Povos indígenas de Roraima buscam soluções sustentáveis como estratégia de sobrevivência

A agricultura sustentável, a pesca livre de mercúrio e a economia circular estão entre as estratégias que eles vêm desenvolvendo para sobreviver em um dos Estados mais hostis com os povos originários.

Sob o sol escaldante e o céu azul, as lavouras de mandioca recém capinadas não oferecem sombra para se esconder neste trecho de Floresta Amazônica. É inverno, época de plantar. À medida que os dias passam, a maioria acima dos 30 graus Celsius, aproximam-se as fortes chuvas que chegarão para fazer brotar as plantas.

As roças de mandioca entre as quais Maria Loreta Pascoal caminha são o meio de vida da comunidade indígena de Novo Paraíso, da qual ela é a tuxaua, ou cacica, conta Pascoal. 

“É assim que cultivamos nossa subsistência”.

Desde que se tornou tuxaua de Novo Paraíso, Maria Loreta Pascoal assumiu a tarefa de alertar a comunidade sobre os riscos de desmatar novas áreas para a agricultura. Já há áreas desmatadas suficientes para a agricultura sustentável em sistema de rodízio, diz ela. Foto: Amanda Magnani/Mongabay

A vida em Novo Paraíso, comunidade localizada na Terra Indígena Manoá-Pium, em Roraima, depende fortemente da produção e do comércio da farinha de mandioca. Daqui a uns nove meses, as plantas que agora mal alcançam os calcanhares da tuxaua estarão prontas para a colheita e o beneficiamento.

Demarcada e homologada, ou oficialmente reconhecida por decreto presidencial, em 1982, a TI Manoá-Pium abrange uma área de menos de 44 mil hectares. Ela abriga sete comunidades, que juntas somam uma população de mais de 3.900 pessoas, todas dependentes da agricultura familiar.

No trajeto de uma hora de carro desde Boa Vista, capital de Roraima, até Novo Paraíso, as mudanças na paisagem são surpreendentes. A maior parte das áreas preservadas ao longo da estrada estão cobertas pelo lavrado, uma vegetação semelhante à savana. A comunidade de Pascoal, contudo, é uma exceção: está coberta por uma densa mata de árvores altas e verde-escuras – aquilo que se imagina ao ouvir a expressão “floresta tropical”.

Contudo, as diferenças mais gritantes são percebidas ao passar por áreas de monocultura. Além do nítido contraste entre as fazendas e a floresta, a discrepância na temperatura e na qualidade do ar são palpáveis: o ar é seco e a sensação do calor é árida na pele quando o carro atravessa as áreas de monocultura.

Assim como outras Terras Indígenas em Roraima, Manoá-Piuam foi demarcada como uma série de ilhas em meio à paisagem. Em vez de compor uma rede de territórios contíguos, a reserva abriga poucas comunidades, separadas umas das outras e cercadas por fazendas.

Torra da farinha de mandioca na casa da família de Maria Loreta Pascoal, em Novo Paraíso, Terra Indígena Manoá-Pium. Foto: Amanda Magnani/Mongabay

A irmã de Maria Loreta Pascoal faz a torra da farinha de mandioca. Um estudo desenvolvido pelo World Resources Institute (WRI) Brasil revelou que adotar modelos bioeconômicos que replicam os arranjos produtivos já existentes nas comunidades indígenas poderia aumentar o PIB da região em US$ 8 bilhões e criar 312 mil novos empregos. Imagem de Amanda Magnani para a Mongabay.

Há algumas décadas, as plantações de acácia eram a principal causa de conflitos de terra na região, assoreando rios e córregos e contaminando o ar e a terra com agrotóxicos. Hoje, a maior parte das monoculturas na região da Serra da Lua, onde fica a TI Manoá-Pium, é de soja ou milho.

A vegetação semelhante à savana que cobre a maior parte da região favorece o cultivo de grãos, diz Lúcio Keury Galdino, professor de Geografia da Universidade Federal de Roraima e autor de três livros sobre a história geográfica do estado. “A expansão das fronteiras da agricultura traz incalculáveis impactos negativos sobre as comunidades indígenas da região”, afirma.

A população da Terra Indígena Tabalascada, a 80 quilômetros de Novo Paraíso, também na região da Serra da Lua, sofre com esses impactos.

“Vemos aviões pulverizando agrotóxicos aqui, do outro lado”, diz Andreia Machado, presidente da associação de agricultores locais. “Podemos sentir o cheiro. Está no ar que respiramos. Dá dor de cabeça e náusea, mesmo quando não estamos doentes. Às vezes, estou aqui comendo, e tem um avião voando sobre nossas cabeças“.

