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Como rezas, ervas e saberes tradicionais fortalecem a saúde mental em quilombos e aldeias

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O líder quilombola Raimundo Magno, do Pará. Foto: Raimundo Magno/Acervo pessoal

Entre indígenas e quilombolas, a saúde mental não é vista apenas como uma dimensão individual. Ela é compreendida como parte de um cuidado comunitário e espiritual. Práticas ancestrais — como rezas, rodas de escuta, rituais de passagem e benzimentos — seguem sendo estratégias de enfrentamento diante do adoecimento psíquico.

No caso dos povos Guarani, a casa de reza faz parte até mesmo do calendário escolar. Cânticos e rezas semanais são considerados tão importantes quanto as aulas formais. Além disso, práticas como o xondaro, uma dança e luta comunitária, fortalecem simultaneamente corpo e espírito.

Nos quilombos, benzedeiras, parteiras e puxadores de ervas continuam atuando no cuidado à saúde. São elas que transmitem saberes de cura e acolhimento, preparados com chás, ervas e rezas.

Como resume o quilombola Raimundo Magno Cardoso Nascimento, liderança do quilombo África, no Pará: “O que de fato é fundamental é o trabalho das parteiras, das benzedeiras, dos puxadores, das ervas, daquele que bebe, que cura, que faz o chá”.

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Para Otto Payayá, indígena do povo Payayá e coletor de ervas medicinais e sementes da Chapada Diamantina (BA), a saúde mental está profundamente ligada aos saberes herdados dos ancestrais. “Quando alguém adoece, a gente não olha só para o sintoma. Primeiro vem a escuta, o diálogo, entender de onde começou aquele sofrimento. Depois vem o banho, o chá, a reza, até um abraço, um afago. É assim que se vai acalmando a mente e fortalecendo o espírito”.

Esses conhecimentos, transmitidos de geração em geração, orientam tanto o cuidado com o corpo quanto com a mente. “É histórico, secular. Vai do avô, bisavô, tataravô. Hoje a gente prepara os mais jovens para assumir essa responsabilidade, porque o cuidado exige zelo, espiritualidade, ligação com a terra, com as águas, com a floresta”. Otto destaca a prevenção como princípio, que inclui rituais de limpeza do corpo e do espírito com ervas como caçaú, quina, taraxaco, cúrcuma e carqueja, além de banhos, rezas e vomitórios. “Não é uma cura mágica. É um processo de paciência, cuidado e acompanhamento coletivo”.

Ele lembra que ataques históricos aos territórios indígenas — invasões, desmatamento e mudanças climáticas — também são fatores de adoecimento. “É como se alguém entrasse na sua casa e dissesse: isso não é mais seu. Essa pressão turva o sangue e afeta o pensamento, o comportamento perante a vida”. Ainda assim, Otto defende o diálogo entre saberes: “Quando a medicina acadêmica desce um pouco do seu patamar e procura conhecer as práticas indígenas, todo mundo ganha. A gente respeita os limites de cada lado, mas quer manter nossa forma de cuidar, porque ela dá resultado”.

Leia também: Saúde mental e felicidade, além da obrigação legal

O peso das violências e do racismo na saúde mental

Esse tecido comunitário, no entanto, sofre pressões permanentes. Em 2023 e 2024, duas mortes por suicídio — de uma adolescente de 15 anos e de um jovem — abalaram aldeias Guarani no Rio de Janeiro. O fenômeno, até então incomum, levou pajés e lideranças a promoverem encontros, buscando estratégias de prevenção junto a crianças e jovens.

No Pará, comunidades quilombolas também sentiram os efeitos dessa crise. No território Tijarapeiro Preto, formado por 14 comunidades, casos levaram  à criação de um projeto de apoio psicossocial. A iniciativa mobilizou psicólogos, enfermeiros, advogados e comunicadores durante um ano inteiro. “A equipe acabou fazendo um trabalho muito denso, muito sólido, para identificar essas questões de adoecimento e trabalhar o processo de formação em comunicação da juventude e de quem quisesse participar”, explica Raimundo Magno.

Ainda que o trabalho tenha gerado frutos, ele reconhece a precariedade do sistema público: “Criamos meios de orientar as famílias a procurar os serviços de saúde. Depois, discutimos com os próprios serviços, mas vimos que infelizmente são cheios de deficiência, de necessidade de ajuste e investimento público”.

Para a pesquisadora Ana Paula da Silva, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e associada ao PROÍNDIO/UERJ, os fatores de violência estrutural são determinantes para a saúde mental.

“Essa violência do racismo afeta muito a vida dos indígenas”, observa.

O sofrimento psíquico, explica, não pode ser separado das condições de exclusão, precariedade e desrespeito que marcam historicamente esses povos.

Ela também aponta novas pressões que atravessam os territórios, como o impacto das redes sociais e da substituição de alimentos tradicionais por ultraprocessados. “Você fica o tempo todo nas redes, vai se isolando, se individualizando, e são povos extremamente coletivos”, analisa. Para Ana Paula, essa ruptura enfraquece vínculos comunitários que antes funcionavam como proteção simbólica e emocional. Já a mudança alimentar afeta tanto a saúde física quanto a cultural: “Vai comendo essas comidas congeladas, industrializadas, e isso enfraquece o corpo das pessoas”.

Deslocamentos e adoecimentos 

No Quilombo Bitiua, em Bacuri, oeste do Maranhão, a rotina de Ana Cláudia Lisboa Mendes se divide entre o giz e a enxada. Aos 29 anos, formada em pedagogia, ela dá aulas para crianças quilombolas na escola local. Nos intervalos, ajuda a família na lavoura, cultivando os alimentos que garantem a sobrevivência da comunidade.

A história de Ana Cláudia aponta para uma questão central: a saúde mental, para quilombolas e indígenas, é indissociável de identidade, pertencimento e coletividade. O que aprendeu com o pai e a mãe — a soletrar à noite, a quebrar o coco babaçu, a preparar farinha e tapioca — ela chama de herança. “Esse conhecimento de origem a gente nunca perde”, resume. Mas sua trajetória também foi marcada por deslocamentos e episódios de violência simbólica. Em Belém, para onde se mudou em busca de trabalho, viveu experiências que revelam o peso do racismo cotidiano..

saberes tradicionais fortalecem a saúde mental em quilombos e aldeias
Foto: Ana Cláudia Lisboa Mendes/Acervo pessoal

Foi chamada de “Maria” por patrões que, de forma preconceituosa, insistiam em reduzir todas as empregadas negras a um nome genérico. A resposta foi firme: “Meu nome é Ana Cláudia. Se naminha identidade tivesse Maria, o senhor poderia me chamar de Maria. Mas meu nome é Ana Cláudia, então me chame assim”.

Hoje, de volta ao quilombo, sonha em unir pedagogia e psicologia. “Se me especializar, serei uma profissional dentro da minha sala. Aí consigo conversar melhor, controlar situações, apoiar meus alunos e a comunidade em situações traumáticas”.

