Nesse tempo sagrado, a cidade de Belém vivencia experiências que se diferem notadamente das vivificadas no cotidiano dos crentes e, por que não dizer, dos não crentes também.
É Círio outra vez. Certamente, no próximo dia 10 de outubro, essa afirmação ecoará por muitas vezes no território belenense, afinal, será o segundo domingo de outubro e, como de costume, a capital paraense será tomada pelo “espírito nazareno”, imprimindo a Belém uma “atmosfera” diferente daquela que, com regularidade, compõe o cenário da capital. Nesse tempo sagrado, a cidade vivencia experiências que se diferem notadamente das vivificadas no cotidiano dos crentes e, por que não dizer, dos não crentes também.
Como é sabido, nos dias que antecedem o Círio, é comum que alguns devotos pintem suas casas, comprem roupas novas, substituam os móveis velhos por novos, abasteçam a despensa e esperem os parentes e amigos, que, com regularidade vêm de outras cidades do interior do estado e quiçá de fora da região. Concomitantemente a isso, as ruas, praças, prédios (públicos e privados) são tomados por bandeirinhas, banners com a imagem da Santa, arquibancadas, palcos, palanques, aparelhos de sons, etc. Até as mangueiras são enfeitadas e ganham novos contornos. Parece que também são “contagiadas” por essa atmosfera que é potencializada pelas músicas nazarenas, que são entoadas pelos “quatro cantos” da cidade. Nesse contexto, Belém também é afetada por outros movimentos, ou melhor, pelos cheiros que exalam da maniçoba e se espalham praticamente por toda a cidade, conforme tratarei adiante.
Dito isso, torna-se importante saber que os trajetos percorridos pela mandioca até fazer-se perfume na cidade e depois povoar as mesas dos católicos no almoço do Círio se iniciam, mais ou menos, uns quinze dias antes do segundo domingo de outubro, quando ela atravessa quilômetros de rios e/ou estradas paraenses e é disposta por todas as feiras e supermercados de Belém, principalmente na Feira do Ver-o-Peso e na Feira da 25, lugares, dentre tantos outros,onde ela se apresenta in natura, como maniva (em folha, ou moída) e aliganha status de etnomercadoria (COMAROFF e COMAROFF, 2012), conforme mostrado nas imagens que seguem.
Mas, onde começa esse movimento da mandioca? Qual sua história, sua trajetória até se fazer maniçoba para o almoço do Círio? Essas indagações foram, em certa medida, respondidas por Denys Rodrigues, que é mandiocultor e proprietário de uma pequena casa do forno (casa de farinho ou retiro) – que produz maniva pré-cozida para o almoço do Círio – localizada na comunidade de Taiassuí, no município de Benevides, região metropolitana de Belém.Segundo Denys, a roça da qual se retira a maniva que dá concretude à maniçoba é plantada seis meses antes do Círio, pois se passar desse tempo a folha amargará, ficando imprópria para a feitura da iguaria.
Denys me contou que, depois de colhidas, as folhas são transportadas para a casa do forno é lá são moídas em uma máquina própria para esse fim.
Em seguida, inicia-se o processo de cocção: as folhas moídas são misturadas com água e dispostas em grandes panelas e levadas ao fogo por, aproximadamente, quatro dias. Conforme a folha vai se adensado, vai se acrescentado água nas panelas. Apenas depois desses processos e desse tempo de cocção, é que a maniva estará apta para a comercialização, que ocorre nos diferentes comércios da capital paraense.
Isso posto, torna-se importante frisar que além desses movimentos até aqui descritos, outros processos são operados na vida social da mandioca (APPADURAI, 2008), a saber,nas casas das devotas da Virgem de Nazaré, afinal, é tempo de Círio e, conforme já mencionado, esse tempoopera profundas transformações na dinâmica e na vida da capital paraense,queganha novas atmosferas, novas paisagens,sonoridades, cheiros e cores que vão configurando a Festa da Santa comoum fato social total,(MAUSS, 2013).
