O relatório ‘Yanomami sob ataque’ tem depoimentos de indígenas que vivem em comunidades fortemente ameaçadas pelo garimpo ilegal.
Maior reserva indígena do Brasil, a Terra Yanomami vem enfrentando nos últimos anos o aumento desenfreado da exploração ilegal de ouro: ano passado, o garimpo avançou 46% na região, a maior devastação da história em quase 30 anos de homologação do território. Esta alta impacta não somente os rios e a floresta, mas também a segurança das comunidades, costumes e a saúde dos indígenas.
No relatório ‘Yanomami sob ataque’, divulgado no último dia 10, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) listou depoimentos dramáticos de homens e mulheres ianomâmi que são obrigados a conviver com os garimpeiros dentro do próprio território. Por segurança, as pessoas que depuseram aos pesquisadores durante a elaboração do relatório não foram identificadas.
Elas fizeram relatos sobre: ataques e conflitos; violência sexual contra mulheres e crianças; medo do avanço desenfreado; e planos para reverter este cenário. Todos os depoimentos foram dados na língua ianomâmi e traduzidos ao português pelos pesquisadores — grande parte deles, também indígenas.
“Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida!”
Na região de Kayanau, onde há forte presença de garimpeiros, os relatos estão entre os mais graves e comoventes acerca dos impactos da exploração no território Yanomami. As afirmações detalham como garimpeiros exigem sexo com meninas e mulheres em troca de comida:
“Após os ianomâmi solicitarem comida, os garimpeiros rebatem sempre. Quando os [ianomâmi] disserem: ‘Certo, sendo que vocês estão tirando ouro de nossa floresta, vocês devem dar comida para nós sem trocar’, [os garimpeiros respondem:] ‘Vocês não peçam nossa comida à toa! É evidente que você não trouxe sua filha! Somente depois de deitar com tua filha eu irei te dar comida!’. Assim, quando os ianomâmi tentam pedir comida, os garimpeiros sempre respondem. Contudo, outros não atendem os ianomâmi, rebatendo apenas: ‘Eu não tenho comida!’. Após falarem assim, os [garimpeiros] pedem, para as mulheres adultas suas filhas, e também pedem para os homens velhos, suas filhas”.
“Eles falam assim para os ianomâmi: ‘Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrissar uma grande quantidade de comida que você irá comer! Você se alimentará!’. Os [garimpeiros] dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Então, os ianomâmi respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida. ‘Se eu pegar tua filha, não vou mesmo deixar vocês passarem necessidade!’, assim os [garimpeiros] falam muito para os ianomâmi”.
“Os garimpeiros têm sempre uma louca vontade de transar”
Ainda em Kayanau, pesquisadores citam que na visão da maioria das mulheres indígenas, os garimpeiros representam “uma terrível ameaça. São luxuriosos e violentos, produzindo um clima de terror e angústia permanente nas aldeias”.
Uma mulher ianomâmi falou sobre esse clima de medo que impera diante à eminente presença dos garimpeiros:
“Os garimpeiros têm sempre uma louca vontade de transar. Quando as pessoas disseram que eles se aproximavam, eu fiquei com medo. Por isso, desde que ouço falar dos garimpeiros, eu vivo com angústia. Minha mãe disse que eles se cortam, as crianças ficam de olhos esbarrados de medo, porque não se dão conta que estão sofrendo. Quando as notícias [sobre os garimpeiros] chegaram por perto… após eu também pensar assim [como minha mãe], fiquei esclarecida. Quando minha mãe e minha irmã maior falaram sobre essa gente eu me convenci: “É assim que essa gente faz!”.
“Os garimpeiros estupraram muito essas moças, embriagadas de cachaça. Elas eram novas, tendo apenas tido a primeira menstruação. Após os garimpeiros terem provocado a morte dessas moças, os ianomâmi protestaram contra os garimpeiros, que se afastaram um pouco. As lideranças disseram para eles que estando tão próximos, se comportam muito mal. Por isso, outros ianomâmi os apelidam de ‘letalidade da malária'”.
“Não quero morrer de fome”
Na região chamada do Médio Catrimani, onde, segundo o relatório, desde o início da pandemia há relatos de que garimpeiros querem se instalar, as lideranças, especialmente femininas, têm conseguido até agora frear o avanço dos invasores. A preocupação de uma das mulheres da comunidade é com a ameaça iminente à comunidade: “Certo, nós estamos muito preocupados, pois eles verdadeiramente contaminam a floresta. A floresta se torna infestada pelos carapanãs, reduzida a um lamaçal. Eu não quero que nós morramos por causa dos garimpeiros que destroem nossa floresta. Não queremos morrer por causa das doenças letais dos garimpeiros. Por causa das águas contaminadas do rio, nossos ouvidos adoecem. Não queremos a agressão letal da malária”.
“Por isso, nós não queremos deixar os garimpeiros se aproximarem. Não queremos que nossos maridos sejam mortos pelos garimpeiros, depois que se instalem nas proximidades. Em outras regiões, têm [ianomâmi] que já estão sofrendo dramaticamente de fome, mas eu não quero sofrer a fome. Não quero morrer de fome. Eu quero morrer simplesmente de velhice, sem outras causas. Não adoecer e sofrer por causa dos seus pênis. Eu quero morrer como uma mulher idosa”, declaram.