Saberes tradicionais e acadêmicos

Em Alagoas, os saberes tradicionais quilombolas foram incorporados em um projeto da Secretaria de Estado da Saúde (Sesau). O Mate Masie, termo da cultura de Gana que significa “eu guardo aquilo que eu ouço”, nasceu em 2023 a partir de uma demanda direta de comunidades quilombolas, que recusaram atendimentos médicos convencionais e pediram ações voltadas à saúde mental. “A gente parte do conceito ampliado de saúde mental. Terra é um determinante, o trabalho, a questão cultural, é da etnia”, explica Tereza Cristina, supervisora de atenção psicossocial da Secretaria.

Um dos pilares do programa é a valorização dos saberes tradicionais. “Quando a gente vai fazer esse levantamento inicial, já avaliamos o que eles têm de processos de cura no território: benzedeira, rezadeira, comunidades que produzem chás e rituais”, relata Wilzacler Rosa, psicóloga e coordenadora do Mate Masie.

Esses agentes locais são convidados a compartilhar práticas de cuidado junto aos profissionais, construindo um atendimento compartilhado.

Em pouco mais de um ano, o programa visitou 12 comunidades quilombolas em 7 municípios, alcançando 1.968 famílias por meio de 96 visitas domiciliares e realizando mais de 1.400 atendimentos diretos. Mobilizou especialmente as mulheres — 2.159 participaram de rodas de conversa e oficinas de geração de renda — e fortaleceu a rede de atenção psicossocial com a capacitação de centenas de profissionais em prevenção ao suicídio, redução de danos, rastreio de autismo e notificações. Também promoveu emissão de documentos, oficinas de tranças, culinária e artesanato sustentável, reforçando a geração de renda e o resgate cultural.

Entre os impactos, o Mate Masie contribuiu para a criação de um comitê específico para pautas quilombolas em um território e inspirou mudanças em formulários de notificação do Ministério da Saúde. “Nunca fomos a uma comunidade e mantivemos a programação que levamos. Sempre mudamos dentro do território. A gente não chega impondo, mas construindo junto”, resume Tereza.

Para a psiquiatra e ativista Laura Eiko Uyeno, os saberes tradicionais exercem papel fundamental no cuidado em saúde mental. “Grande parte das soluções de transtornos mentais mais leves que acontecem no dia a dia das aldeias, os aconselhamentos e os saberes tradicionais já ajudam muito”. Mesmo quando tratamentos biomédicos são sugeridos, muitos jovens continuam recorrendo aos pajés para orientação espiritual e emocional.

Ela destaca o uso de ervas e essências naturais como parte central desse cuidado. “Eles usam muito as próprias ervas e essências, como alecrim e lavanda, que ajudam em crises de ansiedade”. Nos encontros nacionais como o Acampamento Terra Livre, Laura observa a coexistência entre equipes médicas e setores de práticas tradicionais: “A gente só é chamado quando são situações muito urgentes, porque o tratamento menos invasivo já consegue resolver muito”.

Leia também: Pesquisadores estudam saúde mental e cognição em idosos quilombolas no Maranhão

Segundo Laura, esses saberes fazem parte de uma cosmologia que articula corpo, espírito, comunidade e território. “O bem-viver é uma relação do corpo com o próprio território. Se a comunidade não está saudável, não está em paz, cada indivíduo adoece também. É um adoecimento coletivo”.

Ela ressalta que o diálogo entre medicinas só acontece quando há reconhecimento dessa lógica. “Eles têm os próprios conhecimentos e nos trazem conhecimentos. Estamos trocando formas de cura e saberes. Antes de entrar no território, o branco precisa primeiro ser acolhido como igual. Só assim o tratamento é aceito”.

Por fim, Laura aponta que o fortalecimento das práticas tradicionais depende da ocupação de espaços acadêmicos e de saúde pelos próprios indígenas. “Acredito cada vez mais na criação de universidades indígenas, com saberes tradicionais em várias áreas. Isso será muito mais assertivo do que quando chegamos com uma caixinha de medicação impondo uma cura”.

Para enfrentar a crise de saúde mental em territórios indígenas e quilombolas, especialistas apontam que é preciso articular políticas públicas à valorização dos saberes tradicionais, reconhecendo que a cura não está apenas em medicamentos ou atendimentos clínicos, mas também em práticas coletivas, espirituais e no vínculo com a terra.

Como resume Ana Paula da Silva: “São conhecimentos diferentes, mas não são superiores ou inferiores. Eles são só diversos. Para muitos povos, riqueza é ter um território saudável, uma água limpa, animais e parentes ao redor. Isso é vida boa. A nossa visão capitalista não compreende, porque valoriza o dinheiro, mas para eles o sentido de bem-viver é outro”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Nonada Jornalismo, escrito por Lucas Veloso

Rios mudam os ambientes ao incorporar partes de outros rios, mostra estudo

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Rio Branco em Roraima. Foto: Oseias Martins/Rede Amazônica RR

Quanto mais desnorteado o trajeto de um rio, com desvios aparentemente ilógicos, maior o interesse do geógrafo André Salgado, da Universidade Federal de Goiás (UFGO). Nos últimos 15 anos, com imagens de satélite, análises de solos e muitas horas de caminhadas e observação, ele identificou avanços e recuos em várias redes fluviais no Brasil, ampliando as áreas das pesquisas realizadas desde os anos 1950.

Seus trabalhos indicaram que o trajeto do rio São Francisco já foi 250 quilômetros (km) mais extenso, antes de seu trecho inicial ser tomado pelo rio Grande, o principal formador do rio Paraná. Inversamente, o percurso do Poti, o principal afluente do Parnaíba, entre os estados do Ceará e do Piauí, se estendeu com a tomada da maior parte do trecho inicial e médio do Acaraú. Em Rondônia, o Rio Branco incorporou afluentes do Essequibo, o maior da Guiana, e em Santa Catarina o Itajaí-Açu apossou-se dos afluentes dos rios Uruguai e Iguaçu. “As bacias hidrográficas mudam continuamente”, comenta Salgado.

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Imagem: Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

Por meio da chamada captura fluvial, os rios agem como canibais, incorporando partes de outros, que encolherão ou desaparecerão. Em um artigo de maio de 2013 na Science, Sean Willett e outros geólogos do Instituto Federal Suíço de Tecnologia, em Zurique, chamaram de agressores e vítimas os rios que participam, com papéis opostos, desse fenômeno de progressão lenta. O ritmo das mudanças superficiais ou subterrâneas do fluxo da água depende do tipo de solo, da natureza das rochas (quanto menos resistentes, mais fácil para a água escavar) e da inclinação do terreno, já que a água tende a fluir para as áreas mais baixas.

Pesam também o clima, com mais ou menos chuva, que determina o poder erosivo dos rios, e os movimentos tectônicos, como o soerguimento da camada de solos e rochas mais superficial da Terra.

“A captura fluvial é como um bolo devorado dos dois lados. Quem come mais rápido de um lado chega antes no outro lado”, compara Salgado.

Ao formarem desvios e fundirem parte de seus trajetos, os rios aumentam ou reduzem a quantidade de água que irriga uma região. Em consequência, o clima, os tipos de vegetação e de ocupação humana podem mudar. “O Parnaíba capturou o Poti, em algum momento entre 23 milhões e 2,5 milhões de anos atrás, deixando o atual estado do Ceará mais seco do que seria sem esse desvio de águas para o Piauí”, diz Salgado, um dos autores do artigo de maio de 2024 na Revista Brasileira de Geomorfologia que descreve esses episódio.