Na composição dessa festa, o almoço do Círio ocupa centralidade, funcionando como um prolongamento das homenagens à santa. A esse evento, Eraldo Maués (2008) atribui a qualidade de um banquete sacrifical.
O Almoço é ao mesmo tempo o banquete de confraternização e uma espécie de comunhão entre familiares, amigos e convidados com o sagrado, representado pela figura de Maria de Nazaré, a santa cuja imagem terminou naquela manhã a sua peregrinação ritual pelas ruas da cidade. Nesse Almoço ocorre uma espécie de comunhão […] do cristianismo católico […] (MAUÉS, 2016, p, 277).
E, mediando essa comunhão está a maniçoba, entendida aqui como prato sagrado, sem o qual o referido banquete torna-se inimaginável.
Mas como se faz essa iguaria? Existem diferentes maneiras de fazê-la. Por exemplo, dona Maria do Socorro, que é católica e devota da santa e que vive em Ananindeua, região metropolitana de Belém, oferece todos os anos o referido almoço e faz a sua maniçoba da seguinte maneira:
Ela inicia o processo de fervura da maniva (que já estava pré-cozida) sete dias antes do Círio. No primeiro dia, coloca a maniva ao fogo com toucinho branco que antes é refogado ao alho, chicória e folhas de louro. A partir de então, o fogo é aceso debaixo da panela pela manhã e à tarde também. Esse ritual se repete até o sábado que antecede o Círio, quando são agregados ao cozimento os demais ingredientes (toucinho, costela, orelha e pé de porco, charque, vísceras bovinas, bacon, etc.) e permanecerão em fervura até à noite. Antes de se juntarem à panela, esses ingredientes são colocados de molho no início da noite de sexta-feira para expelir parte do sal. Após isso, são refogados a alho e óleo, chicória, folhas de louro, cebola e cheiro verde, conforme pode ser notado no vídeo abaixo. Finalmente, deu-se concretude à maniçoba de dona Socorro.
Parecida com a feitura de dona Maria do Socorro é o modo como dona Fátima Rodrigues, que também é católica e moradora de Belém, costuma fazer sua maniçoba. Ela coloca a maniva, juntamente com azeite de oliva, para ferver durante cinco dias, sempre acendendo o fogo pela manhã e o apagando antes de ir dormir, por volta das vinte e duas horas. No quinto dia de fervura, ela assa a costela de porco e o pernil no forno, junta-os com os demais ingredientes, que, depois de refogados ao alho, azeite e os outros condimentos, são misturados com a maniva e ali permanecerão fervendo por mais dois dias.
Por outro lado, a maneira como dona Ana Rizete faz sua maniçoba diferencia-se um pouco das demais. Ela costuma colocar a maniva para ferver por volta do meio dia da sexta feira que antecede ao Círio. Nesta etapa, o bacon acompanha a maniva na panela, que antes precisa ser refogado no azeite e alho e misturado com os outros condimentos. No sábado, o charque e a carne de boi são cozidos na panela de pressão e depois misturados e refogados no alho e azeite juntamente com os demais temperos, os quais devem ferver até às vinte e duas horas do sábado. Apesar de já estar pronta, no domingo pela manhã, dona Ana ferve por algumas horas a iguaria, antes do tão esperado almoço do Círio.
Segundo elas, quanto mais tempo de fervura, mais apurada e escurecida ficará a maniçoba e, consequentemente, mais saborosa também, pois, conforme me contaram o que define o sabor é a cor: quanto mais escura, mais apetitosa fica.
Então, como já mencionado, o almoço do Círio constitui-se em um banquete sagrado (MAUÉS, 2016), cujo ritual de consagração precede o dia do Círio. Começa quando a imagem da santa inicia um processo de peregrinação, visitando as casas dos católicos, permanecendo ali por toda à noite e no dia seguinte o ritual se repete e a imagem segue visitando a maior quantidade possível de casas, até que chegue o segundo domingo de outubro. Segundo Maués, é nesse ritual que as donas de casa, ao se purificarem, purificam também suas experiências no almoço do Círio, cujas comidas, particularmente a maniçoba, parecem que, ao mesmo tempo em que vinculam almas, também são portadoras delas. Afinal, quando se oferece um prato de maniçoba está-se ofertando o melhor do banquete, o melhor de quem oferece, que, ao ser recebido e degustado, alimenta e sustenta o espírito católico, assegurando a renovação não apenas da fé, mas também dos laços e vínculos sociais.
