como a farinha d’água, a farinha seca, a farinha lavada, a farinha para farofa, a farinha de tapioca, a carimã, a goma, o tucupi, a macaxeira e particularmente a mandiocaba que é uma mandioca singular, de cor avermelhada e que somente após um ano de plantada fornece matéria prima para a feitura da mandicueria, que é um mingau ritual e que apesar de se encontrar em um processo de descontinuidade ainda permanece atravessando as experiências de sociabilidades e comensalidades dos araienses, ao menos de dona Rosa e dona Catarina Ferreira, que são eximias conhecedoras do saber fazer essa iguaria.

Foto: Miguel Picanço/Acervo pessoal

Então, a singularidade que atribuímos a mandiocaba, se justifica porque, em Arai, ela é cultivada para um único fim: a feitura da mandicueira, ou seja, não tem outra utilidade, por isso seu cultivo não se faz em abundância, como ocorre com os outros tipos de mandioca, aquelas que são próprias para a feitura de farinha d’água, por exemplo, que são cultivadas por todo o ano e em maior quantidade. Assim, não seria descabido dizer que, assim como a mandiocaba, a mandicueira também é um mingau singular, próprio da região nordeste do Estado do Pará, cuja feitura ocorre em media duas vezes por ano e, é tomada por rituais e crendices.

Foto: Miguel Picanço/Acervo pessoal

Isso posto, torna-se importante registrar que os dados que tratam da feitura da mandicueira e seu consumo em Araí, foram coletados em trabalho de campo, em setembro de 2021, quando se observou e se acompanhou as experiências, as histórias e as tramas vivificadas por dona Catarina e dona Rosa com a feitura e o consumo da mandicueira, conforme descrito no que segue.

Como já mencionado, a mandicueira é um mingau, cujo ingrediente primeiro e principal é a calda da mandiocaba, a qual é retirada no momento em que o tubérculo é ralado. Antes de prosseguir, se faz necessário lembrar que, como já foi dito, a mandiocaba concentra uma quantidade elevadíssima de água, como diria dona Rosa “a mandiocaba é uma mandioca aguacenta” e é essa água que em Arai se chama de calda. Dito isso, importa saber que após esse processo descrito acima, a massa ralada é disposta no tipiti para que se retire o que ainda restou de água.

Após a retirada da calda, a mesma é armazenada em uma grande panela, de aproximadamente 70 litros, que é levada ao fogo a lenha. Dona Catarina e dona Rosa colocaram a referida panela por volta das 11h da manhã, do sábado, dia 25 de setembro de 2021. Desde então, a calda ali ficou em processo de cocção até que por volta das 14h, elas fizeram outro fogo ao lado da primeira panela, e sobre ele assentaram uma panela de menor porte contendo uma porção de calda de mandiocaba.

Segundo elas, essa nova calda disposta na panela menor é imprescindível para a feitura do mingau, pois é com ela que se faz a renova, conforme explicou dona Catarina:

A renova é que da o gosto pra mandicueira, e ela também que faz com que o mingau fique avermelhado. Então, quanto mais renova ,mais saborosa fica. Hoje eu vou fazer três renovas. Então a renova acontece assim: é essa calda que está na panela menor e que ainda não está cozida, ‘tá’ só quente, ela é colocada junto da calda da panela grande que já ‘tá’ fervendo desde de manhã, então conforme a calda da panela maior vai diminuído por causa da fervura, a gente vai renovando com a calda nova.

Dona Catarina, em conversa durante trabalho de campo

Ou seja, a renova se refere ao ato de renovar a calda na panela e conforme dona Catarina. Quanto mais renova, mais apurada, avermelhada e doce fica a iguaria. Sim doce, porque além de uma concentração elevada de água, a mandioca é uma mandioca extremamente doce. Além das renovas o fogo também é decisivo na construção do sabor e na tonalidade do mingau.

Quando eu me entendi meus pais traziam do mato aqueles toro de lenha, mas não era qualquer lenha, tinha que ser de ingá, lacre, bauna e muruci do mato, porque essas lenhas eram avermelhadas e eles acreditavam que a cor delas ajudava a definir a cor da mandicueira.

Dona Catarina, em conversa durante trabalho de campo

Eis que por volta de 16h se procedeu com a segunda renova e, entre uma renova e outra, dona Catarina narrava os rituais exigidos pelo mingau, como a hora de dar o ponto, que exige, entre outras coisa, silêncio total.