O geógrafo norte-americano William Morris Davis (1850-1934) começou a estudar esse fenômeno ao descrever, em 1896, a captura de um rio no nordeste da França. Outras análises explicaram os desvios dos rios Ohio e James, nos Estados Unidos, do Tâmisa, em Londres, do Nilo, no Egito, e do Amarelo, na China, entre outros. No Brasil, a partir dos anos 1950, os geógrafos Aziz Ab’Saber (1921-2012), da Universidade de São Paulo (USP), e Antonio Christofoletti (1936-1999), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro, apresentaram algumas possibilidades de captura, embora ainda com argumentos limitados, em vista das técnicas de análises menos apuradas que as atuais.

O rio Branco (na foto maior), em Caracaraí (RR), avolumou-se ao ganhar as águas do Essequibo, deixando vestígios de um antigo rio nos limites das duas bacias (no destaque). Fotos: Tulio F /Wikimedia e André Salgado/UFG
O rio Branco (na foto maior), em Caracaraí (RR), avolumou-se ao ganhar as águas do Essequibo, deixando vestígios de um antigo rio nos limites das duas bacias (no destaque). Fotos: Tulio F /Wikimedia e André Salgado/UFG

Com o tempo, o redesenho dos rios ganhou dimensões políticas, na medida em que pode definir os limites de território, como aconteceu com o rio Branco. Seus principais afluentes faziam parte da bacia do rio Essequibo, que nasce em uma serra na divisa entre os estados de Roraima e Pará, corta a Guiana e deságua ao norte, no Atlântico. Em dezembro de 2021 na Journal of South American Earth Sciences, Salgado e seus colegas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde lecionou até 2022, argumentaram que, provavelmente por causa de um afundamento da crosta terrestre no sul de Roraima, o rio Branco capturou o Uraricoera, um dos afluentes do Essequibo, e depois o Tacutu, mudando sua direção e aumentando sua área de drenagem.

“Se o rio Branco continuasse a ir na direção nordeste em vez de mudar seu trajeto para sudoeste, o Brasil teria perdido para a Guiana toda a área central e norte de Roraima, porque as fronteiras entre os países nessa região eram definidas basicamente pelos limites das bacias hidrográficas”, comenta Salgado. “Como os colonizadores europeus entraram na Amazônia pelos rios, quem teria alcançado o interior de Roraima primeiro, se não tivesse ocorrido a captura, teriam sido os ingleses”.

Análises de sedimentos às margens dos rios indicaram que essa mudança deve ter ocorrido em período geológico relativamente recente, entre 18 mil e 10 mil anos atrás. Com outras metodologias, o também geógrafo Fábio Alves, da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob), estudou a região e confirmou os achados das equipes da UFG e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ao ver que a captura do rio Branco deve ter começado há cerca de 18,7 mil anos.

“A bacia Amazônica se formou e se expandiu por meio de sucessivas capturas de rios”, diz Alves, com base em um artigo de outubro de 2018 na Neotropical Ichthyology.

Leia também: Portal Amazônia responde: o que é a Bacia Amazônica?

Nesse trabalho, o biólogo James Albert, da Universidade de Louisiana em Lafayette, nos Estados Unidos, e os geólogos Carina Hoorn, da Universidade de Amsterdã, nos Países Baixos, e Pedro Val, da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny), argumentam que a rede de rios que corta a floresta amazônica é o resultado de sequestros fluviais ocorridos entre 5,6 milhões e 4,9 milhões de anos atrás, acelerando a diversificação de espécies de animais e plantas da região (ver Pesquisa FAPESP no 334).

Perdas e desvios de rios

As pesquisas nessa área ampliam o interesse de alguns pontos turísticos. Os gestores do Parque Nacional do Itatiaia, por exemplo, poderiam colocar uma placa perto do filete de água que emerge a 1.980 metros de altitude, no município mineiro de Bocaina de Minas, do qual se origina o rio Grande, avisando que ali, há cerca de 5 milhões de anos, era a nascente outro rio, o São Francisco. Atualmente o Velho Chico começa na serra da Canastra, também em Minas, a 250 km dali.

Salgado despertou para esse sequestro aquático a partir de uma observação do geógrafo Éric Andrade Rezende, então no doutorado. “Em 2015, Éric estava em uma estrada para Pimenta, em Minas, e notou algo estranho”, conta. “Ali o rio Grande, o principal formador do rio Paraná, fazia uma curva, em uma área plana. Ele voltou e falou: ‘E se ali fosse o São Francisco e não o rio Grande, como hoje?’.” Salgado, que até então tinha estudado rios pequenos e menos relevantes, apostou na ideia.

Diz Rezende, atualmente na prefeitura de Contagem, em Minas Gerais: “Quanto mais antigo é o processo no tempo geológico, mais difícil é fazer essa reconstrução evolutiva, pois as evidências vão sendo apagadas pela erosão ou pela atividade tectônica”. Salgado, o então doutorando e seu orientador, o geólogo Paulo de Tarso Amorim Castro, lançaram a hipótese em um artigo de julho de 2018 na Revista Brasileira de Geomorfologia, com base na análise de sedimentos, das estruturas geológicas e dos movimentos da superfície da região.

Imagem: Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

José Cândido Stevaux, geólogo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) que estuda as mudanças do rio Paraná nos últimos 10 mil anos, empolgou-se em um congresso no Ceará, em 2019, ao ouvir a palestra em que Salgado apresentou esses argumentos.

“Nos anos 1980, quando eu estava na Universidade de Maringá, no Paraná, meus colegas biólogos me perguntavam se não houve algum contato entre o Paraná e o São Francisco, porque havia muitas espécies de peixes em comum, e eu não sabia o que dizer”, conta.

Reforçando a hipótese, o grupo da UFG estudou a dispersão de espécies de peixes comuns às duas redes hidrográficas, como o dourado (Salminus brasiliensis) e o pintado (Pseudoplatystoma corruscans). As conclusões, detalhadas em janeiro na Geomorphology, indicaram que houve uma conexão momentânea entre os rios e a nascente do São Francisco se tornou gradualmente a do rio Grande entre 6 milhões e 5 milhões de anos atrás.

Como resultado, o rio Grande abocanhou mil km da extensão do São Francisco. Contando com os afluentes, o formador do Paraná teria incorporado cerca de 50 mil km2, um pouco mais do que a área do estado do Rio de Janeiro. “O São Francisco é um grande perdedor, porque perdeu água para o Paraná, para o Paraguaçu, que nasce na Chapada Diamantina, na Bahia, e para o Jequitinhonha, em Minas”, observa Salgado (ver infográfico).

Estudioso das transformações do Velho Chico nos últimos 90 mil anos (ver Pesquisa FAPESP no 331), o geógrafo Genisson Panta, doutorando na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professor do ensino médio em uma escola pública estadual de Maceió, Alagoas, comenta: “Depois de o trecho inicial do São Francisco ser remodelado por meio das capturas, o rio entalhou rochas e aprofundou seu cânion, a 2 mil km de distância, entre 1,5 milhão e 3,5 milhões de anos atrás”.