No início, tudo o que Machado via era que os vizinhos estavam desmatando uma área grande. “Acho que ninguém na comunidade sabia exatamente o que estava acontecendo na época, mas quando observamos com mais atenção, vimos que eles já tinham começado a plantar soja e milho”, conta. Agora, ela está preocupada com os impactos futuros. 

“Não sabemos o que eles estão usando, mas sabemos que o vento e a chuva trarão tudo isso para nossa terra e seremos afetados”.

As monoculturas, contudo, não são o único problema que aflige os territórios-ilha demarcados. Ao contrário da ideia propagada entre facções da direita brasileira de que há “muita terra para pouco índio”, o crescimento populacional nessas comunidades indígenas nas últimas décadas transformou tanto a agricultura quanto as áreas protegidas em um recurso escasso.

“Por volta de 2005, quando nosso território foi demarcado, tínhamos apenas algumas famílias, então a terra era suficiente para atender a todas as nossas necessidades”, conta Aldenísio Pereira da Silva, professor de Educação Indígena em Tabalascada.
Comunidades como Tabalascada e Novo Paraíso vêm lutando para expandir seus territórios, focadas no direito constitucional à terra e aos recursos naturais necessários para sua sobrevivência física e cultural.

Concebendo o futuro 

Mas as comunidades indígenas de Roraima não têm tempo a perder. Para esses povos, que sofreram séculos de opressão, a busca por soluções sustentáveis sempre foi uma questão de sobrevivência.

“Precisamos preservar nossas florestas porque elas são importantes para nossa cultura indígena”, diz Pascoal. Enquanto toma café do lado de fora de casa, o ruído alto dos grupos de macacos guariba se balançando nas árvores próximas preenche o ar.

Desde que se tornou tuxaua de Novo Paraíso, ela assumiu o trabalho de alertar a comunidade sobre os riscos de desmatar novas áreas para a agricultura. “Temos capoeiras [áreas que já foram desmatadas para o plantio] mais do que suficientes que podemos usar para o cultivo. Ao usá-las de forma alternada, teremos décadas de colheitas abundantes que não precisarão de insumos químicos”, diz ela, apontando para as pilhas de milho, mandioca e outras matérias orgânicas em decomposição que enriquecerão o solo.

As Terras Indígenas demarcados são as áreas menos desmatadas da Amazônia brasileira. De acordo com um estudo publicado na Nature Sustainability, esses territórios protegidos responderam por apenas 5% da perda florestal líquida entre 2000 e 2021, muito embora contenham mais da metade das florestas da região.

Um mapa da terra de Novo Paraíso e seu Plano de Gestão Ambiental, ou PGTA. A casa vermelha na parte de baixo representa o moinho de farinha, e as plantações desenhadas em cada um dos lados são de coqueiros e mangueiras que serão cultivados em frente à casa. Foto: Amanda Magnani/Mongabay

Roraima, o estado brasileiro com o maior percentual de indígenas em sua população, tem 46% de sua área dentro de Terras Indígenas demarcadas. Proteger e administrar esses territórios é um esforço constante, para o qual as comunidades indígenas do estado desenvolveram os Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs).

Concebidos pelo Conselho Indigenista de Roraima (CIR), no início dos anos 2000, quando TIs significativas como a Raposa Serra do Sol foram demarcadas depois de décadas de conflito, os PGTAs nasceram da necessidade das comunidades de criar estratégias para administrar seus recursos naturais nos territórios recém-garantidos.

“Para nós, povos indígenas, o PGTA funciona como um plano de vida”, diz Genisvan da Silva, indígena Macuxi e especialista em sistemas de informação geográfica no CIR. “É planejado para durar 20, 30, 50 anos. É assim que concebemos nosso futuro e o futuro dos nossos territórios”.

Antes da criação de qualquer PGTA, diz Silva, a comunidade diagnostica suas demandas e potenciais por meio de um processo coletivo de etno-mapeamento.

“Juntos, os moradores definirão áreas sagradas, produtivas e de preservação dentro do território”, diz Silva. “Cada comunidade então elege sua principal atividade econômica para os anos seguintes”.

Em Novo Paraíso, a atividade escolhida foi a produção de farinha de mandioca. Uma vez torrada e embalada, a farinha produzida pela comunidade é vendida nas comunidades próximas e mercados em Boa Vista, por R$ 8 o litro.

“Para nós, o PGTA é como uma mãe que nos sustenta para realizarmos outros projetos na comunidade”, diz Pascoal. “Hoje, por exemplo, temos criação de gado, peixes e projetos de hortas medicinais que estão parados. A renda da farinha de mandioca é que nos permitirá retomar todos eles.”

