Capa de A caligrafia de Deus (Lazuli, 2011), com alteração
Por Jan Santos – jan.fne@gmail.com
O primeiro artigo científico que escrevi na vida foi durante o 4º período da graduação, um texto sobre os absurdos presentes no conto A caligrafia de Deus, de Márcio Souza. O principal era como a violência surgia de forma definitiva, como se o cenário descrito, uma Manaus tomada pelo surto populacional trazido pela instalação da Zona Franca, fosse uma carta aberta contra toda forma de civilidade.
Acho incômodo não apenas o fato da violência e seus códigos serem o esqueleto da narrativa, mas que o discurso de Souza abrace um elitismo típico da camada “intelectual” da cidade, que responsabiliza o pobre por sua pobreza, como se o destino fosse algo inescapável a quem não tem no espírito as sensibilidades do intelecto, pessoas condenadas por si mesmas a uma vida sem dignidade, não como se fossem também vítimas dos interesses de uma outra espécie de elite:
“Manaus é odiada talvez por não cumprir com o que promete. Engana as gentes das barrancas, os inocentes dos rios.
Engana os que chegam de muito mais longe, carregados de misérias e pesadelos.
Essa gente enganada não perdoa a cidade, e castiga Manaus, cada uma delas fazendo crescer o tumor canceroso em que foi transformada a velha e orgulhosa capital dos barés.
Cidade degenerada, de alegria favelada acostumada a se contentar com pouco”.
Apresentação, A caligrafia de Deus
Márcio Souza deixou para o mundo uma contribuição literária tremenda, mas todos temos nossos limites. O dele é o mesmo das elites brasileiras: a incapacidade de enxergar o mundo fora das lentes do erudito, sem entender que o mundo é construído por muitas mãos. Esquecem porque as suas não estão sujas de terra. Esquecem que, na capital dos barés, os barés sequer têm vez.
Curiosamente, Souza também enxerga que os protagonistas de Caligrafia, mesmo dentro daquele universo, são representados não como pessoas, mas como personagens em um teatro do qual mal têm consciência. Minha crítica ao texto de Souza foca justamente no fato de o autor não acreditar que pessoas em situação de vulnerabilidade são capazes justamente de ter consciência, mas ele entende bastante dos mecanismos perversos que movimentam esse teatro.
Acontece que suas personagens, uma moça baniwa chamada Izabel Pimentel e Alfredo Silva, vulgo Catarro, um rapaz que veio do interior em busca de oportunidades em Manaus, são envolvidos pelo crescimento desregulado que acometeu Manaus com a chegada da Zona Franca. Inevitável associá-los ao perfil descrito por Souza em sua apresentação do livro de mesmo nome do conto, que atraídos pelas promessas de grandeza da capital, são por ela traídos e contra ela tramam vinganças.
Acontece que ambos são traídos, mas privados de consciência, não tramam vingança alguma. Pelo contrário, tornam-se peças num jogo maior que eles mesmos, tão grande que sequer enxergam os jogadores que os movem. Na verdade, são pessoas que, ao longo da vida, aprendem desde cedo que a violência também é uma linguagem.
Chamo de linguagem porque os códigos da violência sempre estiveram moldando o mundo que os rodeia, de modo que a naturalizam e sequer entendem-na como violência.
“Deus escreve certos por linhas tortas” é a justificativa que Izabel aprende desde nova para compreender os abusos da vida, seja no convento de sua cidade natal, Iauaretê-Cachoeira, ou nos bordéis de Manaus, onde conhece Alfredo e com ele se relaciona.
Associada à vontade divina, a violência permeia suas vidas desde a concepção: pais violentos, um ambiente ancestral carcomido por tradições coloniais com o qual não se reconhecem, uma promessa de vida melhor sob as luzes da cidade grande.
O desengano não acontece em momento algum, pois a mecânica da narrativa os coloca como incapazes até de perceber a armadilha urbana em que caíram. Alfredo, levado pela necessidade, acaba envolvido em pequenos atos ilícitos, como pirataria, e no momento em que praticou furto, se tornou moderadamente famoso.
Por conta disso, quando a polícia, mais uma força de coerção do que de fato segurança, precisava de um bode expiatório para mostrar serviço ou acalmar os ânimos públicos com relação à violência que resulta do crescimento louco de uma metrópole, era o rosto surrado de Catarro que exibiam na televisão.
