Jair Candor, o sertanista que busca pela proteção de povos isolados na Amazônia há 36 anos

Premiado por sua atuação na proteção dos povos indígenas e na preservação da Amazônia na Brazil Conference (EUA), Candor diz estar ciente do preconceito em relação aos povos indígenas no Brasil.

Foto: Reprodução/Instagram-candorjair

“Essa paixão começou quando eu comecei a perceber que, da própria selva, você consegue sobreviver sem precisar destruir”, diz Jair Candor, sertanista da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) há 36 anos, sobre a sua atuação para proteger os povos indígenas da Amazônia.

Aos 64, ele percorre as florestas do noroeste de Mato Grosso para impedir invasores e identificar as comunidades isoladas na região.

Hoje coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena, Candor e sua família se mudaram para a Amazônia quando ele tinha 6 anos, durante a década de 1960. À época, o regime militar disponibilizava lotes de terra para ocupar a região.

No entanto, com a morte de sua mãe, a família se separou. Candor conta que, por ser “mais grandinho”, não foi adotado, mas passou a viver com seringueiros, já que precisava de um lugar para trabalhar.

“Há várias maneiras de coletar a castanha, borracha, copaíba e outras coisas, para você sobreviver sem precisar desmatar e nem destruir nada, nem seu e nem de ninguém. A floresta amazônica é muito rica”, afirma o sertanista, que, na década de 1980, ingressou na Funai.

Ele explica que a função de sertanista lhe foi dada quando começou a trabalhar na instituição, e que, só no início dos anos 2000, a nomenclatura “indigenista” passou a ser utilizada: “Eu entrei lá atrás, então eu ainda tenho essa função de sertanista”.

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Originalmente, no século XVII, os sertanistas eram homens que adentravam o interior do Brasil com o objetivo de capturar indígenas e explorar metais preciosos. A partir do século XX, a palavra começou a ser usada para definir indivíduos que conhecem bem o território mais afastado das áreas urbanas. Ao falar sobre a atividade, Candor cita grandes nomes, como os irmãos Villas-Bôas, idealizadores da primeira reserva indígena homologada do Brasil, o Parque Nacional do Xingu; e Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai e responsável por dezenas de expedições pelas florestas brasileiras.

Ao IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), Candor explica que o trabalho para identificar os povos isolados consiste em receber informações de moradores regionais, geralmente, de comunidades extrativistas da floresta. “Esses povos trazem as notícias. Alguém viu alguma coisa ou viu uma pegada, um acampamento. Quando essa informação chega na Funai, a Funai vai lá e vê”, diz.

No momento, a Funai tem 11 frentes baseadas na Amazônia para a identificação das tribos isoladas. Segundo ele, a frente que estiver mais próxima de onde pode ter sido avistada a comunidade, deve ir ao local para averiguar.

De acordo com o sertanista, até a década de 1990, a Funai ainda fazia contato com os povos que não tinham interferência externa. “A nossa missão era entrar no mato, localizar o povo e fazer o contato. Não tinha meio termo”, relembra.

Candor afirma que só no final do século passado é que se chegou ao consenso sobre como o contato forçado era prejudicial às comunidades isoladas. Como as populações nunca tiveram contato com outras pessoas, elas não tinham imunidade para enfrentar doenças como a gripe, o sarampo e até mesmo resfriados. Atualmente, o contato só é feito com os povos em conflito com comunidades tradicionais, outras etnias e fazendeiros.

“A gente tem nossas regras para ir a campo: tem que estar todo mundo vacinado, a gente não se aproxima tanto deles a ponto de transmitir alguma coisa, a gente sabe a hora de ir e a hora de voltar e o contato só é feito nessas circunstâncias: se eles estiverem risco de confronto com outros povos”, declara.

Os perigos de um contato forçado não se limitam, no entanto, às comunidades. Segundo Candor, os profissionais que rastreiam as etnias isoladas também correm risco de vida: “Mesmo sem forçar o contato com eles, só porque a gente passou muito próximo deles, já jogaram flecha na gente”. O sertanista relembra que um de seus amigos, que fazia o mesmo trabalho e começou a atuação na Funai na mesma época que ele, foi morto com uma flecha ao entrar em uma reserva que havia tido uma ocorrência de indígenas isolados.

Candor diz não ter medo de morrer, mas afirma ser cuidadoso. Antes de cada expedição, ele e sua equipe se reúnem para discutir tudo o que tem que ser feito em campo. Questionado sobre ter inimigos, o sertanista responde aos risos: “É só o que eu tenho”. A fala de Candor se refere a grileiros e madeireiros da região, mas ele ressalta que as pressões por parte desses grupos não o atrapalham.

