A Iluminação dos Mortos reúne familiares e amigos no Cemitério São Bonifácio. O momento é de homenagens e confraternização.
O luto é um processo experienciado de forma diferente por cada pessoa. O Dia de Finados, por exemplo, é relacionado tanto ao sentimento de tristeza quanto ao de celebração, dependendo da cultura do local. O México é um representante famoso desse lado festivo. A sua Festa do Dia dos Mortos é discutida nas escolas, reproduzida em obras artísticas e foi considerada Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Mas esse ambiente de festa no dia 2 de novembro não é exclusividade dos mexicanos e já pode ser visto aqui, no Brasil.
Conhecido como “a Terra do Folclore”, o município de Curuçá, localizado no nordeste paraense, é palco do tradicional rito de Iluminação dos Mortos. Nesse momento, as famílias se reúnem no Cemitério São Bonifácio para homenagear a memória de parentes: enfeitam os túmulos, acendem velas para iluminar os caminhos dos falecidos e confraternizam com os amigos. Vendedores de comidas típicas e bandas de música completam o ambiente.
As dimensões sociais, econômicas, simbólicas e de pertencimento da celebração foram estudadas pela professora Valéria Fernanda Sousa Sales na tese Saudades, reencontros e manicuera: espetacularidades entrecruzadas de afeto na Iluminação dos Mortos em Curuçá-PA, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/ICA) da Universidade Federal do Pará.
Orientada pelo professor Miguel de Santa Brígida Júnior, a autora da pesquisa vivenciou essa festividade de 2017 a 2021, ao entrar em contato com o rito e conversar com os participantes da Iluminação. Contudo, além da vivência em campo, a professora também experimentou o processo de luto com a perda do pai, em 2019. “A tese foi um furacão na minha vida. Eu tive que aprender o que era iluminar um ente querido. Logo depois, veio a pandemia, em 2020, um dos maiores eventos sobre morte no mundo. Então, o estudo se transformou em uma metalinguagem, um metaprocesso. Eu estava vivendo um luto, saindo de uma depressão e era doloroso, pois falar sobre isso era falar de morto familiar”, conta a etnocenóloga de ritos fúnebres Valéria Fernanda Sales.
Comidas, flores e melhor roupa compõem o ritual
A pesquisadora utiliza o conceito autoral de corpo-cemitério, que se refere a uma territorialidade que conecta os vivos aos mortos-moradores. No caso da tese, Valéria Sales detalhou espacialmente como está organizado o Cemitério São Bonifácio, estruturado no formato de cruz pelas duas passagens principais. Ele é o Cosmos composto por microcosmos (casas-túmulo), uma capela mortuária e um centro-umbigo (cruzeiro) que conecta o mundo terreno ao espiritual.
A Iluminação dos Mortos é celebrada dentro desse corpo-cemitério, mas vários elementos compõem esse ecossistema fúnebre do lado de fora. A pesquisa destaca o doce de tapioca, que gera renda e lembranças familiares. A autora conversou com Celina Palheta, que, aos 73 anos, preparava e vendia o alimento típico da noite do evento. Ela parou de fazer os doces por problemas de saúde, em 2017, e as filhas não aprenderam a técnica, cuja dificuldade é alta e requer prática. Outro destaque na festividade é a manicuera, bebida adocicada, típica curuçaense, feita da mandiocaba. O estudo explica que a bebida é um Patrimônio Cultural de Curuçá, transmitido entre gerações, embora tenha perdido espaço em outros eventos sociais.
A espetacularidade Cemitério Fashion também é ressaltada como integrante do rito de Iluminação dos Mortos. As roupas de cor preta para representar o luto, característica em diversas culturas, perdem o lugar para a melhor vestimenta do guarda-roupa ou para camisas com fotos do parente falecido. De acordo com a pesquisa, as pessoas se vestem de afeto e de lembranças e as peças são pensadas para esse cenário de confraternização. Outro elemento abordado são as grinaldas de flores, confeccionadas com diferentes materiais, como papel crepom e folha de EVA.
A respeito dos serviços para a iluminação, a tese destaca o papel social do biscateiro, que é contratado para preparar, limpar e embelezar a casa-túmulo do falecido. “Eles têm respeito pelo lugar e consciência que ali há habitantes que eles não veem, mas existem. Um dos biscateiros fala: _ É um trabalho de respeito aos mortos e eu sinto como uma missão. É um papel social que só existe ali dentro, pois o biscateiro tem outra profissão fora desse momento”, informa Valéria Fernanda Sales.
Dinâmica teve início com a inauguração do cemitério
Construída em 1757, a igreja Nossa Senhora do Rosário era o local onde sepultavam os falecidos em Curuçá. Há registros de 55 quadras para essa finalidade. Contudo essa prática foi proibida em igrejas depois da epidemia de Febre Amarela, no século XIX. Depois disso, construíram o Cemitério São Bonifácio, cujo primeiro sepultamento foi realizado em 1856.
Essa troca cemiterial acompanhou a mudança de mentalidade da população de “a morte de si mesmo” para “a morte do outro”. Segundo a autora, com a epidemia de Febre Amarela, as pessoas passaram a ter medo da morte. Porque não poderiam planejar os próprios sepultamentos, começaram a buscar a salvação do próximo. Outra causa dessa mudança são os túmulos individuais presentes no cemitério secular, que são espaços particulares para a família visitar e manter a memória do ente querido, diferentemente da igreja-cemitério, cujos falecidos não possuíam túmulos específicos.
Campo movente
Para estudar esse ponto, Valéria Fernanda Sales realizou uma visita mediada na igreja histórica da Ordem Terceira do Carmo, em Sabará (MG), tendo em vista que a Igreja de Nossa Senhora do Rosário (Curuçá) sofreu alterações estruturais que comprometeriam a análise. Com isso, a autora cunhou o conceito de campo movente e explica que é “quando você move sua concepção de campo de pesquisa para outro lugar. Mas não poderia ser com qualquer igreja. Nesse caso, elas são semelhantes e da mesma época”.
Dois séculos depois da epidemia de Febre Amarela, outra crise de saúde alterou as dinâmicas fúnebres. Com a pandemia de covid-19, em 2020, o rito de Iluminação dos Mortos sofreu alterações, haja vista o perigo de contaminação pelo vírus. Nesse contexto, foi possível visitar os entes queridos no cemitério, mas de forma controlada e sem as festividades de outras ocasiões. “Em 2021, com a vacina e as máscaras, a população não aceitou as restrições definidas pela prefeitura local. As famílias não queriam deixar os mortos mais um ano no escuro. Então, foi decretado que o cemitério não iria fechar mais cedo”, relata a pesquisadora.
Essa reivindicação dos curuçaenses em iluminar seus entes queridos é um sinal da continuidade dessa tradição, cercada de afeto, alteridade e espetacularidades. “Acredito que, a cada ano, novas gerações continuarão a iluminar os seus mortos. Vimos muitas crianças no cemitério, acompanhadas pelos pais, aprendendo essa tradição. É um grande espetáculo à luz de velas, sendo que a luz chega não só para o outro, como também para quem acende a vela, pois iluminar é iluminar-se”, conclui Valéria Fernanda Sousa Sales.
*Por Bruno Roberto, do Jornal Beira do Rio, edição 164 (UFPA)