Em Cabrobó, no sertão de Pernambuco, o São Francisco faz um desvio abrupto para leste, também chamado de cotovelo, um sinal clássico de captura fluvial, indicando que um rio menor e menos volumoso o incorporou. Panta comenta que um sinal desse sequestro é um canal abandonado, chamado vale seco, na divisa entre Bahia e Piauí, por onde deve ter corrido o rio, como proposto nos anos 1990 pelo geógrafo da UFPE Jannes Mabessone (1931-2007).

“O Parnaíba pode ter sido o ancestral do São Francisco”, cogita. O engenheiro civil e geólogo Luís Flores de Morais Rêgo (1896-1940), da Escola Politécnica da USP, já propunha, em um livro de 1945, que o São Francisco de milhões de anos atrás deveria correr para o norte e desaguar no mar entre o Maranhão e o Piauí.

Polens

“O enfoque estritamente geológico é limitante”, concluiu a geógrafa da USP Déborah de Oliveira, após trabalhar na serra do Mar. Tremores de terra reformataram o relevo e mudaram os rumos de dois rios da região, o Paraíba do Sul e o Tietê: o primeiro se voltou para o litoral e o segundo, que também desaguava no mar, virou-se para o interior paulista (ver Pesquisa FAPESP no 77).

Oliveira estudou os desvios bruscos do rio Guaratuba, na serra do Mar, que antes corria para o alto Tietê e hoje deságua em Bertioga, São Paulo. Em 2013, ela viu que o canal abandonado do rio capturado não formava um vale seco, mas pantanoso, com organossolos, que poderiam conter pólen ou restos de plantas. Três anos depois, caminhando para um congresso no parque de La Vilette, em Paris, ela pediu à geógrafa Natália Nunes Patucci, uma de suas estudantes de doutorado, que a acompanhava: “Investigue os vales secos. Ali tem algo importante”.

Patucci buscou ajuda de especialistas em pólen no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena), em Piracicaba, e no Instituto de Geologia (IGc), ambos da USP. Aprendeu a fazer as análises e, por fim, encontrou polens de plantas típicas de clima frio e úmido, como Podocarpus sp., Ilex sp. e Symplocus sp. “Quando o clima mudou para quente e seco, há cerca de 25 mil anos, deve ter chovido mais e a erosão aumentou, facilitando a captura de rios da região”, comenta Oliveira. Seu plano é procurar polens também em outros rios que estuda, com sua equipe, no estado de São Paulo.

“Quando choveu mais, os rios e lagos se uniram”, concorda Salgado, que também fez pesquisas na região. “Como a erosão continua, outros rios serão capturados, reconfigurando novamente a paisagem que vemos hoje”. Como exemplo, ele cita a bacia amazônica, que está capturando pouco a pouco todo trecho inicial da bacia do rio Orinoco, na Venezuela, por meio do rio Casaquiare. Esse canibalismo aquático avançou, mas não terminou. Quando essa conexão se ampliar, o rio Amazonas, o maior do mundo, se apropriará de 40 mil km2 da área de drenagem do Orinoco, o quarto maior do mundo – o equivalente à área territorial da Suíça.

A reportagem acima foi publicada com o título “Canibalismo fluvial” na edição impressa nº 355 de setembro de 2025.

Projetos
1. Estudo das relações entre relevo / litologia / solo / drenagem em várias escalas de abordagem (no 12/19048-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Pesquisadora responsável Déborah de Oliveira (USP); Investimento R$ 47.985,52.
2. Geocronologia para avaliação dos processos de capturas fluviais: Aplicação em sedimentos dos vales secos do Guaratuba (SP) (no 16/06654-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Déborah de Oliveira (USP); Bolsista Natália Nunes Patucci; Investimento R$ 155.123,41.

Artigos científicos
ALBERT, J. S. et al. The changing course of the Amazon river in the Neogene: Center stage for Neotropical diversificationNeotropical Ichthyology. v. 16, n. 3, e180033. 18 out. 2018.
CASEMIRO, F. A. S. et alThe timing of large drainage rearrangement in South America: A study based on morphological and ecological evidenceGeomorphology. v. 468, 109457. 1º jan. 2025.
REZENDE, E. A. et alEvolução da rede de drenagem e evidências de antigas conexões entre as bacias dos rios Grande e São Francisco no Sudeste brasileiroRevista Brasileira de Geomorfologia. v. 19, n. 3. jul. 2018.
RODRIGUES, W. F. et alSubterranean river captures in siliciclastic rocks in a semiarid climate: The case of the Poti River Canyon, Brazilian NortheastRevista Brasileira de Geomorfologia. v. 25, n. 2. 15 mai. 2024.
SALGADO, A. R. et alLarge rivers, slow drainage rearrangements: The ongoing fluvial piracy of a major river by its tributary in the Branco river basin ‒ Northern AmazonJournal of South American Earth Sciences. v. 112, 103598. dez. 2021.
STOKES, M. F. et al. Ongoing river capture in the AmazonGeophysical Research Letters. v. 45, n. 11, p. 5545-52. 16 jun. 2018.
WILLETT, S. D. et alDynamic reorganization of river basinsScience. v. 343, n. 6175. 7 mar. 2014.

Livro
RÊGO, L. F. de M. O vale do São Francisco: Ensaio de monografia regional. São Paulo: Editora Renascença. 1945

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa Fapesp, escrito por Carlos Fioravanti

Boa Vista: de fazenda amazonense à capital do estado de Roraima

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Foto: Reprodução

Única capital brasileira situada acima da linha do Equador, Boa Vista tem uma história marcada por mudanças políticas e territoriais que refletem o processo de ocupação da região Norte do país.

Fundada em 1830 pelo capitão Inácio Lopes de Magalhães, a cidade nasceu como uma fazenda particular às margens do rio Branco, na então província de São José do Rio Negro, área que mais tarde integraria o estado do Amazonas. O povoado cresceu lentamente até se tornar, em 1858, a freguesia de Nossa Senhora do Carmo do Rio Branco.

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De acordo com informações da prefeitura de Boa Vista, a consolidação como núcleo urbano ocorreu em 9 de julho de 1890, quando o governador amazonense Augusto Ximeno de Villeroy elevou a freguesia à categoria de município, batizado de Boa Vista do Rio Branco. A cidade, na época, ainda integrava o município amazonense de Moura.

Boa Vista iniciou com uma vila. Foto: Reprodução

Leia também: 8 curiosidades sobre Boa Vista que você precisa conhecer  

Grande mudança

Com a criação do Território Federal do Rio Branco, em 1943, Boa Vista foi emancipada e se tornou capital. A partir daí, experimentou um rápido crescimento impulsionado pelo garimpo, que atraiu migrantes de várias regiões do país. Em 1962, o território passou a se chamar Roraima, e, em 1988, com a promulgação da nova Constituição, foi elevado à condição de estado.

