Urutau, rasga-mortalha e acauã: agourentos ou habilidosos caçadores?

A vivência na mata faz parte da transmissão cultural dos ribeirinhos e os diálogos expressam a abundância, a dinâmica das paisagens encontradas e a relação profunda do convívio com a natureza.

A relação entre o homem e a natureza é perpassada pelo estranhamento, medo, curiosidade e percepção estética. A mata é fonte inesgotável de aprendizado, descoberta que reflete na preservação de crenças e costumes. Há uma mata repleta de paisagem sonora descrita por meio dos cantos dos pássaros, das narrativas contadas com efeitos especiais a beira dos rios amazônicos, sendo um espaço de grande repertório cultural.

O temo mata é carregado de afetividade, imaginário, encantamento e respeito. Diante de uma mata, o caboclo experimenta a sensibilidade estética, o deslumbramento diante do que consegue perceber e sentir. A vivência na mata faz parte da transmissão cultural dos ribeirinhos e os diálogos expressam a abundância, a dinâmica das paisagens encontradas e a relação profunda do convívio com a natureza.

Em meio a esse espaço geográfico, surgem os pássaros com seus inesquecíveis cantos e habilidades para a caça, povoando o universo das crendices e encantarias amazônicas. Aqui se traz alguns desses pássaros que, no viver ribeirinho, seus cantos são associados à má sorte, azar ou prenúncio de morte.

Foto: Divulgação

O urutau, conhecido como mãe da lua, é um pássaro de grande beleza, possui olhos grandes e um bico marcante. Sua plumagem se confunde com um tronco de árvore, tendo uma grande habilidade na arte da camuflagem e à noite costuma ser um habilidoso caçador de insetos. O seu canto melancólico não é apreciado entre os ribeirinhos por ser associado a prenúncio de notícias ruins.

Leia também: Urutau: o pássaro amaldiçoado conhecido como “ave-fantasma da Amazônia”

Apesar de ser tido como um pássaro agourento no dizer popular, o urutau tem uma grande importância na mata, pois ajuda no controle da população de insetos e como tem na beirada dos rios amazônicos. Deveria ser mais conhecido como o habilidoso caçador do que agourento.

Foto: Divulgação/Ravaglia

Outra ave de intensa beleza é a rasga-mortalha, espécie de coruja cujo canto arrepia quem ouve e sempre tem uma história ligada a esse pássaro. O som da rasga-mortalha é como se rasgasse algum tecido. Tanto o urutau quanto a rasga-mortalha possuem hábitos noturnos, seus cantos são tidos como melancólicos e associados aos prenúncios de notícias tristes e sinais de azar. Como dizem os ribeirinhos “Se a coruja passar em cima de casa à noite e se tiver alguém doente anuncia a morte. O canto da rasga-mortalha anuncia a morte de alguém”.

Leia também: “Som da morte”: Descubra a lenda por trás da coruja-rasga-mortalha

No imaginário amazônico, a rasga-mortalha é melancólica, mas apesar disso tem uma grande importância na mata, pois ajuda no controle de roedores, um de seus alimentos preferidos. Depois da enchente de 2014 no rio Madeira, a população de roedores aumentou muito, o que significa valorizar ainda mais o papel da rasga- mortalha no combate aos roedores. Além disso, sua habilidade auditiva favorece excelentes caçadas!

Foto: Divulgação

Participa dessa geografia selvagem o acauã, um falcão que tem uma vocalização alta e marcante. Seu canto também é associado aos agouros. Para os ribeirinhos se o acauã cantar em galho verde irá chover, se cantar em galho seco anuncia o verão; se passar em local que tem alguma mulher e canta “kuá, kuá, kuá” anuncia a gravidez ou a morte de alguém, quando está doente.

O acauã possui grande habilidade para caça, mantém em seu hábito alimentar o gosto por serpentes, inclusive pelas espécies venenosas como a jararaca e a coral, ajudando no controle da população de serpente no espaço ribeirinho.

É importante a valorização do urutau, da rasga-mortalha e acauã, os quais ajudam no controle populacional entre as espécies que fazem parte de seus hábitos alimentares. Que essas aves deixem de ser vistas como agourentas e passem ser reconhecidas como importantes no equilíbrio da cadeia alimentar.

Que esta experiência de olhar amazônia possa ser multiplicada para a definição de campos possíveis de ação nas políticas públicas destinadas às populações ribeirinhas. Continue nos acompanhando e envie suas sugestões no e-mail: lucileydefeitosa@amazoniaribeirinha.com.

Sobre a autora

Lucileyde Feitosa é professora, Pós-Doutora em Comunicação e Sociedade (Universidade do Minho/Portugal), Doutora em Geografia/UFPR, Integrante do Movimento Jornalismo e Ciência na Amazônia e colunista da Rádio CBN Amazônia Porto Velho e do Portal Amazônia. 

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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