Na hora de dar o ponto, que vai acontecer mais tarde, depois da terceira renova, quanto a gente engrossa o mingau com goma de tapioca, não pode fazer nenhum tipo de barulho, de zoada e também, outras pessoas de fora que não estejam aqui desde o começo não podem olhar pra panela, pro mingau. Ou seja, se fizer barulho e se gente estranha olhar, o mingau se espanta e desanda. Por isso, na hora de dar o ponto é o momento mais difícil, se não tiver cuidado perde tudo, todo um dia de trabalho.

Dona Catarina, em conversa durante trabalho de campo

No início deste texto atribuímos à mandicueira a qualidade de mingau ritual, assim a hora de dar o ponto e do silêncio, ajudam a adensar essa ideia. Afora isso, esse adensamento também pode ser notado na medida em que essa iguaria é uma comida ou bebida trabalhosa, que exige muita paciência, afinal requer um dia inteiro de trabalho.

Então, duas após a segunda renova, chegou a hora da terceira e com ela se juntaram à calda na panela três quilos de arroz, que depois de mais ou menos 30 minutos já estava amolecido. Havia chegado o momento mais delicado da feitura da iguaria, a saber: a hora de dar o ponto, era chagada a hora do silêncio, conforme já descrita acima. Então, delicadamente e com muita expertise e atenção as mulheres feitoras de mandicueira a engrossaram com goma de tapioca diluída com a própria calda da mandiocaba. Para os 70 litros de mingau, elas usaram em média dois quilos de goma.

Finalmente, por volta de 18h30 o mingau estava pronto e foi degustado pelas feituras e demais parentes que ali estavam. Segundo elas a mandicueira pode ser degustada quente ou fria e quanto mais fria, mais doce fica. Todas as trajetórias da feitura da iguaria, desde a colheita da mandiocaba até seu consumo podem ser observadas nas narrativas imagéticas que seguem, cujas fotografias são de minha autoria.

Antes de findar, se faz necessário retomar a informação posta anteriormente, na qual afirmamos que a mandicueira encontra-se em um processo de desfazimento, ou apagamento, pois conforme relatos de dona Rosa e dona Catarina, em tempos de outrora a iguaria atravessava intensamente a vida dos araienses.

A mandicueira ta acabando por aqui, porque os velhos que faziam já morrerram e os novos não se comprometem em fazer. Eles não querem ficar o dia inteiro na beira fogo, porque da muito trabalho par fazer. Tanto que já não tão mais plantando a mandiocaba, também, com isso vai acabanado a mandicueira. Mas antigamente não era assim, a mandicueira era o mingau que tinha, se vendia nas festas, se fazia para comer durante as festas de boi, no mês de junho. E, também se fazia em panelas de barro e depois de pronto ia para dentro dos potes. Nas festas era vendido dentro desses potes.

Dona Rosa, em conversa durante trabalho de campo

Dona Catarina e dona Rosa são remanescentes desse tempo de outrora, elas resistem e continuam a fazer a iguaria, ao menos uma vez ao ano. Para dona Cataria o mingau tem lugar muito especial em sua história, em sua memória, pois, ele foi o intermediador do seu namoro com o Pedro que é seu esposo, conforme ela relatou “eu tava vendendo mandicueira na frente de uma festa, ai o Pedro veio com a desculpa de comprar mandicueira, mas na verdade ele já tava me paquerando. Desde esse tempo estamos juntos até hoje”.

Afora isso, dona Cataria contou que, antigamente, quando alguém falecia na comunidade de Arai, era costume rezar pela alma do morto por nove dias, o nono dia era reservado par a reza da ladainha e nesse dia “obrigatoriamente” se servia mandicueira para os crentes rezantes. Na atualidade, a reza para a alma do morto continua, porém, são apenas sete dias e não nove como antes, já o costume de servir a mandicueira apagou-se por completo. Mas, torna-se relevante dizer que, apesar da descontinuidade de servir a iguaria na reza do morto, a mandicueira continua a estabelecer vínculos com os entes falecidos, pois é costume, vender o mingau durante todo o dia de finadas em frete aos cemitérios das cidades e das comunidades rurais do nordeste paraense, assim como fazem os araienses, os bragantinos e demais paraenses dos territórios aqui citados.