Foto aérea de Boa Vista tirada por Hamilton Rice em 1924. (VERAS, Antonio Tolrino de Rezende. A produção do espaço urbano de Boa Vista – Roraima. Departamento de Geografia da FFLCH da USP, São Paulo-SP, 2009. Tese de doutorado)

Localizada nos chamados ‘Campos de Roraima’, a cidade se destaca pela vegetação típica conhecida como ‘lavrado’, uma cobertura rasteira intercalada por árvores esparsas, como o caimbé, e buritizais que acompanham os igarapés. A capital é cortada pela bacia do rio Branco, que domina quase toda a região e tem no rio Cauamé seu principal afluente pela margem direita.

Atualmente, a capital de Roraima é símbolo de urbanização planejada na Amazônia e carrega, em sua história, a transição de fazenda isolada a capital moderna, que um dia pertenceu ao Amazonas antes de se tornar o centro político e econômico de Roraima.

vista aérea de boa vista
Foto: Reprodução/Prefeitura de Boa Vista

Websérie resgata memória de artistas do Boi Garantido

Foto: Divulgação

O Festival de Parintins é reconhecido mundialmente pela grandiosidade de suas alegorias, coreografias e toadas. Mas por trás desse espetáculo estão os artistas que, com talento e dedicação, moldaram por exemplo a história do Boi Garantido.

É justamente para preservar essa memória que a websérie ‘Mestres e Mestras da Arte do Boi Garantido’ foi criada, premiada pelo edital da Lei Paulo Gustavo, por meio da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Amazonas.

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Com estreia no canal Amigos Garantidos no YouTube, a série audiovisual apresenta entrevistas inéditas e emocionantes com personagens que marcaram o Festival de Parintins. A websérie registra, em primeira pessoa, a trajetória de mestres e mestras que transformaram o boi vermelho e branco em um dos fenômenos culturais parintinenses.

Leia também: No Curral do Garantido – Alessandro Oliveira conta histórias da Amazônia por meio dos figurinos

  • Entre os protagonistas da primeira temporada estão nomes históricos como:
  • Jair Mendes, responsável por introduzir as alegorias e o coração na testa do boi;
  • Graça Faria, líder das Comadres do Garantido;
  • Amarildo Teixeira, que revolucionou as tribos;
  • e Maria do Carmo Monteverde, filha de Lindolfo, fundador do boi da promessa.

Direção da websérie

A direção da websérie é assinada pelo jornalista Allan Rodrigues, que possui uma trajetória profundamente ligada ao Festival de Parintins.

Cobriu a festa por mais de 15 anos, integrou a Comissão de Artes do Boi Garantido, atuou como comentarista das apresentações e é autor do livro “Boi-bumbá: Evolução”, já na segunda edição.

Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia, é atualmente professor do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), unindo sua experiência acadêmica e profissional ao compromisso de preservar a memória cultural do Garantido.

“A websérie se propõe a ser não apenas um registro documental, mas também um tributo. É memória viva, é poesia audiovisual, é a celebração daqueles que dedicaram a vida ao boi vermelho e branco”, diz o diretor e produtor da série, Allan Rodrigues.

Todos os episódios estão disponíveis gratuitamente no canal Amigos Garantidos no YouTube, aproximando o público das histórias que ajudaram a construir a maior festa popular da Amazônia.

Ritual Yaokwa, de povo indígena do Mato Grosso, ganha Plano de Salvaguarda

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Foto: Reprodução/Acervo Iphan

Nas águas sagradas do rio Juruena, que banha o estado do Mato Grosso, onde o tempo se move no ritmo das estações e a natureza guarda os segredos ancestrais, o Ritual Yaokwa encontra hoje uma nova proteção. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lançou o Plano de Salvaguarda desta manifestação sagrada do povo Enawênê Nawê, reconhecida como patrimônio cultural do Brasil desde 2010 pelo Iphan.

O documento traça o mapa de proteção para que o ritual continue acontecendo e mantenham viva a cosmologia de um povo que faz da cerimônia sua própria essência de existir.

Confira o Plano de Salvaguarda do Ritual Yaokwa AQUI.

O Plano de Salvaguarda é resultado do ciclo de reuniões e debates com lideranças do povo indígena e com grupos de professores indígenas e não-indígenas, representantes femininas das aldeias, outros atores da comunidade detentora e representantes de parceiros institucionais locais.

O documento ressalta que o impacto ambiental resultante do avanço dos empreendimentos hidrelétricos e do agronegócio na região da bacia do rio Juruena tem se apresentado como um desafio ao modo de vida indígena dos Enawênê Nawê, que tem o Ritual Yaokwa como a celebração da vida. 

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Ritual Yaokwa

Ritual Yaokwa
Ritual Yaokwa. Foto: Reprodução/Acervo Iphan

Com duração de sete meses, o Ritual Yaokwa define o princípio do calendário anual Enawênê, quando os homens saem para a realização da maior de suas pescas – a pesca coletiva de barragem. O ritual estende-se durante o período da seca, época marcada pelas interações com os temidos seres naturais do patamar subterrâneo, os Yakairiti.

Na perspectiva nativa, estes seres estão condenados a viver com uma fome insaciável e precisam dos Enawênê Nawê para satisfazer seu desejo voraz por sal vegetal, peixe e outros alimentos derivados do milho e da mandioca. 

O Ritual Yaokwa inicia-se em janeiro, com a colheita da mandioca e a coleta das matérias-primas, casca de árvore e cipó, para a construção do Mafa – corpo central das armadilhas de pesca que deve ser acoplado às barragens a serem construídas nos rios. Neste período, realizam-se as primeiras oferendas de alimentos, cantos e danças aos Yakairiti. 

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O ritual é reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil desde 2010 e foi revalidado pelo Conselho Consultivo do Iphan em novembro de 2024. A revalidação está relacionada a bens imateriais que já são reconhecidos pelo Iphan e tem o objetivo de avaliar a atual situação desses bens, levantar informações, averiguar a efetividade das ações de salvaguarda, verificar mudanças nos sentidos e significados atribuídos ao bem, entre outras questões.

*Com informações do Iphan

Lula diz que BR-319 será reconstruída com responsabilidade para preservar floresta e evitar invasões

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Presidente Lula reafirma compromisso com a preservação do trecho central da floresta amazônica. Foto: Ricardo Stuckert/PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou, em entrevista exclusiva ao Grupo Rede Amazônica em Brasília na segunda-feira (8), que a obra de recuperação da BR-319 vai sair do papel, ressaltando que a rodovia será realizada com responsabilidade ambiental.

“Vamos fazer a BR-319, eu posso te garantir. Mas vamos fazer de comum acordo com os ambientalistas, com aqueles que precisam da estrada e, sobretudo, para atender duas capitais que não podem ficar isoladas como Porto Velho e Manaus”, disse Lula.

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Inaugurada em 1976, a BR-319 tem 885,9 quilômetros de extensão, sendo 821 km no Amazonas e 64,9 km em Rondônia. É a única ligação terrestre entre o Amazonas e o restante do país e dá acesso a cidades como Humaitá, Lábrea e Manicoré.

Há mais de 30 anos, a BR-319 tem trechos não pavimentados que dificultam o tráfego e causam prejuízos a quem depende da estrada. Impasses e exigências ambientais têm impedido a reconstrução completa da rodovia.

Lula ressaltou que a discussão tem sido tratada com seriedade dentro do governo e que o equilíbrio entre desenvolvimento e preservação será prioridade.

