É o primeiro registro de formações ferruginosas microbianas desse tipo tão jovens na América Latina. As que existem aqui não possuem origem biológica e têm de centenas de milhões a bilhões de anos, aponta estudo.
Pesquisadores das universidades de São Paulo (USP) e Federal do Pará (UFPA) desvendaram a origem dos mocororôs, um tipo de formação rochosa rica em ferro que ocorre na bacia do rio Xingu, no Pará, e que pode estar ameaçada pela barragem de Belo Monte. Em estudo publicado na revista Quaternary Research, os pesquisadores mostraram que essas rochas, formadas desde 1,2 milhão de anos atrás, têm origem biológica.
É o primeiro registro de formações ferruginosas microbianas desse tipo tão jovens na América Latina. As que existem aqui não possuem origem biológica e têm de centenas de milhões a bilhões de anos.
“Encontramos nessas rochas moldes de bactérias, bem como várias células mineralizadas, em formato de nanobastões. Sabe-se que as chamadas ferrobactérias metabolizam o ferro em águas bastante oxigenadas e de acidez quase neutra, mesmo quando há baixas concentrações do metal, o que é o caso na Volta Grande do Xingu”, afirma Marília Prado Freire, primeira autora do estudo, realizado como parte de seu doutorado no Instituto de Geociências (IGc) da USP.
Os pesquisadores suspeitam que a mudança no regime de cheias e secas na Volta Grande, como é chamado o trecho do rio mais afetado pela barragem da hidrelétrica de Belo Monte, interfira na formação dessas rochas, que abrigam espécies endêmicas de peixes.
É mais um impacto da construção, que se soma aos sociais e às emissões de gases de efeito estufa, entre outros. A usina encheu os reservatórios pela primeira vez em 2016 e foi inaugurada oficialmente em 2019.
“As comunidades de micróbios que ajudam a formar os mocororôs crescem em trechos onde não se acumula muita areia e lama. Mas, para isso acontecer, é preciso ter corredeiras no rio. A barragem de Belo Monte acabou com elas nesse trecho”,
conta André Sawakuchi, professor do IGc-USP apoiado pela FAPESP e coordenador do estudo.
O pesquisador explica que, durante as cheias, o rio corre rápido e mantém áreas de pedrais livres de areia e lama ou recobertos apenas por seixos. Criam-se, portanto, pavimentos de rocha ou seixos expostos, onde crescem as comunidades microbianas que precipitam minerais de ferro, principalmente goethita. Com o fim das corredeiras, o ambiente de vida desses micróbios é perdido e as bactérias não podem formar novas camadas de mocororô.
“Um trecho de dezenas de quilômetros da Volta Grande ficou com água quase parada, com os pedrais recobertos por areia e lama. À jusante [abaixo] da barragem, há um trecho de mais de 100 quilômetros que ficou com a vazão reduzida. Houve perda desses ambientes de corredeiras”, lista o pesquisador.
Abrigo para peixes endêmicos
É impossível dissociar os mocororôs das corredeiras do Xingu e de tributários como o Iriri e o Bacajá, outros rios onde as formações estão presentes. Há pelo menos um milhão de anos, o sedimento que vem da erosão de solos das áreas de floresta é transportado pelo rio durante a estação chuvosa, mas as fortes corredeiras da Volta Grande levam o sedimento rio abaixo, moldando o ambiente e as espécies que vivem nele.
Enquanto a área da Volta Grande era dominada por corredeiras em leitos rochosos e cascalhosos antes da construção da barragem, abaixo dela as águas são historicamente mais calmas e formam ilhas pela acumulação de sedimentos arenosos e lamosos.
“No período de cheia do rio, as rochas podem quebrar e se empilhar, outras pedras que vêm com a correnteza podem se aderir a elas; podem ainda ser escavadas por redemoinhos, formando uma infinidade de hábitats para peixes e outros organismos”, explica Leandro Melo de Sousa, professor da UFPA, em Altamira, e pesquisador associado ao projeto.
Em outro estudo, publicado na revista PLOS ONE, Sousa e outros pesquisadores realizaram a primeira análise genética das populações de Baryancistrus xanthellus, uma das cerca de 200 espécies de peixes que só ocorrem nas corredeiras da bacia do Xingu.
Na fase juvenil, cascudinhos como o B. xanthellus se abrigam nas inúmeras tocas formadas nos mocororôs e se alimentam de pequenos organismos presos nas pedras ou vindos na correnteza. Tanto essas formações rochosas como o ciclo de cheias e secas são essenciais para a existência dessa e de outras espécies.
