Entenda o que está acontecendo nas águas que banham Alter do Chão, o “Caribe amazônico”

Uma ‘mancha’ turva surgiu nas águas da vila turística paraense, alterando a coloração típica em tom esverdeado para uma água barrenta.

O primeiro mês de 2022 iniciou de uma forma preocupante para os habitantes do chamado “Caribe Amazônico”. As águas cristalinas da vila de Alter do Chão, no Pará, apresentaram uma coloração diferente do que a habitual, transformando-se em uma água barrenta. A mancha inicia na foz do Rio Tapajós e se estende por quilômetros pelos seus afluentes, até chegar no famoso balneário paraense.

Alter do Chão é uma vila que faz parte do município de Santarém, contando com pouco mais de 6 mil habitantes. Localizada a 1350 km da capital Belém, fica à margem direita do Rio Tapajós e é considerada como o caribe amazônico por conta de suas praias e águas cristalinas e esverdeadas. Sua principal fonte de renda é o turismo, com maior fluxo de visitantes na época do verão amazônico, que acontece entre os meses de Agosto a Dezembro.

Foto: Reprodução/Instagram-erikjenningssimoes

A gigantesca mancha marrom começou a chamar atenção de todos no dia 22 de dezembro de 2021, por meio de uma publicação feita em uma rede social pelo médico Erik Jenning, onde denunciava a chegada da lama em Alter do Chão. Na publicação, ele explica que a mancha não era algo “que surgiu do nada”, mas que já estava afetando nascentes do Rio Tapajós desde, no mínimo, Agosto de 2019.  

No dia 8 de abril de 2021, um levantamento feito pelo InfoAmazonia juntamente com a Earthrise Media revelava que a mancha de poluição dos garimpos de ouro na bacia do Tapajós já se estendia por centenas de quilômetros. As imagens registradas por satélites mostram que a mancha de sedimentos gerada por garimpos de ouro na bacia do rio Tapajós já se estendia por 500 km entre Jacareacanga até pouco antes de Santarém. 

A atividade cresceu 70% nos últimos cinco anos na porção mais impactada da bacia, entre o Rio Jamanxim e a Serra do Cachimbo. Com as imagens de satélites da Agência Espacial Europeia, a Earthrise Media encontrou garimpos em 4.700 pontos da bacia do Tapajós no ano de 2020, contra 2.700 parcelas em 2016. 

De acordo com estimativas produzidas por organizações não governamentais, cerca de 60 mil garimpeiros atuam na bacia do Tapajós, boa parte dos 110 mil estimados para toda a Amazônia brasileira. Ao longo do rio, há mais de duas mil dragas ilegais e 850 garimpos legalizados. A busca do metal esburaca a terra com fortes bombas d’água e desmata, abrindo estradas para equipamentos, suprimentos e minerais. 

Sem a proteção da floresta, o solo chega aos rios carregado pelas intensas chuvas. A situação está tão preocupante, que a trajetória desses sedimentos pode ser vista do espaço, até mesmo pelo site de localização Google Earth. 

Mancha que se estende pelo rio. A direita, o Rio Tapajós, a esquerda, o afluente Rio Jamanxim. Foto: Reprodução/ Google Earth

 O Rio Tapajós

O Rio Tapajós é formado pelo encontro do Rio Teles Pires com o Rio Juruena, em Barra de São Manuel na fronteira entre Pará e Mato Grosso, e percorre uma extensão de aproximadamente 800 km até desaguar no Amazonas. A bacia está distribuída pelos Estados do Mato Grosso, Pará, Rondônia e Amazonas, ocupando uma área total de 492.263 km2, com ordem de 555 km de largura e comprimento de 1.457 km.

Setenta e três municípios estão situados nessa bacia, sendo 59 em Mato Grosso, 11 no Pará, dois no Amazonas e um em Rondônia. Está contido na Ecorregião Aquática Xingu/Tapajós, uma das cinco ecorregiões aquáticas consideradas prioritárias para a pesquisa no Brasil pelo Ministério da Ciência e Tecnologia a partir da ‘Oficina de Trabalho Ecorregiões Aquáticas do Brasil’, promovida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em parceria com a Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente.

Segundo o Map Biomas, na foz do Tapajós com o Rio Amazonas, forma-se um sistema hidrodinâmico interconectado por canais, característico de um sistema de “rias afogadas”. Quando o nível das águas no Amazonas está elevando no período de cheia, os canais que conectam o sistema Amazonas-Tapajós passam a injetar um maior volume de sedimentos que o observado no período de águas baixas. 

Esse aporte sedimentar direto, vindo do contato Amazonas-Tapajós e de seus canais secundários, constitui uma característica hidrogeomorfológica importante para o surgimento de plumas de sedimentos na foz do Rio Tapajós.

