Nota técnica divulgada pelo ISA e a Hutukara Associação Yanomami aponta que áreas atingidas pelo garimpo ilegal no território chegaram a 5.432 hectares em 2023, ano em que a emergência de saúde foi decretada.
*Por Yara Ramalho, Samantha Rufino e Kellen Barreto, do g1 Roraima e TV Globo em Brasília
As ações do governo federal de combate à desassistência sanitária na Terra Indígena Yanomami e de retirada de garimpeiros não estão sendo aplicadas de forma eficiente, e as áreas atingidas pelo garimpo ilegal no território chegaram a 5.432 hectares em 2023. É o que aponta uma nota técnica divulgada nesta sexta-feira (26) pelo Instituto Socioambiental (ISA) e a Hutukara Associação Yanomami, com base em dados de um monitoramento do Greenpeace Brasil.
Os dados foram divulgados no mês em que a emergência sanitária declarada pelo governo federal na região completa um ano. A nota técnica destaca ainda que a atividade ilegal continua impactando a saúde dos Yanomami, que sofrem com avanço da malária e falta de atendimento médico.
“Chega de maltratar meu povo, meu povo Yanomami e Yek’wana são seres humanos […] Tem garimpeiro voltando para continuar garimpando, mas eu não quero”,.
alertou o xamã e principal líder Yanomami, Davi Kopenawa.
Sobre o assunto, o Ministério da Saúde informou que aumentou o efetivo de profissionais, dobrou o investimento em ações de saúde e trabalhou para garantir a assistência e combater as principais doenças, como a malária e desnutrição no território Yanomami. Além disso, disse que investiu R$ 220 milhões em ações no território.
Já o Ministério dos povos Indígenas destacou que investiu mais de R$1 bilhão para o enfrentamento da emergência “A crise na região Yanomami, embora não tenha sido totalmente solucionada, recebeu esforços emergenciais significativos em diversas frentes de atuação. Além disso, é preciso destacar que o MPI continua planejando e implementando mais ações, trabalhando de forma articulada com outros ministérios responsáveis por atuar no território indígena”, completou.
O Grupo Rede Amazônica procurou o Ministério da Defesa, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o governo federal sobre o assunto e aguarda retorno.
As organizações mostram que a área impactada pelo garimpo cresceu cerca de 7% no ano passado. Em comparação com os últimos cinco anos, o número representa uma desaceleração na taxa de crescimento da devastação, mas revela que garimpeiros ainda atuam na região e preocupam os povos indígenas.
Com as ações do governo federal para retomar o controle do território, os alertas de desmatamento tiveram redução até julho, mas “com o relaxamento das ações de repressão”, voltaram a crescer a partir de agosto, segundo o ISA.
“Embora tenha tido uma mobilização importante no primeiro semestre que levou a uma redução importante do número de garimpeiros atuando no território, você ainda percebe que teve alertas praticamente todos os meses, ainda que em uma proporção bem menor. Isso indica a estabilidade e a manutenção das áreas controladas pelo garimpo. O garimpo nunca chegou a sair completamente”,
explica Estevão Senra, geógrafo pesquisador do Instituto.
Avanço do garimpo e devastação
Segundo o levantamento, das 37 regiões da Terra Indígena Yanomami, 21 apresentaram registros de desmatamento associado ao garimpo: Alto Catrimani, Alto Mucajaí, Apiaú, Arathau (Parima), Auaris, Balawau, Demini, Ericó, Hakoma, Homoxi, Kayanau (Papiu), Maturacá, Missão Catrimani, Palimiu, Papiu (Maloca Papiu), Parafuri, Surucucus, Uraricoera, Waikás, Waputha e Xitei.
Além disso, nas regiões de Alto Catrimani, Alto Mucajaí, Apiaú, Auaris, Homoxi, Kayanau (Papiu), Maturacá, Missão Catrimani, Palimiu, Papiu (Maloca Papiu), Uraricoera, Waikás e Xitei também foram confirmadas as presenças de garimpos ilegais ativos. Na região do Baixo Catrimani o monitoramento também identificou a presença de balsas não detectáveis por satélite.
De acordo com os dados do Greenpeace, a região mais devastada em 2023 foi a região do rio Couto de Magalhães, que totalizou, ao longo de todo o ano passado, 78 hectares destruídos por conta do garimpo ilegal.
O rio Mucajaí, uma das rotas fluviais usadas para chegar ao garimpo, foi a segunda região mais devastada no território e somou 55 hectares. A terceira região foi a área do rio Uraricoera, também conhecido por ser rota de garimpeiros, que registrou 32 hectares destruídos em 2023.