“Não podemos fazer uma rodovia e, dois meses depois, ver o desmatamento, o grileiro criando gado onde não pode criar gado, plantando soja onde não pode plantar soja. Temos que manter a floresta intocável para o bem da humanidade inteira”, pontuou.

Presidente Lula em entrevista a rede amazônica sobre a BR-319
Foto: Ricardo Stucker/PR

O presidente também defendeu a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, lembrando que ela não se opõe à obra.

“Às vezes jogam a culpa em cima da Marina. Mas a Marina nunca disse que é proibido fazer. O que ela quer discutir é como fazer as coisas. E se for bem feito, é melhor para todo mundo”, disse.

Segundo ele, a realização da obra depende de um pacto conjunto entre União, estados e municípios.

“Temos que ter responsabilidade do governo federal, do governo estadual e das prefeituras para que a gente cuide da Amazônia”, afirmou.

Leia também: BR-319: Conheça 5 curiosidades sobre a rodovia que divide opiniões

Polêmica no Senado sobre a proteção ambiental

No dia 27 de maio, parlamentares ofenderam a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, durante audiência na Comissão de Infraestrutura do Senado, enquanto discutiam proteção ambiental na Amazônia.

O senador Marcos Rogério, do PL, disse que Marina deveria “se por no seu lugar”, e o senador Plínio Valério afirmou respeitar a mulher, mas não a ministra. Marina reagiu, cobrou pedido de desculpas que não veio e decidiu se retirar da audiência.

Durante a sessão, o senador Omar Aziz falou sobre o asfaltamento da BR-319: “Queremos, sim! Nós temos o direito de passear na BR-319, e não é a senhora que não vai permitir que a gente passeie na BR-319. A senhora passeia na Avenida Paulista hoje, e nós queremos passear na BR-319”.

A ministra respondeu que é necessário realizar antes uma avaliação ambiental estratégica, ressaltando que seu trabalho segue a lei e considera as futuras gerações.

Avaliação ambiental estratégica da BR-319 e decisões da Justiça

Em 15 de julho, Marina Silva anunciou a criação de uma comissão interministerial para conduzir uma Avaliação Ambiental Estratégica (AAE) voltada à recuperação da BR-319.

A iniciativa reúne os Ministérios do Meio Ambiente e dos Transportes, com coordenação geral da Casa Civil. A avaliação abordará toda a área de influência da rodovia e prevê a criação de um modelo de governança para uma faixa de 100 km ao redor da estrada, incluindo terras indígenas, unidades de conservação e áreas sem destinação definida.

A Justiça Federal já suspendeu a licença prévia para o trecho central da rodovia em julho, atendendo a recursos do Observatório do Clima que apontam impactos ambientais antecipados, como abertura de ramais ilegais e especulação imobiliária.

A Advocacia-Geral da União defende a manutenção da licença, destacando que 55% da área ao redor da BR-319 já possui unidades de conservação reconhecidas, funcionando como barreira contra o desmatamento.

*Por Daniel Landazuri, da Rede Amazônica AM

Antes e depois: veja como era o posto que deu lugar ao primeiro hospital indígena do Brasil

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Foto: Valéria Oliveira/Rede Amazônica RR e João Risi/MS

O primeiro hospital de saúde indígena do Brasil começou a funcionar na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, dois anos após o governo federal reconhecer a emergência de saúde pública na região.

Localizado em Surucucu, considerada uma região de referência para atendimentos médicos dentro do território, o Centro de Referência em Saúde Indígena (CRSI) Xapori Yanomami é o primeiro hospital em saúde indígena do Brasil.

Leia também: Primeiro hospital de saúde indígena do Brasil começa a funcionar na Terra Yanomami

Construção do 1° hospital indígena do Brasil

O centro começou a ser construído em agosto do ano passado e custou cerca de R$ 29 milhões. Antes da situação de emergência na região ser declarada, em janeiro de 2023, os atendimentos de saúde ocorriam em uma unidade básica de saúde com estrutura precária — a enfermaria, onde os pacientes indígenas ficavam internados, era um barracão de madeira de chão batido.

As imagens a seguir mostram o contraste entre a estrutura da unidade básica de saúde antes e durante o decreto de emergência, e a do hospital, registrado no último sábado (6), quando iniciou os primeiros atendimentos.

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Foto: Alexandro Pereira/Rede Amazônica RR
primeiro hospital indígena do Brasil
Foto: Rodrigo Hanna/MS
Foto: Valéria Oliveira/Rede Amazônica RR
Foto: Lucas Wilame/Rede Amazônica RR
Foto: Valéria Oliveira/Rede Amazônica RR
Foto: João Risi/MS
Foto: Valéria Oliveira/Rede Amazônica RR
Foto: João Risi/MS
Foto: Yara Ramalho/Rede Amazônica RR
Foto: João Risi/MS

Terra Indígena Yanomami

Com 9,6 milhões de hectares, a Terra Yanomami é o maior território indígena do Brasil em extensão territorial. Localizado no Amazonas e em Roraima, o território abriga cerca de 32 mil indígenas, que vivem em 392 comunidades.

O povo Yanomami é considerado de recente contato com a população não indígena e se divide em seis subgrupos de línguas da mesma família, designados como: Yanomam, Yanomamɨ, Sanöma, Ninam, Ỹaroamë e Yãnoma.

Há décadas, o território é alvo do garimpo ilegal, que destrói a floresta, contamina os rios e afeta diretamente o modo de vida dos Yanomami

A região está em emergência de saúde desde janeiro de 2023, quando o governo federal, a partir da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), começou a criar ações para atender os indígenas, como o envio de profissionais de saúde e cestas básicas, além da retirada de garimpeiros.

*Com informações da Rede Amazônica RR

Jogo criado por amapaense mistura rotina e terror: Bob’s Fears

Foto: Isadora Pereira/Rede Amazônica AP

O jovem Gabriel Rocha, de 19 anos, apresentou seu jogo no evento Joga Feira, durante a 54ª Expofeira do Amapá, em Macapá. Ele é programador e desenvolvedor de jogos independentes. A mostra é organizada pelo coletivo Game Dev Amapaense, que busca destacar talentos locais da área de tecnologia e criação digital.

A programação da Expofeira continua até domingo (7), com exposições e apresentações de artistas e criadores do Amapá e de outras regiões do país.

O jogo criado por Gabriel, chamado Bob’s Fears (Medos do Bob), surgiu durante uma ‘game jam‘ — competição que desafia desenvolvedores a criar jogos em poucos dias.

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Como é o jogo?

Com o tema ‘looping‘, Gabriel decidiu mostrar a rotina repetitiva de uma pessoa comum — como lavar louça, separar o lixo e correr para o ônibus — mas com uma abordagem criativa e inusitada.

O protagonista do jogo é Bob, que se muda para uma cidade nova por causa do trabalho. Ele imagina que vai viver em uma metrópole enorme, mas descobre que o local é habitado por monstros de verdade.

Leia também: Tradição, cultura e histórias marcantes: 6 curiosidades sobre a Expofeira do Amapá

tela do Jogo amapaense Bob’s Fears
Foto: Isadora Pereira/Rede Amazônica AP

No novo lar, Bob enfrenta tarefas comuns, como limpar a casa ou ir ao mercado, sempre com o receio de encontrar monstros pelo caminho.