Foto: Reprodução/Nota Técnica Mapbiomas

O Rio Tapajós carrega toda a carga sedimentar que vem do Rio Amazonas. Uma tese de mestrado publicada em 2019 por Priscila Valéria Tavares Gozzi para a Universidade Federal do Pará (UFPA), aponta que a salinização que está ocorrendo no Rio Tapajós dificulta a descarga dos sedimentos, diminuindo a intensidade da corrente.

De acordo com o estudo, a carga sedimentar do Rio Amazonas, alcança até 30 km do interior do Rio Tapajós. A principal fonte é proveniente da Cordilheira Andina. A drenagem da margem esquerda é considerada esparsa, isto é, são espaços naturais com pouca ou nenhuma vegetação, enquanto que na margem direita, a drenagem tem rios mais abundantes e extensos, contribuindo com maior aporte sedimentar (produto da produção sedimentar pela área de captação de drenagem).

Alter do Chão está localizada na margem direita do Tapajós, justamente na área onde o aporte sedimentar fica mais concentrado.

“Os sedimentos são provenientes de granitóides e rochas metamórficas (mica-xistos) intemperizadas ou das sequências sedimentares derivadas das mesmas, como é o caso dos depósitos da Formação Alter do Chão, que frequentemente afloram nas margens do lago. Estas fontes, bastante diversificadas, estão relacionadas ao retrabalhamento tanto na porção distal quanto proximal do lago, como é sugerido pelos aspectos morfológicos dos grãos e pela assembleia de minerais pesados.” 

Trecho do estudo ‘Mineralogia e geoquímica dos sedimentos de fundo do Rio-Lago Tapajós – PA’, de Priscila Valéria Tavares Gozzi em 2019.

Ao todo, 16 tipos de minerais foram detectados durante o levantamento da tese, mas entre os minerais pesados, conhecidos como pedras preciosas, mais encontrados estão o Zircão, a Turmalina, Rutilo e a Cianita. Há também a presença do ouro, mais procurado pelos garimpeiros.

Foto: Reprodução/’Mineralogia e geoquímica dos sedimentos de fundo do Rio-Lago Tapajós – PA’, de Priscila Valéria Tavares Gozzi em 2019

Causas da contaminação

Segundo a nota técnica divulgada no dia 24 de janeiro de 2022 pelo Map Biomas, além do carregamento de sedimentos que segue pelo Rio Amazonas, na época de enchente, adentrando o Tapajós através de canais que conectam ambos rios, recentemente esse aumento de turbidez tem sido atribuído à exploração garimpeira na Bacia do Tapajós no trecho que vai desde Jacareacanga até Santarém, área de estudo do Map Biomas. Também foram avaliados pontos de descarga ao longo do rio Tapajós e a foz dos rios Crepori e Jamaxim, dada a intensa atividade garimpeira nestes rios.

“O garimpo ilegal na Amazônia, tanto terrestre quanto em rios (balsas), tem crescido nos últimos anos. A Bacia do Tapajós é uma das regiões onde este crescimento foi mais expressivo no Brasil, e é onde a área de garimpo triplicou nos últimos 10 anos. Um dos principais impactos dessa atividade, é o transporte de sedimentos pelos rios e lagos da Amazônia. Para que possa iniciar a busca por ouro, a atividade garimpeira desmata e escava o solo amazônico ou draga o fundo dos rios. Os sedimentos desta atividade são descartados diretamente das plantas de extração (ou lixiviados pelas chuvas, já que perderam a proteção florestal) para os rios. Esta adição de sedimentos altera as características físico-químicas da água e por consequência, a cor de rios e lagos”, relatam na nota.

Foto: Reprodução/Observatório do Clima

O Portal Amazônia conversou com o Professor do Programa de Pós Graduação em Educação em Ensino de Ciências na Amazônia, José Camilo Ramos de Souza, para entender melhor a situação da contaminação.

“O processo de formação da Amazônia tem três tipos de águas. Nós temos a água preta, que são todos os rios que estão na margem esquerda do Rio Amazonas, como o Rio Negro, como o Rio Guatumã e o Rio Trombetas. Nós temos o rio de água clara, os que estão praticamente na margem direita e tem uma outra formação geológica, tendo como exemplo maior o Rio Tapajós. E você vai ter o rio de água branca como o Rio Amazonas, o Rio Madeira, o Juruá, o rio Içá, que estão em processo de formação ainda e tem a coloração amarelada tipo barrenta, em decorrência do fenômeno da terra caída e também porque está definido o seu canal. O Rio Tapajós é centro de água clara de tom esverdeado, ele vem ao longo dos anos geológicos mantendo esse padrão”, explica o professor.