O grupo dos cascudos tem a peculiaridade de aderir às pedras com a boca, uma adaptação necessária para viver em corredeiras.
“Uma parte importante do Xingu foi modificada pela usina de Belo Monte e mudou o padrão de sedimentação desse e de rios tributários. Hoje, os sedimentos se acumulam e não são mais levados pela correnteza, transformando regiões antes muito ricas em biodiversidade em pura lama”,
aponta o pesquisador.
Sousa conta que, normalmente, durante o período de chuvas, mais ou menos entre dezembro e maio, o nível dos rios se eleva, invadindo ambientes das margens e mudando a velocidade e a temperatura da água. Muitos organismos se reproduzem justamente nessa época, aproveitando a matéria orgânica e os invertebrados que vêm da floresta para se alimentar.
“Na Amazônia, no período seco [mais ou menos entre junho e novembro] há menos água e a temperatura, a oxigenação e a transparência dos rios mudam. Mas, quando há ambientes de corredeira como os do Xingu, mesmo na seca a água flui e fica oxigenada, levando sedimentos embora. Quando esse ciclo é interrompido, como ocorre agora, muitos processos biológicos e geológicos se extinguem, diminuindo a diversidade”, explana.
Além da pesca, a perda de diversidade de peixes afeta inclusive uma das atividades econômicas da região. A coleta dos cascudinhos, que têm em média de 5 a 8 centímetros e uma enorme variação de padrões de cor, alimenta o mercado internacional de aquarismo desde os anos 1980.
Na época, garimpeiros passaram a usar os equipamentos rudimentares de mergulho empregados na busca por ouro para capturar os pequenos peixes. Algumas das espécies hoje estão ameaçadas de extinção, como o cascudo-zebra-imperial (Hypancistrus zebra).
Como forma de manter o modo de vida dos moradores locais ao mesmo tempo em que protege a fauna local, pesquisadores e ativistas buscam regularizar a criação dos cascudinhos em cativeiro. Por serem espécies ameaçadas, a prática é proibida no Brasil. No entanto, é legal em vários países, que inclusive exportam.
O que as rochas contam
Além de aliados dos peixes, os mocororôs podem ajudar a contar a história do clima e dos rios da Amazônia no último milhão de anos. Uma vez que a Volta Grande do Xingu não acumulou sedimentos ao longo desse tempo, por conta das corredeiras, não é possível determinar as variações climáticas do passado como se faz em rios que acumulam sedimentos ou mesmo em outros trechos desse mesmo rio.
A esperança é que os mocororôs desempenhem esse papel. Uma próxima etapa da pesquisa, portanto, é estimar quanto tempo demora para se formar cada lâmina que forma as camadas dessas formações rochosas, bem aparentes em um corte lateral.
Atualmente, estima-se que uma camada de cerca de um metro seja formada em até dezenas de milhares de anos, mas ainda não existe o que os especialistas chamam de método geocronológico para determinar idades com precisão suficiente para reconhecer mudanças do clima.
O primeiro passo foi dado com a determinação da idade dos mocororôs formados recentemente, com idades próximas de três mil anos, durante o projeto de doutorado de Pontien Niyonzima no IGc-USP, com bolsa da FAPESP. Os resultados foram publicados na revista Quaternary Geochronology.
“A precipitação de goethita cimenta os grãos de areia transportados pelo rio. A idade de aprisionamento desses grãos no mocororô pode ser determinada por um método de datação baseado na luminescência opticamente estimulada, que permite inferir a última vez que um grão de quartzo foi exposto à luz do sol. Esse método geocronológico foi aplicado pela primeira vez nos mocororôs”, explica Niyonzima, pesquisador nascido em Ruanda e que, atualmente, realiza estágio de pós-doutorado na Universidade de Lausanne, na Suíça.
“Procuramos agora determinar as espécies de bactérias que contribuíram para essas formações e se elas ainda existem no local. Além disso, apesar de sabermos que o que predomina no mocororô é a goethita, há a necessidade de fazer um estudo geoquímico detalhado para diferenciar a composição das suas diferentes laminações”, encerra Freire, que vai realizar parte dessa investigação durante estágio na Universidade de Grenoble Alpes, na França.
A publicação ‘Luminescence dating of quartz from ironstones of the Xingu River, Eastern Amazonia‘ pode ser acessada AQUI.
*Por André Julião, Agência FAPESP