Na terra dos Guajajara, mudas amazônicas oferecem esperança para os rios que secam

No Maranhão, o avanço da monocultura e décadas de destruição florestal provocaram uma mudança nos padrões de chuva. Pesquisadores afirmam que esse tipo de reflorestamento poderia ajudar a restaurar o equilíbrio dos ciclos da água na região.

Espécies nativas da Floresta Amazônica, como o buriti, plantadas ao longo das margens das nascentes na Terra Indígena Rio Pindaré. Foto: Ana Ionova/Mongabay

Sob o dossel esmeralda da Floresta Amazônica, Janaína Guajajara olha para uma poça de água turva, pouco maior do que uma banheira. Ao longo de suas margens, delicadas mudas de buriti brotavam do solo.

A pequena piscina, escondida em um pedaço de floresta na Terra Indígena Rio Pindaré, no Maranhão, é na verdade uma parte crucial de um sistema de água muito maior nessa região. Quase invisível para o olho destreinado, ela forma um filete de água que passa serpenteando por nós a caminho do Rio Pindaré, a alguns quilômetros dali, sendo parte das nascentes que abastecem o rio na floresta.

Para o povo Guajajara, que vive aqui há séculos, essas nascentes têm um significado mais profundo. “Elas são sagradas”, diz Arlete Guajajara, líder indígena da reserva do Rio Pindaré. “Elas pertencem aos espíritos de nossos ancestrais. É aqui que eles vão descansar.”

Os rios e córregos alimentados por essas nascentes são essenciais para a sobrevivência dos Guajajara. Eles dependem dessas águas para pescar, beber e se banhar. É também onde realizam rituais como a celebração da Menina Moça, um importante rito de passagem que marca o início da vida adulta para as mulheres Guajajara.

Mas esses corpos d’água estão ameaçados, pois a agricultura engole a floresta ao redor e traz chuvas mais fracas, estações secas mais longas e temperaturas mais altas. No ano passado, os níveis de água dos rios, aqui e em outros lugares da Amazônia, caíram a níveis historicamente baixos em meio a uma seca severa que os cientistas associaram ao desmatamento e às mudanças climáticas.

Nesse cenário, a preservação das nascentes que alimentam os rios se tornou ainda mais urgente para o povo Guajajara. Em 2018, eles se embrenharam na floresta tropical em uma tentativa de localizar e mapear essas nascentes. Os idosos da aldeia lideraram as expedições, reconstituindo as lembranças perdidas de onde elas costumavam estar. Quando as encontraram, muitas das nascentes estavam reduzidas a meras poças.

“Sabíamos que tínhamos que fazer alguma coisa”, diz Arlete Guajajara. “Não podíamos simplesmente deixá-las desaparecer.”

Então, no ano passado, o povo Guajajara escolheu uma das nascentes como um modelo de teste. Na esperança de reverter décadas de destruição da floresta em suas terras, eles plantaram espécies nativas da Amazônia — como buriti, pupunha e açaí — ao longo de suas margens.

Em vez de usar sementes, os Guajajara vasculharam a floresta tropical coletando mudas saudáveis que haviam se enraizado em outros lugares, transplantando-as para as nascentes. “Fizemos isso de maneira tradicional, como os anciãos nos ensinaram”, diz Arlete.

A comunidade indígena espera que as plantas novas possam evitar que as nascentes sequem, fortalecendo o solo ao redor delas. Os cientistas dizem que o plantio em torno das nascentes pode evitar a erosão e ajudar o solo a absorver mais chuva, reabastecendo as reservas de água subterrânea. À medida que as árvores amadurecem, elas liberam volumes cada vez maiores de umidade no ar ao seu redor, ajudando a regular o clima nessa área da floresta tropical.

“É uma alegria imensa, não apenas para nossos anciãos e nossos ancestrais, mas para todo o nosso território”, diz Janaína. “Quando plantamos, estamos recuperando tudo o que nos foi tirado.”

Legado de destruição

Nas profundezas da floresta tropical, não há sinal da seca que assola os campos de soja empoeirados que se estendem por quilômetros além da reserva do Rio Pindaré. Aqui, o ar é pegajoso e úmido. Os insetos se movem em densos enxames e os animais se agitam no mato. O arroz, a mandioca e a banana crescem em abundância ao lado de espécies florestais como o açaí.

A Terra Indígena Rio Pindaré se estende por cerca de 15 mil hectares no município de Bom Jardim, no Maranhão. Sob proteção federal desde 1982, está localizada em um corredor ecológico composto por sete reservas, algumas delas habitadas por povos indígenas que vivem em isolamento voluntário.

Após décadas de destruição, a maior parte da floresta tropical ao redor foi devastada pela agricultura em larga escala. No entanto, apesar das frequentes incursões de forasteiros ao longo dos anos, o Rio Pindaré continua sendo uma ilha de floresta tropical, intacta apesar da voracidade do desenvolvimento econômico.

Imagem de satélite mostra a área de floresta preservada dentro da Terra Indígena Rio Pindaré. Imagem: Reprodução/Mongabay

“Esta é a última floresta aqui”, diz um funcionário da Funai, que pediu para não ter seu nome revelado porque não está autorizado a falar com a mídia. “E os povos indígenas dependem dela. É por isso que é tão importante protegê-la.”