Essa ideia de vínculo de almas atribuído ao almoço do Círio parece ser reforçada pelos discursos de dona Maria do Socorro, dona Fátima e dona Ana, que me asseguraram que repetem essas práticas de cozinhar e oferecer o almoço todos os anos, e assim o fazem pela satisfação de receber os amigos, parentes e vizinhos em suas casas para o almoço do Círio. Segundo elas, todo o trabalho é recompensado pela satisfação de ter a maniçoba para oferecer nesse almoço que para elas é sagrado. Dona Fátima, por exemplo, relatou-me que é com imensa alegria que repete em sua casa todos os anos esse banquete ritual. Ela tem dois filhos que moram fora de Belém, um em Brasília e outro em são Paulo, mas todos os anos eles retornam a Belém para o Círio. Então, segundo ela, ao fazer a maniçoba, não economiza na quantidade, prepara-a com fartura, em grandes proporções, a ponto de ser suficiente não apenas para alimentar todos no almoço do Círio, mas também para que os filhos levem a iguaria para os lugares onde moram, assim como para que ela possa doar para os seus vizinhos que, por alguma razão, não tenham feito esse prato.
Antes de findar, postula-se aqui a ideia de que o almoço do Círio é um lugar que ao mesmo tempo que assegura à mandioca a condição de comida sagrada, também adispõe emum movimento que Kopytoff (2008) chamoude singularização,ou seja, um movimentoque possibilita que certas coisas se desloquem da esfera da mercantilização e assumam valores associados à sua proximidade com as trajetórias dos indivíduos, ou grupos. Nesse sentido, o autor afirmou que “[…] algumas vezes essa singularização inclui coisas que normalmente são mercadorias – com efeito, as mercadorias são singularizadas, exatamente por serem retiradas da sua usual esfera mercantil […]” (KOPYTOFF, 2008, p. 100). Ou seja, uma determinada coisa se singulariza quando se desloca da esfera da mercantilização e passa a ter uma biografia própria, mesmo que por um curto período, assim como acontece com a mandioca durante o almoço do Círio.
Por fim, penso que os ciclos rituais da mandioca no contexto paraense e sua singularização constituem-se num fenômeno de múltiplas dimensões, que envolvem questões e processos para além de sistemas de trocas primárias de doações, recebimentos, devoluções de bens simbólicos e materiais entre indivíduos, favorecendo outras abordagens, como: do saber constituído na relação entre humanos e não humanos; do consumo de bens como arranjo cultural situacional; da constituição híbrida de redes e coletividades sociotécnicas, e da fruição de linhas vitais e constitutivas do fazer-se das coisas na vida coletiva, possibilitando que os belenenses fortaleçam suas identidades como católicos que pertencem a uma comunidade cabocla e amazônica e que,todos os anos, no mesmo período, reúnem-se para prestar culto à Virgem e comer junto com os amigos, as comadres, os compadres, os vizinhos, os “chegados” e os parentes.
Referências
APPADURAI, Arjun.Introdução: mercadorias e a política de valor. In: A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. (Org). APPADURAI, Arjun.Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 15-88.
COMAROFF, John L.; COMAROFF, Jean. Etnicidad S.A. Buenos Aires/Madrid: Katz Editores, 2012.
KOPYTOFF, Ygor. A biografia cultural das coisas: mercantilização como processo. In: A vida Social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. (Org).APPADURAI, Arjun. Nitéroi: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 89-120.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Almoço do Círio: um banquete sacrificial em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 36 (2): p. 220-243, 2016. Disponível em: <www.scielo.br>. Acesso em: 24 mar. 2017.
MAUSS, Marcel. “Ensaio sobre a dádiva“. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, (2013).