“A ideia surgiu da nossa própria rotina. A gente queria transformar coisas simples do dia a dia em algo divertido, mas também meio assustador. Tipo lavar louça e um monstro aparece na sua janela”, explicou.

Apesar de não ter concluído o projeto durante a competição, Gabriel foi convidado pelo coletivo para apresentar o jogo no mês agosto durante a feira.

“A gente queria que o jogo fosse engraçado, mas também causasse uma estranheza. É como se os monstros fossem metáforas das tarefas que a gente evita”, concluiu.

Sobre o coletivo de games

O coletivo Game Dev Amapaense foi criado para fortalecer a produção de jogos independentes no estado. Leonardo Ferreira, um dos cinco diretores do grupo, explica que o objetivo é dar suporte a artistas e desenvolvedores locais, evitando que precisem sair do Amapá por falta de oportunidades.

“O desenvolvimento de jogos aqui ainda é pouco conhecido. Tem gente que faz, mas ninguém sabe. A ideia é criar um sistema que funcione, que dê suporte e mantenha os artistas no estado”, afirma Leonardo.

O Joga Feira é uma das ações do grupo e reúne produções locais para que o público conheça o potencial criativo dos desenvolvedores amapaenses.

Foto: Isadora Pereira/Rede Amazônica AP

Conheça alguns games amapaenses expostos na feira

  • Brew & Desh – É um jogo tipo “infinity runner” em que o jogador controla uma bruxinha aventureira. Ela pilota um carrinho por cavernas geradas aleatoriamente, em busca de ingredientes mágicos.
  • Spirit of Calamity – Neste jogo, o personagem principal é Abelardo, que entra em um hotel abandonado para procurar o irmão desaparecido, Ícaro. A história mistura mistério e exploração.
  • Ghostein – Criado por um desenvolvedor paraense, o jogo é furtivo e conta a história de um pai que morreu em uma câmara de gás. Ele volta como fantasma para tentar salvar o filho do mesmo destino. A narrativa é centrada no amor entre pai e filho.
  • Love Sick Cats – Desenvolvido por um criador amapaense, o jogo é um roguelike frenético. O jogador assume o papel de Sashi, uma gata assassina movida por vingança pessoal.

Indígenas de Roraima criam plano inédito contra crise climática como modelo para outros países

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Plano de enfrentamento foi produzido por pesquisadores indígenas organizados pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR). Foto: Reprodução/Rede Amazônica RR

Indígenas de Roraima elaboraram um plano de enfrentamento da crise climática que será apresentado na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2025 (COP 30), em Belém, no Pará. O trabalho inédito reúne vivência e ciência indígena, evidencia os impactos da crise climática nas comunidades e propõe estratégias de adaptação, com metodologia que pode ser replicada em outros países.

O Grupo Rede Amazônica mostra como o plano pode orientar estratégias de adaptação e mitigação não só na Amazônia, mas em qualquer lugar do planeta. Marcada para novembro, a COP30 deve reunir 196 países para discutir metas de enfrentamento à crise climática. É neste cenário que o trabalho em Roraima se insere.

Batizado de “Plano de Adaptação Indígena“, o estudo detalha os impactos da crise climática nas plantações, na caça, na pesca e na disponibilidade de frutas ao longo das últimas duas décadas. O material teve como base relatos de moradores de 20 comunidades em oito terras indígenas.

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As informações foram coletadas por pesquisadores indígenas que atuam como agentes territoriais e ambientais (Atais). Todos fazem parte do departamento de Gestão Territorial, Ambiental e Mudanças Climáticas do Conselho Indígena de Roraima (CIR), chefiado pela cientista e referência mundial nas discussões sobre clima, Sineia do Vale.

“No Dia da Amazônia, a importância que a gente traz nesse plano é que as soluções para o clima podem vir a partir dos próprios povos indígenas, principalmente sobre a adaptação [às mudanças do clima]. Questões sobre como eles ajudam na manutenção da biodiversidade da Amazônia, por exemplo, com sua sabedoria no manejo de várias espécies, de caça e de pássaros”, resumiu Sineia.

Entenda: adaptação às mudanças do clima é o conjunto de ações e estratégias para lidar com os efeitos da crise climática, como aumento das temperaturas e eventos extremos. É uma preparação para impactos atuais ou futuros, com objetivo de reduzir danos e proteger vidas, ecossistemas e economias.

No plano, pesquisadores indígenas ouviram as comunidades para registrar percepções sobre os impactos das mudanças climáticas nos modos de vida, com base no conhecimento tradicional e em indicadores naturais.

Parte do processo foi ilustrado com mapas feitos à mão, mostrando os ciclos da natureza e as transformações do ambiente ao longo dos meses. O plano refere-se às comunidades do município de Amajari, mas tornou-se uma referência pelo modo como as questões foram explicadas.

Calendários etnoecolócios

Além dos mapas, os pesquisadores indígenas produziram calendários etnoecológicos, também chamados de calendários culturais. Eles mostram como os povos sabiam o tempo certo de plantar, colher e realizar outras atividades produtivas. Com a crise do clima, essa precisão deixou de existir.

Historicamente, os calendários guiavam não apenas as roças, mas também práticas vitais como a caça e a pesca. Além disso, evidenciam a conexão direta dos modos de vida indígenas com os ciclos do clima – essa percepção pode ser reconhecida como ciência indígena.

“Quando eu trago um pouco dessa questão [da ciência indígena] no plano de enfrentamento das mudanças climáticas, junto com a ciência acadêmica, estou dizendo que precisamos unir as duas ciências [no enfrentamento à crise do clima]”, frisou Sineia.

Os relatos descritos no estudo reforçam que a sabedoria ancestral tem sido desafiada pelas mudanças climáticas. Com o clima cada vez mais imprevisível, as comunidades “não sabem mais quando plantar”, o que afeta diretamente a qualidade e a produção dos alimentos.

“Antigamente, nós tínhamos o tempo de fazer roça, plantação e colheita […]. Hoje, quando chove, é muita chuva e quando faz verão, é muito quente, o que afeta as plantações e faz com que se estraguem. Por causa do tempo incerto, hoje eu não tenho mais roças”, cita trecho de um dos relatos no plano.

Esses calendários, além de registrarem o conhecimento tradicional, passaram a servir como indicadores dos impactos das transformações do clima no cotidiano e na cultura das comunidades indígenas. É nesse ponto que os povos defendem ser modelo para outros países, reforçando que as comunidades tradicionais precisam ser ouvidas nas decisões climáticas.

“Cada povo tem sua percepção diferente. Por mais que o nome seja ‘Plano de adaptação indígena’ [de Roraima], cada povo pode construir com sua percepção, seus indicadores naturais diferentes”, resume Sineia.

Ações para enfrentamento das mudanças climáticas

Plano de enfrentamento foi produzido por pesquisadores indígenas organizados pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR)

O plano sistematiza, a partir do ponto de vista dos indígenas, três ação consideradas cruciais para o enfrentamento da crise climática:

  • As mudanças do tempo;
  • Os impactos nas roças, na fauna e na flora;
  • Quais ações são necessárias para lidar com elas.