Um dos principais problemas para a permanência dos garimpeiros ilegais no território é a diminuição da regularidade e da efetividade das operações das forças de segurança ao longo do ano, segundo o ISA.
“As ações de proteção territorial ainda não são suficientes e, na nossa avaliação, elas não foram suficientes porque o governo não conseguiu garantir uma regularidade das operações”, afirmou Estevão Senra.
Para fugir das fiscalizações, os invasores estão mudando os focos para a região de Alto Orinoco, Shimada Ocho, Alto Caura, Santa Elena, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Além disso, estão reativando acampamentos mais distantes dos principais rios e operando no período da noite.
Segundo a nota técnica, o garimpo no Alto Orinoco tem se intensificando desde o início das operações em 2023 e parte de sua logística é operada no Brasil, em articulação com o garimpo do Alto Catrimani, Homoxi, Xitei e outros.
Os pesquisadores identificaram ainda a abertura de uma nova pista de pouso clandestina no território Yanomami, a cerca de 4 km de um garimpo no lado venezuelano da terra indígena. No país vizinho, eles também observaram a construção de mais uma nova pista de pouso, de quase 500 metros.
Relatos de indígenas às instituições indicaram que as pistas de pouso de Mucuim e Espadinha, no lado brasileiro, foram reativadas. Há uma média de três aeronaves por dia com destino à Mucuim e os voos iniciam por volta das 6h para evitar uma fiscalização das forças de segurança, de acordo com os relatos.
O frete aéreo é uma das formas para se acessar os garimpos instalados na floresta. A pista de pouso conhecida como Rangel, uma das principais vias usadas pelos invasores para acessar o território, tem concentrado a maior parte das movimentações aéreas, o que indica uma falha no controle do espaço aéreo do território, que é realizado pela Força Aérea Brasileira (FAB).
Estevão Senra explica que boa parte das áreas de exploração ainda dependem da logística aérea. Para ele, a volta da atividade garimpeira em áreas remotas demonstra que o controle do espaço aéreo “não está sendo bem feito”.
“Deveria ter uma estratégia para reprimir essa logística aérea. Embora a Força Aérea diga que está controlando o espaço aéreo, ele não está efetivamente controlado. Isso dificulta bastante o controle do território”, esclareceu ele.
O Instituto sugere a ocupação permanente do governo nessas regiões, além da implementação de bases de fiscalização e proteção nas calhas dos rios, que também são utilizados pelos invasores para chegar no território.
“Além [de construir] essas bases se precisa ter uma postura mais ativa nelas, com patrulhas regulares. Não dá só para deixar as pessoas nas bases. Muitas vezes, se não tem uma posição mais ativa nesse trabalho de repressão ao crime, os invasores encontram caminhos para desviar ou até mesmo furam esse bloqueios”, afirmou o pesquisador.
‘Falta de um plano integrado’
Segundo o geógrafo, um dos principais equívocos da resposta emergencial foi a falta de um plano integrado entre os ministérios do governo federal, como o da Saúde, Povos Indígenas, Justiça, Defesa e as forças e agências de segurança, que atuam no território desde o dia 20 de janeiro de 2023, quando a emergência em saúde na região foi decretada.
“Não só um plano, mas também um monitoramento da implementação e uma organização da implementação que articulasse todo mundo. Esse foi um grande equívoco mesmo, que impediu o sucesso de muitas ações”, explicou Estevão. “Com as pastas atuando de maneira descoordenada às vezes o avanço que uma ação possibilita vai regredir logo depois porque precisava de uma resposta imediata de uma outra pasta”, completou o pesquisador.
Além disso, segundo o estudo, as forças de segurança devem permanecer nas regiões onde os indígenas precisam de atendimento médico. Na análise do geógrafo, a permanência de militares promove a segurança das equipes médicas, que podem chegar até as comunidades e garantir o serviço.
Desestabilização da saúde
Na avaliação da nota técnica, além do impacto ambiental, o avanço do garimpo ilegal traz outra consequência para os Yanomami: a desestabilização dos serviços de saúde dentro do território. Isto porque, conforme as organizações, os profissionais de saúde não se sentem seguros para visitar comunidades próximas a áreas de garimpo.
Dados do Ministério da Saúde mostram que as ações para combater a desassistência aos Yanomami impactaram na queda de apenas 10% nos casos fatais se comparados ao ano de 2022, quando 343 indígenas morreram. Em 2023, foram registradas 308 mortes.