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“Aqui, onde eu trabalho, pelo amor de Deus, é complicado, mas é aquilo que eu falo: alguém tem que fazer. Mas isso também não me inibe, não me atrapalha. Eu não me preocupo muito com isso não. A minha preocupação é com eles [povos indígenas], é manter eles vivos, manter eles tranquilos, para que eles possam caçar, possam pescar e possam ter a vida deles”, diz.

O objetivo principal do trabalho de Candor e sua equipe é monitorar essas comunidades para ter uma “noção” de que elas estão bem e se conseguem realizar suas atividades de subsistência, como a caça e a pesca, sem interferência. Uma das preocupações da Funai com essas etnias é evitar a invasão de seus territórios.

Candor explica que o monitoramento consiste em duas etapas. Na primeira, a equipe faz um levantamento considerando os elementos encontrados ao longo da expedição, como vestígios de caça e pesca. Segundo ele, se o grupo entender que os integrantes da etnia conseguem realizar suas atividades, a equipe recua e retorna para a base. Na segunda etapa, é feita uma fiscalização no entorno do território: de tempos em tempos, os funcionários da Funai percorrem a terra para evitar invasões.

No momento, a frente em que Candor está tem duas comunidades isoladas já confirmadas. Além dessas, a sua equipe também trabalha em outras doze ocorrências sobre possíveis etnias que ainda não foram encontradas. Desde que iniciou a sua atuação como sertanista, ele participou de três contatos.

O primeiro – e um dos mais emblemáticos – foi o contato com os Piripkura, na década de 1980. A busca levou todo o ano de 1988 e rendeu o documentário “Pirikpura”, lançado em 2017. À época, Candor encontrou os três últimos sobreviventes da etnia: dois homens, Tamandua e Pakyi, e uma mulher, Rita.

Posteriormente, o sertanista também confirmou a presença de indígenas Cinta-Larga, em que uma família da etnia se afastou do grupo e estava vivendo isolada na região. Ele ainda participou, em 2019, do contato com os Korubo. À época, o indigenista Bruno Pereira convidou Candor para participar da expedição porque precisava de alguém com experiência no contato com comunidades isoladas. Em 2022, Pereira foi assassinado junto com o jornalista britânico Dom Phillips durante uma viagem pelo Vale do Javari, no extremo-oeste do Amazonas. A morte de ambos foi encomendada pelo líder de um grupo que praticava garimpo ilegal e pesca predatória na região.

Para Candor, a primeira reação ao encontrar uma comunidade isolada é se preocupar: “E, agora, o que nós vamos fazer?”. Segundo ele, a preocupação é ainda maior quando o contato com as etnias é necessário, nos casos de conflito.

Premiado por sua atuação na proteção dos povos indígenas e na preservação da Amazônia na Brazil Conference, evento realizado em Cambridge, Massachussets, nos Estados Unidos, Candor diz estar ciente do preconceito em relação aos povos indígenas no Brasil e que se preocupa em trazer grupos isolados para o “nosso mundo”.

“A minha preocupação é essa: o que vai ser da vida desse povo? A gente está tirando eles lá do sossego deles, vive ali na maior paz do mundo, não precisa de muita coisa. Eles vão ter que aprender um monte de coisa, vão ter que se virar. A preocupação é essa, é trazer eles para o nosso mundo. Até que eles se adaptem a conhecer nossas leis, a conhecer nossos códigos, a entender como a gente vive aqui, é muito difícil para eles”, ressalta.

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Em 2023, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Candor admitiu que pensava em se aposentar dentro de quatro ou cinco anos. Ao IPAM, ele confirmou que este ainda é o seu plano. “Uma hora eu vou ter que parar. Ninguém é insubstituível, a gente sabe que chega a hora”, afirma. Ele diz ter entrado com o pedido de aposentadoria, que deve ser aprovado até o final do ano.

Apesar de estar prestes a se aposentar, Candor afirma que continuará contribuindo com a proteção dos povos isolados. Ele destaca que, como está em um cargo comissionado, pode continuar na função mesmo após a aposentadoria. Quando não conseguir mais carregar sua mochila ou fazer as caminhadas durante as expedições, o seu plano é “passar o bastão” após mais de 30 anos de trabalho, em que ajudou a consolidar uma política de não contato, baseada no respeito aos territórios indígenas e com foco em garantir a sobrevivência e a autonomia desses grupos.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo IPAM, escrito por Anna Júlia Lopes

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