Por fim, não seria descabido asseverar que dentre as muitas características que constituem os territórios amazônicos e que os tornam singulares, a cozinha e a comida ocupam lugar fulcral, funcionam como lugares nos quais as identidades e as lógicas de pertencimento às Amazônias brasileiras são forjadas e experimentadas. (PICANÇO, 2021).

Nesse sentido, cabe ressaltar que a cozinha é pensada aqui muito além de um lugar onde produtos e ingredientes são processados e convertidos em alimentos, do mesmo modo que compreendemos a comida para além da junção de nutrientes capazes de sustentar o corpo. Dizem respeito primeiro a escolhas e práticas coletivas que se constituem em linguagens de identidades, ou seja, a cozinha e comida são aqui percebidas como lugares onde coexistem e coabitam uma multiplicidade de práticas e experiências que alcançam as paisagens, os territórios, as representações, as crenças, os mitos etc., que configuram, marcam e definem os modos de estar e viver em um país, em uma região ou em uma comunidade.

Pensar a cozinha e a comida nessa perspectiva nos permite, entre outras coisas, compreender que cada lugar é portador de suas próprias cozinhas e comidas as quais implicam um conjunto muito complexo de classificações, taxionomias, regras e maneiras que dizem respeito não somente ao tempo e aos modos de produzir, fazer e combinar determinados alimentos, mas também definem as escolhas e as proibições deste ou daquele produto, tornando-os não apenas comestíveis, mas comíveis. Estabelecem, ainda, os modos de estar na mesa e nos levam a definir com quem, quando e como comer.

Os argumentos acima mencionados ajudam a entender o lugar fulcral que a cozinha e a comida têm ocupado na cultura das sociedades e essa centralidade pode ser reconhecida por meio dos sabores, dos fazeres, dos saberes, dos valores, das técnicas, dos utensílios, das representações simbólicas que atravessam e entremeiam as experiências comensais de qualquer grupo humano em qualquer território. 

Conceber a cozinha e a comida nesses termos corresponde a reconhecer que todas as suas dimensões, em particular os atos de cozinhar e consequentemente de comer, implicam um sistema complexo de conhecimento, de técnicas, de pensamentos, de gostos, de costumes, que exaltam os sentidos, aguçam a imaginação, traduzem-se em saborosos pratos. Esses, ao mesmo tempo em que são capazes de operar como marcadores da identidade coletiva de uma dada sociedade, são portadores de sentimentos quando estimulam as memórias afetivas e gustativas dos atores sociais.

Sendo assim, não seria exagero afirmar que quando aprendemos sobre uma dada cozinha, sobre certa comida ou sobre os modos de comer de um povo, também estamos conhecendo sobre seus modos de plantar, colher, fazer, degustar e compartilhar a vida. Quando pensamos sobre essas particularidades que envolvem o mundo da cozinha e do comer, imediatamente somos levados a refletir sobre o espaço, a paisagem, o território, a região e o lugar onde elas habitam e se fazem habitadas.

Foi exatamente com a intenção de convidar a leitora e o leitor a pensar sobre essas questões que envolvem o território do comer, particularmente na Amazônia paraense, que escrevi este texto, o qual aponta para a mandicueira como mediadora de saberes, de sabores, de fazeres, de histórias, de memórias e quiçá de linguagem de identidade desse povo que habita o Norte brasileiro.

Referências bibliográficas

CASCUDO, L. da C. História da alimentação no Brasil. São Paulo: GLOBAL, 2011.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de janeiro: Rocco, 1986.

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. São Paulo: Global Editora. 2005.

INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petropolis, RJ: Vozes, 2015.

MARCENA, Adriano. Mexendo o Pirão: Importância Sociocultural da Farinha de Mandioca no Brasil Holandês (1635 a 1646). Recife: Funcultura, 2012.

PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Comida Cabocla, uma questão de identidade na Amazônia: desde uma perspectiva fotoetnográfica. Belém; Paka-tatu, 2021.

RIBEIRO, Berta G. O Índio na Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro (coleção biblioteca básica brasileira; 22), 2013.

SILVA, Paulo Pinto e. Farinha, feijão e carne seca: um tripé culinário no Brasil. 1ª Ed. São Paulo: SENAC, 2005, p. 21-142. 

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista.

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