Urnas funerárias milenares da Amazônia “retornam à casa” após seis anos

Achado arqueológico inédito reforça o povoamento e complexidade cultural da Amazônia pré-colonial e fortalece laços entre ciência e comunidades locais.

Escavações das urnas na comunidade Tauary em 2018. Foto: Acervo GP Arqueologia/Instituto Mamirauá

Após uma longa jornada de mais de 1,2 mil quilômetros por rios da Amazônia, sete urnas funerárias da Tradição Polícroma da Amazônia retornaram, no final de abril, ao município de Tefé (AM), seu território de origem.

A viagem de retorno, feita inteiramente por via fluvial, exigiu duas trocas de embarcação e foi cuidadosamente planejada para preservar os sensíveis artefatos arqueológicos.

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As urnas haviam sido levadas em 2019 para a Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), em Santarém (PA), onde passaram por seis anos de análises aprofundadas do material cerâmico e dos vestígios humanos guardados pelas urnas. O retorno marca um novo ciclo de conservação, pesquisa e valorização desse patrimônio arqueológico amazônico.

As urnas foram escavadas em 2018 por uma equipe arqueólogos do Instituto Mamirauá e organizações parceiras na comunidade Tauary, localizada na Floresta Nacional de Tefé.

O achado é considerado inédito por ter sido o primeiro registro desse tipo de urna encontrado diretamente no solo, sem ter sido previamente removido por moradores — condição rara em um campo onde vestígios costumam chegar às mãos dos pesquisadores já fora de seu contexto original.

Os artefatos estavam enterrados a menos de 40 centímetros da superfície, em uma área de apenas quatro metros quadrados, próxima à escola comunitária. Decoradas com rostos e formas simbólicas, as urnas revelam práticas funerárias complexas e de grande cuidado, que estão sendo interpretadas e estudadas pelos pesquisadores.

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Achado inédito impulsiona estudos sobre rituais funerários na Amazônia

“Esse é um momento muito importante e esperado por todos nós, tanto os pesquisadores quanto os moradores de Tauary”, afirma Eduardo Kazuo Tamanaha, arqueólogo e líder do Grupo de Pesquisa Arqueologia e Gestão do Patrimônio Cultural da Amazônia do Instituto Mamirauá.

“A pandemia, cortes de gastos e secas extremas dificultaram o andamento dos trabalhos e o retorno das urnas para Tefé. Por outro lado, a equipe coordenada pela professora Dra. Anne Rapp Py-Daniel teve mais tempo para analisar o material e trazer resultados impressionantes”.

A arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel, professora e pesquisadora da UFOPA, destaca o ineditismo da descoberta: “Pela primeira vez, tivemos acesso ao contexto completo dessas urnas, desde o sítio arqueológico até o conteúdo interno. Isso nos permite entender melhor os rituais de cremação, preparação dos corpos e os padrões simbólicos envolvidos”.

A pesquisadora Anne Rapp Py-Daniel e uma das sete urnas Tauary que retornaram à Tefé (AM). Foto: Miguel Monteiro

Em uma das urnas, por exemplo, foram identificados vestígios de dois indivíduos — possivelmente cremados em momentos diferentes e com intensidades distintas.

Segundo a pesquisadora, análises feitas nos últimos anos revelaram que o local pode ter sido usado por séculos como cemitério. Ossos queimados, evidências de exposição prolongada das urnas antes do enterramento e variações nos procedimentos funerários indicam uma tradição elaborada, marcada por rituais complexos de transformação e memória.

Uso de tecnologia de tomografia inova o estudo de urnas funerárias

Entre as inovações adotadas na pesquisa das urnas de Tauary, destaca-se o uso da tomografia computadorizada como ferramenta de análise não invasiva pela pesquisadora Cristiane Colares.

O Laboratório de Arqueologia Curt Nimuendaju da UFOPA estabeleceu uma parceria com uma clínica de imagens em Santarém para viabilizar exames em cinco urnas funerárias, que ainda não tinham sido escavadas. O objetivo era identificar os vestígios humanos em seu interior e avaliar o estado de conservação dos artefatos.

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A técnica permitiu visualizar estruturas internas invisíveis a olho nu, como rachaduras ou áreas fragilizadas, e foi essencial para estabelecer protocolos mais seguros de escavação e conservação.