Leia também: Água Branca: Saiba mais sobre a última nascente viva de igarapé em Manaus e sua importância

José Camilo esclarece ainda: 

“Nós temos duas situações que se apresentam muito presentes, uma delas é o avanço da pecuária sobre os terrenos onde acontece o desmatamento e também o assoreamento do rio. O outro é o avanço da produção de soja, no município de Santarém, no Estado do Pará, que vem acarretando um grande desmatamento, sendo uma das interferências no rio. Mas, ao longo dos anos, também vem na região de Itaituba que também é banhada pelo Rio Tapajós, a exploração mineralógica. Então, para se ter a exploração mineralógica se faz geralmente dentro do canal, onde o ouro se encontra. Com a retirada do ouro do canal, eles precisam realizar o processo de lavagem.

Então, vários sedimentos nesse processo de lavagem são levados para dentro do rio e isso vai alterando o padrão físico-químico da água, mudando a coloração da água. Recentemente, houve esse tom amarelado por aumento da exploração mineralógica nas proximidades e no próprio leito do rio Tapajós e da nascente. Com o processo de vazão do próprio rio, o acúmulo de lamas e tudo mais, acaba alterando a coloração do Rio Tapajós. Além disso, junto com essa alteração da coloração do rio, vem a concentração de mercúrio. Pois, para a separação do ouro é necessário o uso da substância, para poder fazer a limpeza”.

Foto: Reprodução/Observatório do Clima

Em agosto, o Rio Amazonas encontra-se em seu nível baixo, transportando menos sedimento para foz do Rio Tapajós. Em dezembro de 2021, com o nível d’água acima do normal para o mês, os canais que conectam o Amazonas ao Tapajós passam a transportar mais sedimento que o observado no mês de agosto.

De acordo com a bióloga Heloisa Meneses, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), a grande concentração de garimpos está na região do alto e médio Tapajós. Como consequência dos garimpos ilegais, muitos resíduos acabam sendo liberados na água, além de promover uma movimentação do solo, devido a ação das máquinas, fazendo com que ocorra a alteração da dinâmica dos rios, do ponto de vista físico, químico e biológico.

“A mudança na cor da água pode ser uma das consequências desta alteração, no entanto precisa de estudos mais aprofundados para comprovar. Porém é uma possibilidade válida, porque o garimpo polui o rio e vai reduzindo a qualidade da água e a composição biótica que mantém o Rio “sadio”. A mudança na composição biótica da água, assim como dos fatores abióticos, altera o funcionamento da cadeia alimentar e consequentemente do ecossistema aquático. Uma das principais consequências do garimpo é a liberação de mercúrio na atmosfera e na água, que contamina os peixes e consequentemente os moradores que se alimentam frequentemente de peixe proveniente deste rio”,

explica a bióloga Heloisa Meneses.

Foto: Reprodução/MapBiomas

A contaminação de mercúrio nas águas, atinge também a saúde das pessoas que vivem próximas ao Rio Tapajós. A bióloga realizou uma pesquisa que avalia os efeitos da exposição mercurial para a saúde humana na região do Baixo Tapajós. A pesquisa avaliou a exposição ambiental, isto é, o consumo frequente de peixe contaminado com metilmercúrio. O artigo tem previsão para ser divulgado em Fevereiro de 2022.

Durante o período de 2014 a 2019 participaram da pesquisa 500 pessoas (homens e mulheres, de 18 a 80 anos), residentes em Santarém, localizado no Baixo Tapajós. Cerca de 80% dos participantes têm níveis de mercúrio (Hg) acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), que considera normal o nível de até 10 microgramas por litro de mercúrio no sangue.

Um estudo realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com o World Wide Fund For Nature (WWF-Brasil), apresentada em 30 de outubro de 2020, mostra uma contaminação por mercúrio de 100% dos indígenas Munduruku. De cada dez participantes, seis apresentaram níveis de mercúrio acima de limites seguros: cerca de 57,9% dos participantes apresentaram níveis de mercúrio acima de 6µg.g-1, considerado o limite máximo de segurança estabelecido por agências de saúde.

Providências

A Polícia Federal enviou peritos para Santarém, no oeste do Pará, e abriu um inquérito para investigar as causas da mudança na cor das águas de Alter do Chão. Os agentes fariam um sobrevoo na área no dia 24 (segunda-feira). A fiscalização aérea será realizada com duas aeronaves do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio). 

Além da Polícia Federal e do ICMBio, a comitiva será composta por integrantes do Ministério Público, técnicos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pesquisadores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Além disso, os peritos da PF irão colher amostras da água turva em diferentes pontos do rio para posterior análise e laudo pericial.

Técnicos do Ibama e da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) iniciaram, no dia 19 de janeiro, uma inspeção de emergência no Rio Tapajós. Amostras foram coletadas e encaminhadas para análise após a água apresentar a coloração turva. A iniciativa contou ainda com o apoio do Corpo de Bombeiros do Pará.

A UFOPA está mobilizando um Grupo de Trabalho interinstitucional para realização das pesquisas para entender os impactos que a mancha pode causar. 

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