Mapeamento com GPS revela papel das florestas na conservação de onças-pintadas

Estudo incluiu 54 onças em 12 pontos da América do Sul, que receberam coleiras capazes de monitorar locomoção.

A fêmea Noca, uma das primeiras a ser monitorada no Pantanal, com o colar instalado cerca de um ano antes. Foto: Ricardo Boulhosa/Instituto Pró-Carnívoros

Um estudo que monitorou 54 onças-pintadas (Panthera onca) por florestas, áreas agrícolas, estradas e cursos d’água, em diferentes regiões da América do Sul, indicou que os felinos saem da mata fechada e voltam frequentemente às bordas de floresta e de áreas agrícolas.

“As onças agem assim provavelmente para caçar, mas preferem fragmentos maiores da floresta, que é onde permanecem mais tempo”, diz a bióloga boliviana Vanesa Bejarano Alegre, que fez o trabalho como parte de seu doutorado, encerrado em 2023, na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro.

A pesquisadora é a primeira autora de um artigo publicado em dezembro na revista Perspectives in Ecology and Conservation. “A onça tem um papel importante de equilíbrio do ecossistema, a presença dela ajuda a regular a reprodução de algumas espécies”, explica Alegre.

“Se há onça, significa que há água limpa, plantas, insetos e uma cadeia ecológica funcional”.

Os animais foram monitorados por colares GPS, com registros de dados a cada quatro horas, em 12 áreas de estudo, onde Alegre marcou o tempo em que os animais passavam em um raio de 250 metros de cada localização, o quanto revisitavam os locais, a velocidade de movimentação e o momento da última visita. Para assegurar o bem-estar, as coleiras não pesam mais que 3% do peso do animal (no Pantanal, uma onça adulta pode chegar a 140 quilos).

Leia também: Conheça a ‘Ilha das Onças-Pintadas’: região que ajuda na conservação da espécie na Amazônia

Medrosa e seu filhote Luca no Parque Estadual Encontro das Águas em 2020, depois de queimadas especialmente intensas. Foto: Ricardo Boulhosa/Instituto Pró-Carnívoros

“Capturar os animais é o problema, porque eles têm um território grande; mesmo os menores podem chegar a 40 quilômetros quadrados”, explica o médico-veterinário Ronaldo Morato, diretor da organização não governamental Panthera, que trabalha na conservação de felinos, e coautor do artigo.

Para instalar os colares nos animais, é utilizada uma armadilha em forma de laço. “Quando o animal pisa, prende o pé e aciona um alarme”, explica Morato. “Imediatamente fazemos a contenção com anestésico, instalamos o colar e coletamos sangue ou outras informações, dependendo do estudo.” Uma vez instalado, o equipamento envia informações via satélite na frequência determinada pelos pesquisadores.

É possível coletar dados e calcular velocidade, aceleração e direção, o que permite compreender diversos comportamentos dos bichos. Para não precisar de recaptura, as coleiras são programadas para se soltarem depois de um tempo.

Morato coordenou o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), por 18 anos, até 2023, e em 2018 publicou na revista Ecology um artigo que apresenta uma base de dados pública com 134.690 localizações de 117 onças-pintadas monitoradas por GPS em cinco países da América do Sul. Alegre selecionou dessa base 54 animais cuja movimentação permitira o monitoramento com mais regularidade.

Andanças vigiadas

O tempo em cada área florestal mostra que, seja por alimentação ou abrigo para si ou suas presas, as matas são fundamentais na conservação das onças. “O que temos visto é que, cada vez mais, esse animal está ficando acuado em função da perda de vegetação com a expansão urbana e agropecuária”, aponta o biólogo Rogério Cunha de Paula, que coordena o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

“Daí a importância de trabalhos como esse, que conjuga dados de imagem de satélite com os de GPS e demonstra essa grande dependência da onça em relação ao hábitat de maior qualidade”.

O Brasil abriga a maior população mundial de onças-pintadas, que já estiveram presentes em todos os outros biomas – atualmente já não é vista no Pampa. Um artigo publicado em 2018 na revista PLOS ONE, que ainda é referência nos estudos sobre a distribuição geográfica desses animais no país, mostra uma ocorrência concentrada no Pantanal e na Amazônia. Nos demais biomas, há somente manchas isoladas.

Um problema dessas regiões onde só estão disponíveis trechos restritos de floresta é que os fragmentos podem não ser suficientes para abrigar machos que migram a partir de seus grupos natais, que em alguns casos acabam sozinhos em áreas distantes e muito reduzidas.

“Eles buscam um novo território e vão viver lá até morrer, porque não conseguem se reproduzir”, avisa De Paula. “Esse é um grande risco, porque temos poucas áreas adequadas e as populações já estão há algumas décadas em um ritmo de declínio e a caminho de extinção local”.