Essa área da Amazônia brasileira era praticamente isolada até algumas décadas atrás, quando o regime militar — que chegou ao poder nos anos 60 – pressionou para povoá-lo como forma de garantir sua soberania. Chamando-a de “terra sem homens para homens sem terra”, o regime distribuiu lotes a milhares de migrantes de outras partes do Brasil e, nas duas décadas seguintes, construiu uma série de estradas que cortam a floresta.

Um desses projetos foi a BR-316, uma rodovia federal de 2 mil quilômetros que corta a TI Rio Pindaré ao meio. A estrada abriu o acesso à floresta como nunca antes, atraindo madeireiros ilegais que agora podiam explorar as terras do povo Guajajara em busca de árvores com alto valor der mercado;

“O impacto foi enorme”, diz Caroline Yoshida, consultora técnica do ISPN (Instituto Sociedade, População e Natureza), uma organização sem fins lucrativos que trabalha com grupos indígenas na região. “Porque a estrada corta bem o meio da terra deles. Com isso, a caça selvagem diminuiu e a pressão em seu território aumentou.”

Na década de 1980, a construção da Estrada de Ferro Carajás, que se estende por 891 quilômetros da capital do Maranhão até o estado vizinho do Pará, intensificou ainda mais a onda de migração e criou uma nova fronteira de desmatamento na região. Em pouco tempo, surgiram pólos madeireiros em torno do Rio Pindaré.

Nas últimas décadas, as incursões no Rio Pindaré continuaram, com colonos de aldeias precárias do outro lado do rio invadindo regularmente o território para caçar e pescar ilegalmente, de acordo com os indígenas e as autoridades.

Enquanto isso, além do território, a monocultura tomou conta de grandes áreas da região. A soja, o milho e o gado impulsionam a economia local, com o apoio inabalável de políticos poderosos e grupos de lobby.

Com o recuo da vegetação nativa, os povos indígenas estão sentindo a pressão, pois as florestas, os rios e as nascentes em seus próprios territórios estão cada vez mais secos, diz Yoshida.

“Eles estão reflorestando para que possam manter essas nascentes, para que elas não morram dentro do território”, diz ela. “Para que não percam essa riqueza.”

Um tesouro ameaçado

As nascentes são importantes tanto por sua função especial no ciclo da água quanto pela natureza frágil que as torna vulneráveis a choques climáticos como a seca.

Essas nascentes se formam quando os reservatórios de água subterrânea emergem para a superfície do solo, criando pequenas correntes de água. Os afluentes viajam rio abaixo para se juntar a outros, formando córregos e rios maiores. Em todo o Brasil, há cerca de 1,8 milhão de nascentes espalhadas por todos os biomas, segundo estimativas do IBGE.

No entanto, na Floresta Amazônica, uma crise hídrica cada vez mais intensa está colocando as nascentes em risco. Estudos mostram que, em toda essa região do Brasil, a estação seca anual se tornou cerca de um mês mais longa nos últimos cinquenta anos. Quando as chuvas finalmente chegam, é comum que sejam escassas e irregulares, trazendo pouco alívio para a estiagem.

Com o avanço da monocultura no Maranhão, os ciclos de chuva foram interrompidos e os rios e córregos começaram a secar. Parte da única floresta tropical remanescente do estado fica em um grupo de terras indígenas, onde vive o povo Guajajara. Foto: Ana Ionova/Mongabay

Em meio a condições climáticas mais secas, menos precipitação está se infiltrando nos reservatórios subterrâneos sob as nascentes, e algumas dessas nascentes cruciais estão diminuindo. O que é bem preocupante:, os pesquisadores ainda não sabem se — e como — essas nascentes podem ser restauradas quando secarem completamente.

“Quando você perde um corpo d’água, pode levar dezenas ou até centenas de anos para se recuperar”, diz Victor Salviati, superintendente de inovação da Fundação para a Sustentabilidade da Amazônia (FAS), organização sem fins lucrativos que desenvolveu projetos semelhantes de restauração florestal no estado do Amazonas.

Isso se deve ao fato de que restaurar a rica biodiversidade e o delicado equilíbrio ecológico das fontes de água que secaram é um processo longo e complexo, explica Salviati. “Com a seca que temos agora na Amazônia, é difícil esperar 50 a 60 anos para recuperar uma nascente. Portanto, é melhor preservar e proteger as que temos.”

Plantar espécies nativas ao longo das margens das nascentes — restaurando o que é conhecido como mata ciliar — também é uma forma importante de fortalecer o solo e evitar a erosão, de acordo com Salviati. “Quando a chuva cai e você tem um solo saudável, ele pode filtrar a água da chuva e devolvê-la ao córrego ou rio, de forma natural”, diz ele.

Enquanto isso, os cientistas afirmam que a restauração de florestas nativas, no Brasil e em outros países, representa uma das melhores esperanças do planeta para mitigar a mudança climática, tanto local quanto globalmente. Pesquisas também sugerem que essas florestas restauradas podem ajudar a regular as chuvas e evitar que rios importantes sequem.

Nesse cenário, a restauração das áreas ao redor das nascentes, que alimentam rios importantes em toda a Amazônia, é uma parte crucial da batalha para conter as interrupções do ciclo hidrológico, de acordo com Salviati. “Qualquer iniciativa para proteger as nascentes e restaurar a floresta ao redor delas: esse é o melhor investimento que podemos fazer.”

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Ana Ionova com tradução de Carol De Marchi e André Cherri

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