As mudanças do tempo identificadas incluem estações imprevisíveis; invernos prolongados (com enchentes); focos de incêndio descontrolados; e calor e chuva fora de época. Esses fatores, segundo o estudo, impactam a produção agrícola, a variedade de sementes e frutas, e reduzem as espécies de animais.

Para mitigar o cenário, o estudo destaca ações práticas adotadas pelas comunidades e outras definidas para lidar com os efeitos do clima. Entre elas estão a manutenção do plantio em roças com planejamento coletivo, a limpeza ao redor das roças para protegê-las contra incêndios e a melhoria dos sistemas de irrigação.

Na pesca, o estudo recomenda respeitar o período da piracema, manter vigilância contra a pesca ilegal e construir açudes para piscicultura.

Para proteger a fauna, indica a preservação de habitats, educação ambiental e prevenção de queimadas. O documento ressalta ainda a necessidade de praticar a caça apenas para subsistência e nos períodos permitidos.

O monitoramento feito pelos agentes territoriais e ambientais indígenas e queimas prescritas conduzidas por brigadas indígenas são citadas como mecanismos de implementação das medidas necessárias.

Pesquisadores indígenas: quem fez o estudo?

O estudo foi feito por cinco pesquisadores indígenas: Nilson Thome (Ouro), Vanderly Peres dos Santos (Urucuri), Laiane da Silva Torreias (Anigal), Francileneny Campino Lima (Araçá) e Josirene Santiago Vanderlei (Guariba).

O grupo foi coordenado por Maria de Fátima da Silva André, professora do curso de Gestão em Saúde Coletiva Indígena da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e membro do CIR, com Sineia do Vale como facilitadora.

Desde 2011, o CIR elabora planos de enfrentamento às mudanças climáticas. Sineia do Vale contou ao g1 que a ideia surgiu há 15 anos, após contato com uma organização das Filipinas.

“Começou justamente porque tivemos um impacto na Serra da Lua em 2010, quando todas as mandiocas ‘cozinharam’ dentro da terra. Contamos o caso à organização das Filipinas, que já trabalhava com a crise climática e nos apoiou para fazer um estudo e entender o que estava acontecendo” explicou.

Segundo ela, os planos são feitos pelos próprios indígenas, com metodologia que identifica alterações climáticas por indicadores naturais, como cantos de pássaros, aquecimento das águas e sumiço de peixes. Essa metodologia é complementada pela ciência acadêmica.

“Olhar 20 anos atrás dá muitas informações sobre o que mudou: na cultura, na plantação, na pesca, na caça; e indica que soluções precisamos. Por exemplo: plantar sementes mais resistentes ao inverno e ao verão”, destacou.

O CIR planeja produzir planos para todas as regiões de Roraima. Ao final, a ideia é concluir o Plano de Adaptação de Roraima e apresentá-lo ao Ministério do Meio Ambiente como maneira apoiar políticas públicas relacionadas ao clima.

*Por João Gabriel Leitão e Valéria Oliveira, da Rede Amazônica RR

Por que dizem que Rondônia fica ‘onde o vento faz a curva’?

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Bandeira de Rondônia balançando com o vento. Foto: Daiane Mendonça/Secom RO

A expressão popular “onde o vento faz a curva” geralmente é usada para se referir a lugares distantes. Porém, em Rondônia essa frase ganha um significado literal: o estado está localizado exatamente no ponto onde os ventos que cruzam a América do Sul mudam de direção.

O Grupo Rede Amazônica conversou com o professor João Gobo, especialista em climatologia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que explica como a posição do estado está diretamente relacionada aos ventos e às chuvas de todo o país e até ao futuro da floresta amazônica.

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Ele explica que esse papel estratégico de Rondônia no clima sul-americano está diretamente ligado aos Jatos de Baixos Níveis (JBN), que são correntes de vento carregadas de umidade que se deslocam próximo à superfície, partindo da Amazônia.

Esses jatos também são conhecidos como “rios voadores” porque levam água na forma de vapor e alimentam chuvas em outras regiões do Brasil. Rondônia está justamente no ponto onde esses ventos mudam de direção, o chamado “ponto de inflexão”.

Leia também: Portal Amazônia responde: O que são os rios voadores?

“Esse vento vem do Leste [Manaus e Belém]. Por conta da Cordilheira dos Andes, eles não conseguem seguir caminho em direção ao Pacífico, então fazem uma curva em direção ao Sul e ao Sudeste do Brasil. Essa curva é exatamente em cima de Rondônia, Acre e da Bolívia”, explica.

Mas por que os ventos não conseguem passar pelas Cordilheiras? 

Os Andes formam a cadeia de montanhas mais extensa do mundo, com relevo elevado e pressão atmosférica reduzida. Essas características criam uma barreira natural que impede o avanço dos ventos vindos da Amazônia. É como se os Andes fossem uma parede, e Rondônia, a esquina onde esses ventos dobram o caminho.

Rondônia como epicentro da umidade continental

De acordo com Gobo, a posição geográfica do estado faz dele uma espécie de “esteira rolante de umidade”. O vapor d’água que evapora da floresta e do oceano é empurrado pelos ventos entre os Andes e o Planalto Brasileiro, ganhando velocidade e seguindo em direção ao centro-sul do continente.

Esse movimento é essencial para formar a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), que leva chuvas para regiões como o Sudeste e o Centro-Oeste do Brasil.

A posição geográfica de Rondônia é estratégica:

  • Está a leste dos Andes, o que a coloca diretamente na rota dos JBN.
  • Fica abaixo da faixa equatorial, onde há forte influência da Monção Sul-Americana, que regula os ciclos de chuva e seca.
  • Está entre biomas como a Amazônia e o Cerrado, o que contribui para uma rica interação entre umidade, temperatura e relevo.

Essa combinação faz com que o estado receba grandes volumes de umidade e registre chuvas intensas, especialmente no verão, quando a monção está ativa.

A monção sul-americana é um sistema de ventos que muda com as estações, trazendo chuvas intensas no verão. Ela ocorre pela diferença de temperatura entre o continente e o oceano, que atrai ar úmido para o interior do Brasil.

Um inimigo: o desmatamento

desmatamento em rondônia
Desmatamento na Terra Indígena Igarapé Lage em Rondônia. Foto: Divulgação/PF

A floresta amazônica funciona como uma gigantesca fábrica de vapor d’água. As árvores liberam umidade para a atmosfera por meio da evapotranspiração: um processo natural que mantém o ar úmido e alimenta os ventos que transportam essa umidade pelo continente.

Quando há desmatamento, essa produção de vapor diminui. Isso afeta diretamente os Jatos de Baixos Níveis (JBN), que dependem dessa umidade para levar chuva para outras regiões. Com menos vapor disponível, os ventos perdem força e a Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS) também enfraquece.

Rondônia não é apenas “onde o vento faz a curva”, é onde o clima da América do Sul se desenha. A ciência confirma o que a sabedoria popular já manifestava. Entender essa dinâmica é essencial para proteger a floresta, o clima e o futuro da região.

*Por Beatriz Rodrigues, estagiária sob supervisão de Jaíne Quele Cruz, da Rede Amazônica RO