“Depois de beber cachaça, vocês batem em nós, anciões”
O acesso à bebida alcoólica levada por garimpeiros altera o comportamento dos jovens que vivem na região de Parima, onde há registros de que a medida que o garimpo se intensificou, aumentaram as hostilidades contra os indígenas. Um pesquisador indígena afirma que a “cachaça” vicia e altera o comportamento dos jovens, causando brigas entre ele e até agressão aos mais velhos.
“Antigamente, quando ainda vocês jovens não estavam, nós não nos batíamos bebendo cachaça. Agora vocês que estão aqui, vocês que se aproximaram desses que devastam nossa floresta, depois de beber cachaça, vocês batem em nós anciões e estamos acabando. Contudo, vocês acabam também se batendo, embebedados de cachaça! Esses que devastam a nossa floresta, não ficam entristecidos!”, desabafou aos pesquisadores um dos idosos da região.
“Vocês são violentos!”
Outra vertente do garimpo ilegal são os ataques armados contra as comunidades. A região de Palimiú, por exemplo, viveu dias seguidos de tensão após garimpeiros atirem contra indígenas. Logo após esse ataque, um líder indígena desabafa:
“Eu, sendo uma liderança, estou com muita raiva! Você pode ver em minha cara que estou com muita raiva, não fique enviando seus filhos garimpeiros em nossa terra! Eu não aceito isso! Eu não aceito! Eu não quero essas coisas ruins! Vocês são violentos! Seus filhos são violentos. Ficou toda essa situação ruim de agressões aqui! Eu não quero isso! Vocês deixaram tudo terrível para nós! Eu sou povo da floresta! Não quero ver isso! Eu quero é assistência à saúde de verdade, projetos de verdade! Polícia de verdade! É isso que eu quero ver!”.
“Os garimpeiros destruíram nossa floresta. Nós, lideranças, não queremos seus garimpeiros! Nossos animais de caça já acabaram! As crianças já estão sofrendo com doenças de pele e diarreias! Nossos filhos já estão doentes! Bolsonaro, busque seus filhos garimpeiros e os leve de volta!”,
relato de liderança logo após o ataque armado de garimpeiros à comunidade Palimiú.
“Profissional da saúde virou garimpeiro”
Há, ainda, relatos de que ex-profissionais da saúde indígena ianomâmi que atualmente auxiliam o garimpo na mediação com a comunidade, “se valendo da confiança construída com anos de trabalho na saúde”, conforme o relatório. Um dos moradores contou:
“Ontem eu encontrei um garimpeiro aqui na CASAI. Ele me ligou para pedir (autorização) para botar maquinário. Ele é (profissional) antigo da saúde. Você conhece ele. XXX. A mulher dele (se chama) XXX. Agora ele virou garimpeiro. Ele me pediu para botar maquinário no Keeta. Ele pediu ao conselheiro, XXX, para pesquisar (minério) perto do posto. Ele pesquisou. Mas ele tem medo de mim e do Tuxaua. Ele conversou comigo ontem. Disse assim: “Ei, XXX, eu quero botar meu maquinário. Eu conheço muitos de vocês. Eu trabalhei antigamente na saúde. Eu conheço todas as comunidades, Wapuruta u, Minau, Xako-xako, Simko, Putha theri, Watatase conheci muito também, por isso eu quero ajudar vocês”. Ele me falou assim, ontem. Mas eu não quero deixar”.
Insegurança e medo
O relatório, que teve assessoria técnica do Instituto Socioambiental (ISA), colheu depoimentos de indígenas que vivem nove regiões dentro da reserva. Para uma das pesquisadores que atuou na produção do documento e que prefere não se identificar por temer represálias, inserir relatos reais ajuda a ter uma dimensão maior da real situação.
“Uma grande diferença que esse relatório trouxe é que ele traz dados levantados por pesquisadores indígenas e relatos do que tem acontecido na comunidade. Que são coisas que não chegam pra gente. Então, se até então as denúncias sobre garimpo ficavam muito em imagens aéreas sobre os rios assoreados, esse novo relatório trouxe depoimentos muito fortes e muito vivos sobre o que tem acontecido nas nas comunidades. Esses casos da de violência contra as mulheres é algo muito difícil de se ter acesso”, pontua.
Com base nos relatos, o documento cita que “à medida que os núcleos garimpeiros ilegais se proliferam e crescem nas diferentes regiões da TIY, as comunidades vizinhas sentem a perda do “controle” sobre o seu espaço de vida”.
O documento expôs ainda, como garimpeiros têm recrutados jovens ianomâmi entregando armas a eles em troca de comida, a violência sexual contra meninas e a destruição ambiental. As novas informações são acompanhadas pelo Ministério Público Federal (MPF), que pediu ao Governo Federal novas ações policiais na reserva.
Por Valéria Oliveira, do g1 Roraima