“Essas urnas não são apenas objetos frágeis, elas são o equivalente a caixões. Carregam um valor simbólico e ético muito forte. Por isso, toda intervenção precisa ser muito bem pensada e executada com o máximo de cuidado”, explica Anne Rapp Py-Daniel.

O trabalho iniciado com a tomografia está pavimentando caminhos para que novas tecnologias sejam incorporadas à arqueologia amazônica, respeitando tanto o valor científico quanto espiritual dos artefatos. A metodologia contribui para preservar o material e ampliar o conhecimento sobre os rituais funerários da Tradição Polícroma da Amazônia, sem comprometer sua integridade.

Envolvimento da comunidade fortalece a valorização cultural

A iniciativa também se destaca pela participação ativa da comunidade local. Os moradores de Tauary acompanharam todo o processo de escavação e solicitaram apoio técnico assim que perceberam a presença dos vestígios, demonstrando grande interesse e respeito pelo patrimônio ancestral.

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Moradora de Tauary (AM) mostra artefato arqueológico encontrado na comunidade ribeirinha. Foto: Projeto Tauary

No último dia 2 de maio, uma equipe do Instituto Mamirauá e da UFOPA retornou à comunidade para uma devolutiva presencial dos resultados das pesquisas. A atividade, realizada de forma aberta e acessível, incluiu falas da equipe científica, atividades educativas, exposição com fotos e informações da pesquisa e o reconhecimento do sítio arqueológico.

O momento foi bem recebido pela população local, como destacou Paulo Leocadio, presidente da comunidade Tauary. “As pessoas gostam quando (os pesquisadores) chegam e dão uma explicação. Porque, muitas das vezes, não tem essa explicação, que nem teve aqui. Foi muito bom, eu creio que a equipe foi bem acolhida e recebida pela comunidade”, afirma.

Parcerias institucionais fortalecem a ciência na Amazônia

O sucesso das pesquisas envolvendo as urnas de Tauary também é fruto de uma longa e sólida rede de cooperação entre instituições da região Norte.

A arqueóloga Anne Rapp Py-Daniel ressalta o papel essencial das parcerias para a continuidade de trabalhos científicos fora dos grandes centros urbanos:

“Temos parcerias com o Instituto Mamirauá há 14 anos, trabalhando de maneira colaborativa. Isso é superimportante para as instituições da região Norte. Muitas vezes, não temos os recursos, as pessoas, ou a proximidade com grandes centros. Por isso, precisamos dessas redes reais, duradouras, que sustentam as pesquisas e mantêm os acervos vivos ao longo do tempo”, destaca a pesquisadora.

Parte da equipe do Projeto Tauary, responsável pelas pesquisas e transporte das urnas até Tefé (AM). Foto: Júlia Rantigueri

O arqueólogo Eduardo Kazuo Tamanaha, do Instituto Mamirauá, reforça esse pensamento. “Ninguém faz ciência sozinho. É necessária uma equipe compromissada e multidisciplinar. Sem a parceria com as arqueólogas da UFOPA, esse trabalho não teria sido possível. E o apoio de programas como o Mulheres na Ciência também foi crucial para que o projeto existisse. Agora, seguimos com o trabalho, recebendo duas especialistas em Conservação e Restauro para aprofundar o cuidado com as urnas de Tauary”, completa.

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Pesquisa revela redes de contato milenares na Amazônia

Após a chegada a Tefé, os artefatos passam a integrar o acervo do Laboratório de Arqueologia do Instituto Mamirauá, onde passarão por processos finais de análise e conservação.

A descoberta reforça evidências de que a Amazônia pré-colonial era densamente povoada e culturalmente complexa, contrariando a antiga visão de um território intocado ou esparsamente habitado. “Essas urnas falam de uma cosmovisão partilhada e de uma rede de contatos que se estendia por toda a região, ligando diferentes grupos e tradições há mais de mil anos”, conclui Py-Daniel.

O trabalho segue em andamento, com a análise de outras duas urnas ainda não escavadas e novos estudos programados. A expectativa é que o conhecimento gerado ajude a fortalecer políticas de preservação do patrimônio cultural e inspire novas formas de diálogo entre ciência, memória e comunidades amazônicas.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Instituto Mamirauá

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