Estudo internacional mostra que relação da Amazônia com a seca não é uniforme

O território tem capacidade variável de resposta à crise climática e algumas regiões parecem ter chegado ao ponto de colapso ecológico.

Amapá: floresta do escudo das Guianas revelou ser a mais resiliente. Foto: Léo Ramos Chaves/Revista Pesquisa FAPESP

Um estudo internacional uniu informações de satélite com dados de solo e relevo do vasto bioma amazônico para revelar uma visão abrangente e heterogênea das áreas que apresentam diferentes graus de vulnerabilidade às condições impostas pelos crescentes períodos de seca. A pesquisa, publicada em maio na revista Nature, teve participação de brasileiros e foi atrás de apontar os principais mecanismos responsáveis pela resposta da vegetação ser tão variável conforme sua posição geográfica.

Distribuições de múltiplas características no espaço, incluindo profundidade do lençol freático, altura das árvores e fertilidade do solo, foram adicionadas ao modelo que, ao final, mostrou que a vegetação com características naturalmente mais sensíveis à falta de água coincide com as terras mais produtivas e férteis que compõem parte do sul e sudeste amazônicos. A localização preocupa, já que é também a mais impactada pelo arco do desmatamento, do sul do Pará ao norte de Mato Grosso.

Para a chinesa Shuli Chen, primeira autora do estudo e especialista em análises espaciais na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, que conversou por e-mail com Pesquisa FAPESP, outra preocupação com as áreas ambientais de menor resiliência à seca encontradas nas análises é a de que boa parte delas integra o território do leste do bioma amazônico.

A floresta remanescente na porção oriental é também responsável por lançar para a atmosfera um imenso volume de vapor-d’água que segue para o oeste, irrigando cerca de 50% do que é necessário às árvores dali. Reciclada pela floresta essa água segue sua viagem pelos céus, direcionando chuvas ao restante do país e à parte sul do continente. O fenômeno ficou conhecido como rios voadores.

Um dos pesquisadores responsáveis pela popularização do conceito de rios voadores é o geocientista Antonio Donato Nobre, pesquisador aposentado do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), coautor do estudo recente na Nature. O trabalho prévio de seu grupo na detecção e no mapeamento da água subterrânea ao longo do território amazônico por meio do modelo topográfico conhecido como “Hand”, sigla para height above nearest drainage (altura acima da drenagem mais próxima), motivou o coordenador da pesquisa, o cientista do clima norte-americano Scott Saleska, também da Universidade do Arizona, a procurar fatores que pudessem explicar as diferenças observadas nos padrões de morte da vegetação. “Boa parte das áreas que mais sofrem com a seca parecia ter a profundidade do lençol freático como causa direta e principal, mas faltava investigar as que não podiam ser resumidas a esse fator para termos uma resolução mais precisa do cenário”, contou Saleska, também por e-mail.

Com uma resolução mais detalhada em mãos e mais informações sobre o mosaico de fragilidades da Amazônia, os pesquisadores defendem que as ações em planos de conservação e políticas públicas possam se tornar mais focadas e eficientes.

Nobre ressalta que isso não quer dizer que áreas que não foram definidas como prioritárias pelo trabalho possam ser desmatadas, já que as partes da floresta dependem umas das outras na dinâmica do clima. O segredo para combater a crise climática, segundo ele, é a diversidade do sistema. “A floresta é complexa e precisa ser respeitada em sua complexidade e integridade.”

Arte: Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Evolução e relevo

De forma geral, o norte amazônico demonstrou conseguir lidar melhor com secas intensas do que o sul do bioma. Ainda assim, o sul apresenta regiões resilientes: áreas alagadas (com vegetação conhecida como igapó) ou as com o lençol freático próximo à superfície, que têm o acesso à água facilitado. No caso dos igapós, os períodos de seca podem até ser bem-vindos para um alívio temporário e oxigenação das raízes normalmente submersas, desde que a estiagem tenha curta duração.

Onde o lençol freático é profundo, sobrevivem há centenas de anos as espécies com raízes que alcançam a água. Como raízes profundas geralmente representam árvores mais antigas e mais altas, a estatura na fisionomia vegetal também foi um dos fatores no mapa de resiliência.

Mas o critério do lençol freático não se aplica a todo o território por onde se espalha o bioma. No escudo das Guianas, planalto ao extremo norte que abriga as árvores gigantes da Amazônia, foi encontrado o perfil de vegetação com a maior resiliência de todas. Lá, a distância entre a superfície e a água subterrânea não é um fator determinante. A constatação talvez seja explicada por uma característica marcante e conhecida da região: o solo infértil.

Estudos feitos ao longo dos últimos anos têm mostrado que em solos pobres em nutrientes o crescimento é extremamente lento, o que implica madeira e vasos internos da planta mais densos, possivelmente com maior resistência ao embolismo, processo em que os vasos internos da planta colapsam pela entrada de ar onde só deveria haver água, quando o solo seca demais.

O tamanho das árvores, a fertilidade do solo e a proximidade do lençol freático são fatores que atuam em combinação, com vantagens e desvantagens que se compensam. O pior cenário, típico da região do arco do desmatamento, é o que soma solo fértil, plantas baixas e lençol freático profundo. As árvores nessas condições são propensas ao embolismo, pois desenvolvem raízes que não conseguem alcançar o lençol freático.

Entre os parâmetros considerados pelo grupo de pesquisa, estava o da “verdidão”. O Índice Aprimorado de Vegetação (EVI) quantifica a concentração folhas de árvores saudáveis nas copas das árvores do dossel superior. Além do EVI, também levaram em conta medidas diretas da fotossíntese por meio do índice SIF (sigla para fluorescência de clorofila induzida por radiação solar). Ambos os índices são baseados em informações colhidas ao longo de mais de 20 anos por satélites da agência espacial norte-americana (Nasa).

