O bolsonarismo tóxico e o futuro da segurança pública no governo Lula

Foram milhares de anos que povos do mundo inteiro lutaram para conquistar o direito de escolher seus representantes pelo sufrágio universal de voto.

Desde a criação desta coluna temos deixado claro que nosso foco é discutir segurança pública, sua política pública, seu planejamento estratégico e as ações de combate à criminalidade, bem como tratar do exercício da cidadania.

Ainda não escrevi nada este ano. Este é o primeiro artigo depois da posse do novo presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva.

Muitos acreditavam que ele não assumiria o cargo, mesmo que eleito. O presidente anterior e seus seguidores falavam de golpe militar desde o primeiro ano de governo, deixando claro que o ex-presidente Jair Bolsonaro pretendia se tornar um tirano, perpetuando-se no poder. Alguns seguidores mais apaixonados chagavam a delirar, vislumbrando uma dinastia bolsonarista, com seus filhos lhe sucedendo no poder. Sim, o delírio chegou a esse ponto.

Os eventos de 08 de janeiro de 2023, quando milhares de bolsonaristas radicais invadiram os prédios dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na tentativa de aplicar um golpe de estado, nada mais foram do que uma tragédia anunciada. Todos sabiam da possibilidade de repetirem aqui no Brasil o que os apoiadores de Donald Trump fizeram no Capitólio, em Washington, EUA. Só quem não acreditou nessa possibilidade foram o governador, o Secretário de Segurança Pública e o Comandante da PMDF, e o Exército Brasileiro.

Foto: Reprodução

As imagens da invasão, depredação do patrimônio público e cultural, as agressões aos policiais militares que lá estavam, tentando conter a sanha criminosa desses golpistas, são estarrecedoras, pois jamais poderíamos imaginar uma parcela do povo atentando contra a democracia e o estado democrático de direito. Foram milhares de anos que povos do mundo inteiro lutaram para conquistar o direito de escolher seus representantes pelo sufrágio universal de voto. E agora, um bando de aloprados atacam a democracia, desrespeitando o resultado da vontade popular, manifestada nas urnas, e clamam aos céus, com uso de violência extrema, que os militares assumam o poder. É um caso para estudo, não apenas dos cientistas políticos, mas também dos sociólogos e psicólogos, pois parece haver um delírio coletivo.

No entanto, o que me preocupa mais nesse momento é o futuro da segurança pública, pois é evidente que existe uma forte influência do ex-presidente Bolsonaro nas fileiras das organizações militares e policiais. Há fortes indícios de crimes de prevaricação e omissão imprópria nos atos atentatórios à democracia, inclusive com participação direta de policiais e militares, principalmente da reserva e aposentados nos atos de vandalismo e golpe.

Foto: Reprodução

 A inação das forças policiais e militares na invasão aos prédios dos poderes beira ao ridículo, pois essas forças tem órgãos de inteligência e expertise em controle de distúrbios e proteção de prédios. A única explicação para essa inação é o claro apoio e simpatia dos agentes de segurança aos pensamentos e ideais golpistas dos bolsonaristas radicais.

Diante disso, preocupamo-nos com o futuro da segurança pública no Brasil, pois como formular e implementar uma política de segurança pública eficiente, capaz de reduzir a criminalidade, se os atores mais importantes desse processo, ou seja, os policiais e militares, não tem interesse no sucesso ou querem sabotar do governo Lula?

Em 02 de junho de 2021 escrevi, nesta coluna, o artigo intitulado: A POLÍCIA NÃO PODE SER POLÍTICA. No referido artigo, enfatizamos que:

“As polícias não podem ser usadas para satisfazer os interesses pessoais de segmentos do eleitorado do presidente, nem tão pouco de grupos políticos. Elas precisam agir movidas pelos princípios da legalidade, impessoalidade e supremacia do interesse público”.

Os policiais e os militares são cidadãos como quaisquer outro. No entanto, não podem usar os cargos que ocupam para atender aos seus interesses pessoais ou políticos. Todo servidor público deve respeitar os princípios que regem a administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, além, obviamente, de agir movido pela supremacia do interesse público.

Lamentavelmente, não é o que temos visto por parte de alguns policiais e militares, que insistem em colocar seus interesses pessoais e suas ideologias políticas acima das normas, valores e princípios constitucionais.

Felizmente, esse que pensam assim não representam a maioria dos policiais e militares integrantes das forças de segurança pública e das organizações militares. Em sua maioria essas instituições são compostas por pessoas responsáveis, legalistas e cumpridoras de seus deveres. Se não fosse assim, o golpe teria acontecido. Mas quem conhece essas instituições e seus valorosos integrantes, sabe que o golpe jamais aconteceria com o apoio das instituições policiais e militares. Apenas alguns de seus integrantes, radicais dissociados da realidade, acreditavam que essas forças apoiariam o golpe.

Foto: Eraldo Peres

A polarização política que domina o país não pode ter reflexos nas organizações policiais, principalmente nas militares, pois estas servem para garantir a democracia e suas instituições democráticas, protegendo o Estado de quaisquer ameaça.

Quando a política entra nos quartéis e delegacias a segurança pública deixa de ser uma prioridade, haja vista que a política, em sua pior acepção, é a busca pelo poder, dinheiro e prestígio, totalmente distante da política de Aristóteles, que corresponde a ciência que tem por objetivo a felicidade humana, seja ela individual do homem na Cidade-Estado, ou coletiva.

