Criança bebe água filtrada na escola da comunidade indígena de Yomibato, no Parque Nacional de Manu, Peru. Foto: Glenn Shepard/Rainforest Flow
As mudanças climáticas precisam estar na agenda das políticas públicas de saúde. Isso ficou evidente durante o encontro “Mitigação do impacto das mudanças climáticas na saúde pública por meio da abordagem de saúde única”, ocorrido no Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), durante a Conferência das Partes (COP30).
Especialistas de diferentes partes do mundo relataram como o equilíbrio sistêmico mantém a saúde global e trouxeram exemplos de como doenças infecciosas, especialmente as transmitidas por vetores, e as zoonoses representam uma preocupação internacional, pela alta prevalência, pelos graves impactos à saúde e à economia e pelas ligações com os efeitos do clima.
O relator do evento, Glenn Shepard, doutor em antropologia médica e pesquisador do MPEG, destacou que o grupo construiu uma minuta de “declaração de consenso dos especialistas”, que, basicamente, fala da necessidade de reconhecer a conexão entre a saúde planetária e a ambiental. A pesquisa do antropólogo também contempla essa questão.
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Participaram da discussão – que se deu de forma híbrida no dia 12 de novembro, com reunião presencial no Campus de Pesquisa do MPEG, em Belém-PA – especialistas de diferentes países (como China, Filipinas, Indonésia, Marrocos e Brasil), entre os quais:
- Minghui Ren, vice-presidente da Associação Chinesa de Medicina Preventiva (CPMA) e diretor do Instituto de Saúde Global;
- Hannah Marcus, coordenadora do Grupo de Trabalho de Meio Ambiente e Saúde da Federação Mundial de Associações de Saúde Pública;
- Luis Eugenio de Souza, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia;
- Mayumi Duarte Wakimoto, chefe de Vigilância em Saúde do Instituto Nacional de Infecções Evandro Chagas;
- e Christovam Barcellos, pesquisador sênior do Observatório de Clima e Saúde do ICICT, Fundação Oswaldo Cruz.
De acordo com o relator do encontro, já é um consenso entre os estudiosos da saúde única (one health) o fato de que, quando a biodiversidade se perde, aumentam os riscos. Sabe-se que as mudanças climáticas influenciam significativamente a disseminação e a dinâmica de transmissão das doenças. Isso ocorre em decorrência da alteração dos padrões de temperatura, da precipitação, da umidade, da ocorrência de inundações e de secas, porque esses eventos afetam a ecologia dos vetores, as interações com os hospedeiros e os habitats.

Impactos à nutrição e à saúde
Por exemplo, é fato que as abelhas têm um papel importante na polinização de uma diversidade de plantas e, consequentemente, na nutrição humana, e sabe-se que o desmatamento e a monocultura é uma ameaça às espécies. “Sem as abelhas, a gente não come”, frisou Glenn Shepard.
Um outro cenário amplamente citado no encontro foi o das mudanças climáticas, especialmente o efeito do aumento da temperatura, mudando o comportamento de doenças, como malária e dengue, e a fragmentação do habitat dos animais alterando as relações entre predadores e presas e impactando a saúde humana.
“A expansão da dengue é um exemplo dos efeitos das alterações climáticas à saúde. Os pesquisadores apontaram o avanço dos assentamentos humanos nas florestas, o armazenamento de água por causa da seca e das cheias e o aumento de temperatura fazendo o ciclo de vida do mosquito ficar mais curto e, consequentemente, aumentando a transmissão da doença. Em relação à malária, os dados apontam que as mortes globais diminuíram entre 2000 e 2023 devido a ações de prevenção, mas, a partir de 2023, começaram a subir de novo. O aumento de eventos climáticos extremos, da seca extrema aumenta a transmissão de malária, devido aos impactos em algumas espécies de carapanã, por exemplo”.
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O que os estudiosos defendem é uma abordagem multidisciplinar envolvendo ciência climática, biologia de vetores, saúde pública e conservação. Isso tudo com políticas coordenadas em níveis nacional e internacional.
“A fala de Carlos Nobre (cientista e meteorologista renomado), no encerramento da programação do Museu Goeldi na COP30, também reacende a preocupação sobre a possibilidade de que alguma doença que, hoje, é endêmica na Amazônia e restrita a lugares remotos possa escalar e se tornar a próxima pandemia global, devido à violência contra o bioma, ao desmatamento, ao tráfico ilegal de madeira de animais, à expansão da agropecuária e à extração desordenada de ouro, aliado ao aumento do fluxo de gente nesses lugares remotos”, alertou.
Custos da destruição
O pesquisador Glenn Shepard lembrou, ainda, que, durante o encontro, os especialistas em saúde única comentaram sobre os custos econômicos com a perda da biodiversidade e que como eles impactam a saúde humana e ecossistêmica. Segundo ele, estima-se que essa perda chegue a até 25% do produto bruto global. Paradoxalmente, os pesquisadores apontaram que há 1,7 trilhões de dólares em subsídios para atividades que contribuem para a destruição, como petróleo, agricultura não sustentável etc.