Para os participantes do estudo, o critério apoiado nos índices de fotossíntese se justifica pela correlação que o EVI e o SIF têm com taxas de mortalidade e de crescimento da vegetação.

“O embolismo também é fundamental para entender o estudo porque descobrimos, em uma pesquisa anterior, que essa foi a maior razão por trás das mortes das árvores em uma das piores secas do sul amazônico, a de 2015”, explica Nelson.

Arte: Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Mais modelos

Outras ameaças ao ciclo de chuvas podem ser adicionadas aos modelos, deixando-os mais detalhados, precisos e realistas na missão de projetar estratégias de conservação do ecossistema e da biodiversidade da Amazônia. A necessidade de abordagens multifatoriais para tratar do tema é um foco da matemática Marina Hirota, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e colegas, em um artigo que ganhou a capa da revista Nature em fevereiro deste ano.

Hirota também chegou a um mapa heterogêneo de respostas e fragilidades do território amazônico. Para isso, combinou uma série de outras perturbações ambientais, incluindo, além de secas passadas, a propensão à morte por inundações, incêndios e desmatamento. Ao fim, chegou à estimativa de que, até 2050, entre 10% e 47% da floresta amazônica estará exposta ao risco do chamado “ponto de não retorno”, ou ponto de inflexão, quando o ecossistema não consegue mais se recuperar do distúrbio que lhe foi infligido. Além das perturbações, a pesquisadora considerou forças que tendem a proteger a vegetação, como os limites de terras indígenas.

Segundo ela, os cientistas estão descobrindo que algumas regiões da Amazônia são mais resilientes às mudanças climáticas do que se sabia antes dos anos 1990, quando se começou a falar de pontos de inflexão climática para o bioma inteiro, de forma homogênea. Hirota lembra que o fato de a floresta ter mecanismos de resistência e resistência não significa que ela não vá sucumbir caso as alterações sejam drásticas demais. “Apenas significa que temos um pouco mais de tempo, mas não muito”, esclarece.

Hirota é coautora de um estudo, publicado em 2023 na Nature, incluído no estudo de Shuli Chen, que aponta as florestas do sudeste da Amazônia como evolutivamente mais resistentes quando avaliadas por uma medida de resistência ao embolismo. “Quanto mais negativos os valores, mais tensão de água a árvore aguenta nos vasos antes de sofrer embolismo”, explica.

Mas a ameaça sobre a região é descrita por outra medida, HSM (margens de segurança hidráulica), que mostra se as plantas estão operando dentro dos limites ecofisiológicos seguros para evitar a mortalidade por seca. Com base nisso, embora as florestas do sudeste sejam mais resistentes à seca, elas já estão operando fora dos limites seguros por estarem experimentando mais déficit hídrico. Já as florestas do oeste, sudoeste e noroeste, embora menos resistentes, não sofrem tanto impacto de mudança na disponibilidade de água. O trabalho foi liderado pela ecóloga Julia Tavares, atualmente pesquisadora em estágio de pós-doutorado na Universidade de Uppsala, na Suécia. A continuidade de estudos que integrem os indicadores e as características de cada parte da floresta deve permitir entender melhor os riscos e as áreas com maior probabilidade de permanecer íntegras.

Antonio Nobre atribui as estratégias de defesa aos sistemas da natureza que qualifica como elegantes e complexos, especialmente nos contextos de diversidade biológica e geofísica. “Sistemas assim, quando intactos, tendem a dar respostas apropriadas dentro de sua capacidade de se autorregular – até o momento em que os limites são ultrapassados, levando ao colapso ecológico, que é o que estamos vivendo agora.”

Floresta em transformação

Uma das respostas adaptativas pode ser o surgimento de uma nova flora, resistente às novas condições

Tanto o trabalho de cientista do clima norte-americano Scott Saleska quanto o da matemática Marina Hirota olharam para a vegetação pelo seu aspecto funcional, e não exatamente para a composição da flora, escolhendo focar nas capacidades e propriedades das plantas, sem distinguir espécies. Outra pesquisa, publicada em 2018 na revista Global Change Biology pela ecóloga brasileira Adriane Esquivel-Muelbert, à época na Universidade de Leeds, no Reino Unido, olhou para informações das espécies amazônicas coletadas ao longo de 30 anos e detectou que já estava em curso uma substituição na composição das árvores.

A pesquisadora mostrou que indivíduos de espécies que sobrevivem melhor em terras úmidas estão nascendo menos na Amazônia, dando lugar a plantas normalmente encontradas em ambientes mais secos e com maior abundância de gás carbônico na atmosfera. A troca gradual por árvores que sobrevivem nessas condições, no entanto, não acompanha a velocidade das alterações climáticas globais. Os indícios apontam para a mesma direção: as mudanças têm sido rápidas demais para que a floresta consiga se adaptar.

A reportagem acima foi publicada com o título “Resiliências da Amazônia” na edição impressa nº 345, de novembro de 2024.

Artigos científicos
CHEN, S. et alAmazon forest biogeography predicts resilience and vulnerability to droughtNature. v. 631, 111-7. 19 jun. 2024.
FLORES, B. M. et alCritical transitions in the Amazon forest systemNature. v. 626, 555-64. 14 fev. 2024.
TAVARES, J. V. et alBasin-wide variation in tree hydraulic safety margins predicts the carbon balance of Amazon forestsNature. v. 617, 111-7. 26 abr. 2023.
ESQUIVEL-MUELBERT, A. et alCompositional response of Amazon forests to climate changeGlobal Change Biology. v. 25, 39-56. 08 nov. 2018.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa Fapesp, escrito por Laura Tercic

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