Enquanto em Novo Paraíso isso ainda é uma meta de médio a longo prazo, a comunidade de Tabalascada já atingiu outro nível de economia circular. Quase tudo o que é produzido pelos moradores, de cultivos a aves e peixes, é vendido e consumido dentro da comunidade. No ano passado, os moradores criaram até um grupo de WhatsApp para comprar e vender produtos.

A casa de farinha da família de Maria Loreta Pascoal. A comunidade escolheu a mandioca como a base de sua economia agrícola no início dos anos 2000, para ajudar a proteger o território e ao mesmo tempo produzir uma renda sustentável para as famílias. Foto: Amanda Magnani/Mongabay

Uma história de resiliência e adaptação 

Apesar de alcançar o sucesso em algumas iniciativas, os indígenas de Roraima enfrentam vários desafios. A economia circular em Tabalascada, por exemplo, pode estar ameaçada num futuro próximo. À medida que a população cresce, teme-se que não haverá espaço para expandir a produção seguindo os métodos indígenas tradicionais.

Os povos indígenas de Roraima também sofrem com a grilagem da terra e com um modelo de dominação e exploração territorial que prevalece na região desde o século 18, de acordo com Galdino. “Roraima sempre foi um território cobiçado. Foi cobiçado no passado, e é cobiçado no presente”, diz ele.

O garimpo se tornou uma ameaça mais urgente nas últimas décadas. Presente no estado desde os anos 1980, quando foi denunciada pelo líder indígena Davi Kopenawa, a mineração ilegal cresceu exponencialmente. Só em 2022, o último ano de Jair Bolsonaro na presidência, a mineração ilegal nos territórios indígenas Yanomami cresceu 54%.

No mesmo ano, estudos revelaram altos níveis de mercúrio nos rios de Roraima. A contaminação se tornou tão grave que consumir os peixes provenientes desses rios passou a ser uma ameaça à saúde.

Machado diz que se lembra de quando os primeiros sinais de contaminação começaram a aparecer na comunidade de Tabalascada, muito antes de os primeiros estudos serem divulgados. “Antigamente, o peixe que pescávamos de manhã ainda estava bom à noite. Agora, entre o momento que pescamos e o momento que chegamos em casa, ele já está apodrecendo”, relata.

O peixe, junto à farinha de mandioca, é um item básico da dieta local. A comunidade precisava de uma alternativa. Desde 2017, Machado e seu marido, Deodato Leocadio da Silva Filho, junto com outros cinco integrantes da associação de agricultores, vêm criando peixes num lago atrás de sua casa. “O lago, que foi escavado pelo meu pai em 2009, fica numa área onde há uma pequena nascente”, conta Silva.

Ele diz que foi um processo de anos de aprendizagem para transformar a criação de peixes no que ela é hoje. “A primeira vez que tentamos criar peixes, colocamos mais de 2 mil no lago, e quase todos morreram por falta de espaço”, diz Silva.

Desde 2017, Machado e Silva, junto com outros cinco integrantes da associação de agricultores, vêm cultivando peixes num lago atrás de sua casa. Foto: Amanda Magnani/Mongabay

Hoje, a criação de peixes é uma resposta não só para o problema de ter peixes saudáveis para a alimentação, mas é também uma fonte de renda para a família.

Os lucros, contudo, nunca foram o principal objetivo da empreitada. “Nosso foco é alimentar nossa família e a comunidade”, diz Silva. Na mesa onde o café da manhã é servido, um isopor preserva os peixes capturados na tarde anterior. Em poucos minutos, a tuxaua de Tabalascada chegará para buscá-los.

Enquanto Silva passa um café na cozinha escura, iluminada por uma única lâmpada de luz fraca, a chuva forte do lado de fora escurece o céu da manhã. É quase tão forte a ponto de abafar os sons dos cachorros, galinhas e porcos da família. Ele e Machado se lembram de quando o lago estava vazio, numa época em que a família precisava muito de alimento.

Por isso, eles costumam dar os peixes de graça. “Conhecemos as pessoas de nossa comunidade e sabemos qual é a sua situação financeira”, diz Silva. “Muitos dos que vêm buscar peixe não têm como pagar.”

Galdino diz que essas demonstrações de solidariedade são características da economia indígena nas comunidades de Roraima. “O que acontece em Tabalascada também acontece em outros lugares do estado. É uma noção que pode ser descrita pela palavra africana Ubuntu: eu sou porque você é”, diz ele.

“Essa rede de solidariedade, que está presente na agricultura familiar e coletiva, além do escambo que ainda existe em algumas comunidades, é o que diferencia a economia indígena daquela experienciada em nossa sociedade capitalista”.

Contudo, os dois sistemas econômicos não precisam ser mutuamente excludentes.