A única política permitida nas polícias deveria ser a política institucional, voltada para a melhor eficiência das ações policiais no combate ao crime, as de melhorias das condições de trabalho e de valorização profissional. Estas últimas devem ter por finalidade tornar as corporações policiais mais eficientes, pois seu maior patrimônio é sua tropa, que cumpre a finalidade das organizações e instituições policiais permanentes.

Em outro artigo, publicado em 06 de setembro de 2021, intitulado OS MILITARES, A DEMOCRACIA E O CANTO DA SEREIA, tentamos explicar os motivos do apoio dos militares ao ex-presidente Bolsonaro.

No caso dos militares, desde que acabou o período de governo militar, restaurado o período democrático, houve uma certa caça às bruxas, principalmente nas gestões do PT. Os militares foram perseguidos, tentaram acabar com a lei da anistia, instauraram comissão da verdade, estigmatizaram os militares e tudo que fazia referências àquela época, como se tudo tivesse sido errado.

“Os militares passaram a ser vistos como uma categoria de segunda classe, atacados por todos os lados. Ignorando sua condição especial de servidor da pátria e as peculiaridades da profissão militar, tentaram tirar seus direitos previdenciários e estatutários (principalmente dos policiais militares). Chegou-se ao ponto de criarem projetos de emenda constitucional para acabar com as Polícias Militares, como se a condição de militar fosse a causa da violência policial e de outras mazelas que comprometem o funcionamento eficaz, eficiente e efetivo das Polícias Militares no combate à criminalidade”.

A simpatia de muitos policiais e militares por Bolsonaro deu-se por conta do discurso de apoio e valorização às categorias dos policiais e dos militares (federais e estaduais). Bolsonaro massageou seus egos, falando o que eles queriam ouvir, proporcionando, em alguns casos, melhorias salariais (aos federais) e garantindo direitos previdenciários. Alguns militares de alto escalão foram agraciados com altos cargos no governo federal e, mais recentemente, com promoções ao posto de Marechal (mesmo em tempo de paz), desencadeando promoções em cadeia, que beneficiaram muitos oficiais. Os discursos e os pequenos “mimos” têm agradado aos policiais e militares, que estão se deixaram seduzir pelo “canto da sereia”.

Ocorre, no entanto, que o canto da sereia fez com que os policiais e militares se descuidassem e, à semelhança do que ocorreu com os marinheiros que se deixam seduzir pelo canto das sereias, naufragaram. Muitos estão presos e processados pelos atos golpistas de 08 de janeiro de 2023. Enquanto os séquitos de Bolsonaro acampavam nos campos dos quartéis do Exército, planejavam atentados e atos golpistas e invadiam os prédios dos poderes, cometendo todo tipo de crime, seu líder fugia para os Estados Unidos, onde “repudiava os atos golpistas”. 

Foto: Reprodução

Os policiais e militares deveriam ter fazer como os marinheiros do navio de Odisseu: “tapar os ouvidos com cera para não escutarem o canto das sereias“. Os Generais, por sua vez, deveriam ter seguido o exemplo de Odisseu: amarrar-se ao mastro do navio. Mas, infelizmente, preferiram se amarrar aos cargos comissionados do governo federal.

O que mantém as instituições militares fortes são a hierarquia e a disciplina, são seus alicerces básicos. O “canto da sereia” precisa ser sufocado pela voz da disciplina, ou seja, a disciplina precisa ser como o “canto de Orfeu” na lenda dos Argonautas: “Orfeu salvou os outros tripulantes quando seu canto silenciou as sereias, responsáveis pelos naufrágios de inúmeras embarcações“. Não vamos deixar que as embarcações (instituições militares) naufraguem, pois a democracia depende delas.

O novo comandante do Exército, Gen. Tomás, recém-empossado nesta semana, em substituição ao Gen. Arruda, que supostamente teria “passado pano” para os bolsonaristas golpistas, tem, como Orfeu, tentará silenciar o canto da sereia, deixando claro que militares não devem se envolver em política partidária e que todos devem respeito à lei e a Constituição, devendo respeitar o resultado das urnas. É esse o “canto que queremos ouvir”: o da lei, da disciplina e da ordem.

A rede bolsonarista soube manipular as pessoas. Mentiram descaradamente, difundindo informações falsas e distorcidas e, principalmente, falaram o que parcela da população queria ouvir.

O maior desafio do governo do presidente Lula será desmentir todas as fake News disseminada pela rede de ódio de Bolsonaro. A tarefa não será fácil, mas não é impossível. Para começar, necessário se faz que o novo governo não cometa os erros do passado: perseguindo e estigmatizando os policiais e militares, como se estes fossem os responsáveis por toda a desgraça pela qual vive o Brasil. Não se pode, também, atribuir às corporações policiais o alto grau de criminalidade que assola o país, pois sabemos que o problema vai muito mais além das ações policiais. Não se combate o ódio com mais ódio. Precisamos superar essa etapa. Se existem falhas nas instituições policiais e militares precisamos nois unir e encontrar o melhor caminho para solucionar essas falhas, pois todos queremos uma segurança pública mais eficiente.

As corporações policiais e militares precisam se “desintoxicar” da mentalidade golpista. Para isso basta respirar os ares da verdade, da lei, da disciplina, da ciência, da tolerância e do amor. 

Sobre o autor

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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