Leia também: Descubra o que fazer quando encontrar uma onça-pintada

Noca quando avistada pela primeira vez, em 2010, alguns dias antes de ser capturada. Foto: Ricardo Boulhosa / Instituto Pró-Carnívoros

Para evitar a multiplicação desse cenário, é necessária a criação de corredores ecológicos conectando fragmentos florestais, inclusive aqueles em propriedade rurais, além da definição de estratégias de mitigação de conflitos. Segundo Alegre, ao se traçar áreas prioritárias de conservação é preciso pensar em zonas de amortecimento a partir de recursos sustentáveis, como as agroflorestas, e com uma gestão cuidadosa das estradas, inclusive as de terra, no interior das propriedades.

“O que percebo nesse estudo, e em outros que fizemos, é que um dos maiores impactos para as onças é a estrada, porque ela frequenta esses caminhos, seja para se deslocar melhor, seja porque pode encontrar presas mortas por atropelamento.”

Os corredores ecológicos evitariam o atropelamento das próprias onças, inclusive. Ainda que a quantidade de mortes seja difícil de precisar, o Cenap tem recebido mais notificações nos últimos anos.

“Temos cada vez mais registros de atropelamento de onças, especialmente no arco do desmatamento”, enfatiza Rogério de Paula, referindo-se à região na borda sul e sudeste da floresta amazônica brasileira. “São locais que os bichos usavam e, de repente, viraram vias de acesso, como vias pavimentadas ou estradas secundárias que vão sendo abertas para o escoamento de produção agrícola.”

O estudo liderado por Alegre revela que as onças se movimentam mais rapidamente próximo a estradas, evitando permanências prolongadas nessas áreas. “Isso sugere um comportamento de evitamento de risco”, explica a pesquisadora. Por outro lado, o deslocamento é mais lento próximo a cursos d’água, locais que as onças revisitam com frequência.

Para o biólogo Ricardo Boulhosa, esse achado valida uma máxima comum para a conservação de hábitats e planejamento ambiental.

“Sempre dizemos que é preciso água e mata para ter onça-pintada, e esse trabalho comprova isso. É um estudo que dá um refinamento sobre a ecologia desses animais e orienta o manejo de áreas de agropecuária”. Boulhosa é pesquisador do Instituto Pró-carnívoros, organização sem fins lucrativos que há quase 30 anos promove a conservação dos mamíferos carnívoros neotropicais e de seus hábitats. Assim como Rogério de Paula, ele não participou do estudo.

Projetos

1. Ecologia de movimento de um predador neotropical de topo através de diferentes hábitats e sua interação com presas (n° 18/13037-3); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Milton Cezar Ribeiro (Unesp); Bolsista Vanesa Fabiola Bejarano Alegre; Investimento R$ 356.059,18.
2. Biodiversidade e serviços associados: PELD Corredor Cantareira Mantiqueira (nº 21/08534-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Milton Cezar Ribeiro (Unesp); Investimento R$ 309.404,64.
3. Biodiversidade no Antropoceno: Efeito dos agroecossistemas na conservação da biodiversidade e manutenção de funções ecossistêmicas (nº 20/01779-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Milton Cezar Ribeiro (Unesp); Investimento R$ 188.626,99.
4. Contribuições do pagamento por serviços ambientais sobre múltiplas dimensões na Mata Atlântica (nº 21/10195-0); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Milton Cezar Ribeiro (Unesp); Investimento R$ 3.054.695,07.

Artigos científicos

ALEGRE, V. B. et alJaguar at the Edge: Movement patterns in human-altered landscapesPerspectives in Ecology and Conservation. v. 22, n. 4, p. 358-66. out.-dez. 2024.
ALEGRE, V. B. et alThe effect of anthropogenic features on the habitat selection of a large carnivore is conditional on sex and circadian period, suggesting a landscape of coexistenceJournal for Nature Conservation. v. 73, 126412. jun. 2023.
JĘDRZEJEWSKI, W. et alEstimating large carnivore populations at global scale based on spatial predictions of density and distribution – Application to the jaguar (Panthera onca)PLOS ONE. v. 13, n. 3, e0194719. 26 mar. 2018.
MORATO, R. G. et alJaguar movement database: A GPS-based movement dataset of an apex predator in the NeotropicsEcology. v. 99, n. 7, p. 1691. jul. 2018.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa FAPESP, escrito por Guilherme Costa

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Portal Amazônia responde: peixes conseguem respirar fora d’água?

Embora a maioria dos peixes respirem por meio das brânquias, existem espécies que desenvolveram estratégias para conseguir respirar fora do ambiente aquático, inclusive na Amazônia.

Leia também

Publicidade