Um estudo do World Resources Institute (WRI) Brasil descobriu que adotar modelos bioeconômicos que repliquem os arranjos produtivos já existentes dentro das comunidades indígenas pode ser bastante rentável para a Amazônia. Até 2050, esses modelos poderiam aumentar o PIB da região em R$ 40 bilhões e criar 312 mil novos empregos.
Adotar tantas mudanças, contudo, exigirá um grande investimento. De acordo com o estudo da WRI, o Brasil teria que investir o equivalente a 1,8% de seu PIB anual, o que até 2050 totalizaria R$ 2,56 trilhões.

“A primeira vez que tentamos criar peixes, colocamos mais de 2 mil no lago, e quase todos morreram por falta de espaço”, diz Silva. Hoje, a criação de peixes se tornou uma resposta não só para o problema da alimentação saudável, como também é uma fonte de renda para a família. Foto: Amanda Magnani/Mongabay

Comunidades precisam do apoio certo 

Para Enock Taurepang, vice-coordenador do Conselho Indígena de Roraima, os espaços políticos recém-ocupados pelo movimento indígena são uma conquista significativa. Contudo, a falta de contato político com as comunidades e de acomodação de suas demandas continua sendo um obstáculo a ser superado.

“As pessoas que de fato estão promovendo mudanças dentro de nossos territórios não são as pessoas que você vê nas grandes cúpulas. Você vai encontrá-las cultivando suas terras e fazendo seu artesanato à sombra de uma árvore”, diz Enock.

“Para empoderá-las, precisamos fortalecer as iniciativas que já existem em nossos territórios em vez de trazer algo totalmente novo que vai impor mudanças em nosso modo de vida tradicional. Nossas comunidades não precisam de migalhas, o que precisamos é de oportunidades reais”,

diz ele.

Por mais intuitivo que isso possa parecer, contudo, a experiência até agora mostra que isso ainda é algo muito distante da realidade do comportamento dos órgãos públicos.

Na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, um banco de sementes criado em 2019 para proteger as sementes tradicionais da extinção teve uma experiência direta desse comportamento. Nos útimos três anos e meio, residentes da comunidade Willimon do território coletaram e multiplicaram variedades de sementes usadas por gerações.

O banco de sementes não é um único espaço físico, um tipo de cofre estéril e compartimentalizado que se costuma associar à ideia de banco. Em Willimon, o banco é vivo: em cada casa, dezenas de garrafas de plástico estão cheias até o topo com feijões, milho e outros grãos. Dentro delas, cinzas ajudam a afastar as pragas. Quando chega a época de plantio, a comunidade ajuda cada agricultor a preparar a terra, troca variedades de sementes, e brinca sobre quem é o melhor agricultor.

Há cerca de um ano, a comunidade foi abordada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que funciona sob o Ministério da Agricultura, com um projeto para apoiar o banco de sementes.

Garrafa de plástico com grãos de feijão preservados em cinzas, que ajudam a afastar as pragas. Os feijões foram colhidos no ano anterior e serão plantados durante a época de semeadura deste ano. Foto: Amanda Magnani/Mongabay

Mas a Embrapa não chegou a realizar os processos de consulta oficiais, diz Amarildo Mota, antigo coordenador do banco de sementes. Ela acabou oferecendo sementes de fora para a comunidade – muito parecidas com as sementes invasoras que já ameaçavam as tradicionais.

“O dia em que elas chegaram ao projeto, impedimos sua entrada”, disse Mota. “Como alguém tenta fortalecer um banco de sementes tradicionais inserindo sementes de fora? Se aceitássemos, estaríamos matando nossos esforços.”

Só então a Embrapa se sentou com a comunidade e ouviu quais eram suas necessidades para manter o banco de sementes. “Agora, em vez de sementes de fora, a Embrapa ofereceu construir a casa que abrigará o banco de sementes e contratará técnicos agrônomos indígenas para ajudar a administrá-lo”, diz Mota.

“Quando defendemos nossos territórios e recursos, estamos preservando o planeta como um todo”, diz Taurepang, do Conselho Indígena. “Esta luta não é a nossa luta, do povo indígena, é da sociedade como um todo. É uma luta de todas as pessoas que respeitam a natureza e compreendem seu papel fundamental para a vida.”

O que os últimos oito meses nos mostraram é que, mesmo com um governo favorável, ganhar essa batalha não será fácil. Para o professor indígena Aldenísio Silva, contudo, o Brasil tem uma chance única para dar um passo inicial. “Agora que conseguimos colocar representantes indígenas dentro do governo, os próximos quatro anos serão fundamentais para consolidar nossos direitos”, diz ele.

Para a tuxaua Maria Loreta Pascoal, isso significa investimentos em independência e autossuficiência. “A longo prazo, esperamos que todos os projetos de nossa comunidade possam andar com as próprias pernas”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Amanda Magnani

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