“Então, é como se os governos estivessem pagando pela destruição da saúde. Essa é a contradição. Nesse sentido, houve alguns encaminhamentos no sentido de expandir o conhecimento sobre saúde única. No Brasil, essa abordagem está crescendo, ganhando tração entre os pesquisadores em saúde pública, mas não entre os médicos e não entre os políticos”, disse.
Por outro lado, o grupo discutiu a preocupação com o alto uso de antibióticos na pecuária, que teria o efeito de aumentar a resistência de micróbios. Estima-se que esse uso vai aumentar em 30% até 2040. Para os especialistas, as mudanças climáticas geram condições ao espalhamento de organismos resistentes (humanos e de rebanhos). Cerca de 100 países, incluindo a China, já teriam iniciativas vinculadas à pecuária sustentável, com redução do uso de drogas, promoção de conexões entre produção de alimentos, incentivos econômicos e sistemas. O grupo discutiu como essas práticas poderiam inspirar a agropecuária mais sustentável no Brasil.

Encaminhamentos
Para o doutor em antropologia médica o encontro ocorrido durante a COP não encerrou a discussão em torno da necessidade de se pensar a saúde de forma integrada. Pelo contrário, acendeu a preocupação e levantou alguns possíveis encaminhamentos, como a necessidade de que cientistas e sociedade civil possam atuar na sensibilização de governos para dar andamento a políticas de estabilização climática como uma forma de contribuir para a saúde dos seres humanos e animais e dos ecossistemas; a construção do documento com recomendações e princípios pactuados pelos especialistas em saúde única; e de criação de museus de saúde única em cada bioma, com o Museu Goeldi como possível espaço para essa iniciativa na Amazônia.
Em relação à minuta da “declaração de consenso dos especialistas”, Glenn Shepard explicou que foi uma construção durante o evento a fim de reforçar a abordagem em relação à saúde única nas respostas às mudanças climáticas.
“Houve uma sugestão, pelos especialistas brasileiros, de entregar esse documento ao Ministério da Saúde, que, diferente do que ocorre em outros países, está aberto a abordagens de saúde complementar mais holísticas, tanto no sentido de incorporar a medicina ayurvédica, a medicina indígena, a medicina chinesa, a medicina tradicional brasileira, quanto a essas abordagens de saúde única. Há uma expectativa de que essa visão seja fortalecida”, avaliou o pesquisador do Museu Goeldi, Glenn Shepard.
Entre os pontos consensuados:
- está o fortalecimento de estruturas de governança que facilitem a coordenação entre os setores de saúde humana, saúde animal, meio ambiente e social, para desenvolver estratégias abrangentes de mitigação, e não apenas respostas de adaptação;
- como também o estabelecimento de plataformas e mecanismos que promovam a troca contínua de conhecimento e o compartilhamento de boas práticas na implementação do One Health;
- a construção de parcerias entre governos, organizações internacionais, instituições acadêmicas, sociedade civil e entidades do setor privado para aproveitar a expertise e os recursos coletivos para uma implementação eficaz da saúde única;
- o investimento em pesquisa e inovação que avancem nossa compreensão das interconexões clima-saúde;
- e o estabelecimento de mecanismos abrangentes de monitoramento e avaliação para avaliar a relação custo-efetividade das intervenções One Health na mitigação climática e orientar a melhoria contínua.
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Pesquisas na Amazônia
O pesquisador Glenn Shepard vem observando as implicações da saúde animal na saúde humana, o que tem relação com essa abordagem de saúde única. No Museu Goeldi desde 2009, o antropólogo tem trabalhado nas áreas de etnologia indígena, etnoecologia e etnobiologia, e antropologia médica com povos tradicionais da Amazônia. Integrante do projeto Rainforest Flow, que atua no Peru, ele observou as mudanças na saúde de comunidades após a implantação de tanques de filtragem de água que funcionam basicamente com pedras e areia.
Em dado momento da pesquisa, ficou evidente para Glenn Shepard que não adiantava apenas cuidar das pessoas com medicação e água potável, sem cuidar dos animais e do meio ambiente. Segundo ele, enquanto os dados epidemiológicos apontavam para a diminuição de doenças de veiculação hídrica, como diarreias, por exemplo, eles mostravam um aumento das zoonoses (doenças transmitidas por animais).
“Os estudos precisam se aprofundar, mas os dados apontavam para a necessidade de que, junto ao tratamento dos humanos, era necessário fazer uma intervenção veterinária e de higiene, pois o ambiente favorecia a contaminação e a recontaminação de algumas doenças, principalmente, das zoonoses”, disse.
*Com informações do Museu Goeldi