Ao analisar o cenário atual, as organizações destacam que destas, 66 mortes foram por doenças do aparelho respiratório. Para eles, o número tem relação com a falta de assistência primária nas comunidades, pois os indígenas tem baixa resistência imunológica aos patógenos respiratórios, fazendo com que quadro gripais evoluam para pneumonias.
O documento relembra que o modelo de atenção à saúde na Terra Yanomami foi estruturado para que, além da presença permanente de funcionários nas unidades básicas, fossem realizadas também visitas periódicas e frequentes às comunidades, o que não ocorre devido à permanência do garimpo.
“Quando você analisa os dados de óbito você verifica que a maior parte deles se deu exatamente por situações como essa, envolvendo doenças do aparelho respiratório e no caso a pneumonia, principalmente em crianças […] A permanência ainda que seja de grupos menores de garimpeiros cria uma situação de insegurança e de instabilidade que você inibe a realização das atividades de saúde”,
explicou o pesquisador.
A insegurança trazida pela presença do garimpo também afeta o trabalho de imunização feito pelas equipes de saúde. A nota indica que entre crianças de até um ano, na grande maioria dos polos (29), menos da metade das crianças recebeu todas as vacinas, e na faixa de 1 a 4 anos, 14 polos tiveram menos da metade das crianças totalmente vacinadas.
Na região de Xitei, por exemplo, as equipes de saúde estão proibidas de visitar as casas dos indígenas devido aos episódios de violência e ameaça na região. No local, a vacinação abrangeu apenas 1,8% das crianças de até 1 ano, e 4,2% das crianças de 1 a 4 anos.
Além disso, o documento destaca a explosão da malária no território. Os números, segundo as organizações, mostram que o Distrito não conseguiu alterar a trajetória da doença ao longo do ano. De janeiro a outubro foram registrados 25 mil casos da doença.
A invasão garimpeira e o avanço da doença tem relação devido aos buracos que os garimpeiros abrem nos rios para a extração do ouro, que se tornam focos de água parada, ideais para a proliferação dos mosquitos que transmitem os parasitas causadores da malária.
Recomendações ao governo federal
Além de avaliar o cenário, pesquisadores e lideranças responsáveis pela nota listaram o que o governo federal pode fazer para melhorar a resposta no atendimento aos Yanomami. Entre outras coisas, foi sugerido:
– Retomada urgente de operações de desintrusão de garimpeiros no Território;
– Fortalecer a articulação entre as ações setoriais e planejar o desenvolvimento das ações de maneira integrada, através de uma coordenação operacional e intersetorial da emergência Yanomami;
– Elaboração de um Plano de Proteção Territorial
– Desenvolver um plano para estimular o desarmamento voluntário nas regiões sensíveis;
– Apoiar o reassentamento de comunidades afetadas pelo garimpo que manifestam o interesse de mudar-se para um novo local por não ter condições mínimas de permanência, com apoio logístico, ferramentas, infraestrutura para atendimento à saúde e acompanhamento próximo durante sua instalação;
– Promoção de ajustes na resposta à crise sanitária;
– Criação de uma força tarefa para o controle da malária na TIY;
– Ampliação das parcerias e cooperações técnicas com organizações especializadas em saúde que possam subsidiar soluções práticas capazes de responder à crise sanitária na Terra Indígena Yanomami.
Um ano de emergência Yanomami
Em janeiro de 2023, o governo Lula, recém-empossado, expôs a situação no território, decretou emergência de saúde pública e deflagrou uma série de operações para garantir assistência aos indígenas e conter o garimpo ilegal.
Na avaliação do Ministério Público Federal e de lideranças indígenas, a União conseguiu dar uma resposta de emergência, mas não avançou o suficiente, e o cenário devastador segue o mesmo um ano depois. Ainda há fome, malária, centenas de mortes e devastação com o garimpo.
Segundo o governo, em 2023 foi criado um centro de operações de emergências em saúde pública na região. Foram realizados mais 13 mil atendimentos de saúde e enviados 4,3 milhões de unidades de medicamentos e insumos.
Em janeiro deste ano uma comitiva do governo federal esteve em Roraima e anunciou “ações permanentes” no território. Dias depois, a Polícia Federal retomou as operações na terra indígena.
O território é alvo há décadas do garimpo ilegal, mas a invasão se intensificou nos últimos anos. A atividade impacta diretamente o modo de vida dos povos originários. A invasão destrói o meio ambiente, causa violência, conflitos armados e poluição dos rios devido ao uso do mercúrio.