Comissário Frota, a força policial na narrativa, tinha em Catarro seu alvo favorito: frágil, bobo, fácil de capturar. Para justificar a própria ineficácia, prendia o pobre-diabo e mantinha a opinião pública satisfeita, pois ele próprio, instrumento do Estado, também tinha um papel a cumprir no teatro da violência.
Até o momento em que uma operação policial mais… efetiva foi necessária, e já não bastava capturar qualquer um para servir de bode. A narrativa já começa com os corpos de Alfredo e Izabel expostos, perfurados por balas, e em retrospecto, suas histórias são contadas e vemos que, vítimas da máquina de moer carne de pobre que é uma capital, os dois não tinham parte nos crimes pelos quais foram condenados.
O mais absurdo na narrativa não é o fatídico destino desses sujeitos, mas como a violência aparece como um traço da personalidade da capital, inescapável, inquestionável, irreconhecível por ser tão familiar, tal qual as linhas escritas por Deus.
Digo o mais absurdo, mas frequentemente me questiono se é isso mesmo quando ligo a televisão e vejo a celebração de uma chacina em favelas. Entenda, se em 2025 ainda pensamos que qualquer crítica a uma ação policial é sinônimo de defesa da criminalidade, eu afirmo que este texto não é para você. Sugiro fechar esta página e voltar às mensagens massificadas em seu Whatsapp, mas duvido que, se pensa assim, sequer teria chegado tão longe na leitura.
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Não é absurdo, pois a violência é sim a linguagem que nosso país conhece fluentemente. Me perguntava como era possível que as pessoas na narrativa de Márcio Souza olhassem para os corpos de Izabel e Alfredo com uma curiosidade mórbida, certos de que haveria algum tipo de ser humano que merecia ser entregue às moscas daquela forma, mas tenho a mesma reação aqui, no mundo real, na sagrada capital dos barés de Márcio Souza.
Celebrar a morte como um símbolo de uma sociedade respeitável é a manifestação máxima do dialeto-violência. Ainda sou assombrado pelas reportagens que mostravam pessoas lavando litros de sangue em pisos de alvenaria após a chacina do Jacarezinho em 2021, assim como não esqueço as mães desesperadas em função do massacre no Compaj, em 2017, pois não acredito que algum tipo de paz ou segurança seja construído em cima de tanta brutalidade.
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Não vemos essa brutalidade na Faria Lima, mesmo depois de confirmada a ligação entre empresários influentes com o crime organizado. Não vemos essa brutalidade quando um ex-deputado recebe policiais cumprindo seu dever com tiros e granadas. Não vemos essa brutalidade quando um empresário influente de Manaus faz o mesmo com a polícia federal às portas de seu condomínio de luxo, investigado por desvio de recursos destinados ao combate à Covid.
Aliás, não vemos sequer a celebração do desmonte de uma célula ligada ao crime organizado na Bahia, no início do mês, sem que um massacre fosse deflagrado pelas forças policiais. Afinal, isso não rende pauta, isso não rende mídia.
O fato é que a violência é o que sempre foi: um instrumento usado pelas forças instauradas para garantir a estabilidade de um sistema que favorece poucos. O Estado brasileiro não é contra a violência, só é possessivo com relação ao seu uso. Se não é o Estado que seleciona quem usa essa violência, chamam de vandalismo, de barbaridade.
Nesse cenário, a violência é menos um fenômeno que surge da desordem social e mais uma ferramenta de coerção, uma espada de dois gumes empunhada por um cavaleiro ciumento que frequentemente se corta na própria lâmina, mas com poder de decisão sobre que perfil merece viver e qual merece morrer. É o símbolo do que Achille Mbembe chama de necropolítica.
O que se celebra não é estarmos um passo mais próximos de uma sociedade segura, mas o derramamento de sangue que uma paz falsa exige, só mesmo para garantir as palmas nesse teatro. Paz para quem? Afinal, o crime ainda se organiza, e não apenas nas favelas, mas são elas que pagam o preço com vidas a quilo. E não, não interessa se essas vidas são de criminosos, elas são apenas a justificativa para que a bala siga perdida, mas com alvo certo. Alvos com cor, com CEP, com uma renda sub-humana, mas sem nomes. Talvez um apelido, talvez um escarro.
Porque quando só entendemos a violência, tudo o que falamos é morte.

Sobre o autor
Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).
*O conteúdo é de responsabilidade do colunista




























