Os militares, a democracia e o “ canto da sereia ”

Mensagens circulam nas redes sociais informando que Sete de Setembro será o DIA DO BASTA, que o presidente tomará as rédeas do país sem a interferência dos demais poderes.

Minhas escusas aos leitores desta coluna por interromper a sequência de artigos sobre a evolução histórica da política de segurança pública. Hoje, em razão dos eventos de Sete de Setembro e da convocação de militares pelo presidente da república para participarem de manifestações de apoio ao seu governo, vamos falar de outra coisa: o papel dos militares na democracia e o apoio de muitos deles ao presidente Bolsonaro. Na semana que vem retomaremos a série de artigos.

Mensagens circulam nas redes sociais informando que Sete de Setembro será o DIA DO BASTA, que o presidente tomará as rédeas do país sem a interferência dos demais poderes, que “o presidente vai assinar uma GLO decretando a intervenção nos Estados para proteger o povo dos governadores e prefeitos”, mas tudo dentro da Constituição. Nunca vi tanta asneira em uma frase só. 

Reprodução: Photo by Ying Ge on Unsplash

Acho que deveríamos incluir nas grades curriculares dos cursos de segundo grau a disciplina Direito Constitucional e Cidadania, onde os alunos teriam noções básicas de “estado democrático de direito”, “direitos e garantias fundamentais do indivíduo” e do papel do estado. Não é possível que tanta sandice circule nas redes sociais e as pessoas deem crédito, replicando como se fosse algo possível de acontecer.

É incrível como coisas estapafúrdias, desconexas da realidade, tomam ares de verdade quando são reproduzidas em massa nas redes sociais (fake News). Não bastassem as mentiras, as mensagens ainda vêm com carregadas de ódio. Ódio esse que tem polarizado o país, contaminando parcela significativa da população. As pessoas abandonaram a racionalidade e se deixaram levar apenas pela paixão. Os psicanalistas dizem que as paixões humanas são três: a do amor, a do ódio e a da ignorância.No momento, acho que vivemos as paixões do ódio e da ignorância.

O ódio cega tanto que o odioso convicto prefere acreditar numa mentira que sustente o seu ódio a ter que ver a verdade, pois esta é inconveniente.

O discurso de ódio que tomou as redes sociais tem cunho meramente político. Quem está no poder não quer perdê-lo, e fará de tudo para mantê-lo. E como sempre, usará as massas para, manipulando-as, atingir seus objetivos. Mas, como manipular eficientemente o povo, ou parcela dele? Simples, mentindo descaradamente, difundindo informações falsas e distorcidas e, principalmente, falando o que eles querem ouvir.

No caso dos militares, desde que acabou o período de governo militar, restaurado o período democrático, houve uma certa caça às bruxas. Os militares foram perseguidos, tentaram acabar com a lei da anistia, instauraram comissão da verdade, estigmatizaram os militares e tudo que fazia referências àquela época, como se tudo tivesse sido errado. Os militares passaram a ser vistos como uma categoria de segunda classe, atacados por todos os lados. Ignorando sua condição especial de servidor da pátria e as peculiaridades da profissão militar, tentaram tirar seus direitos previdenciários e estatutários (principalmente dos policiais militares). Chegou-se ao ponto de criarem projetos de emenda constitucional para acabar com as Polícias Militares, como se a condição de militar fosse a causa da violência policial e de outras mazelas que comprometem o funcionamento eficaz, eficiente e efetivo das Polícias Militares no combate à criminalidade.

Aos olhos de alguns “policiólogos” parecia mais razoável acabar com as Polícias Militares do que corrigir suas falhas. Se a sociedade quer uma polícia melhor, não precisa fazer muita coisa. Um bom começo seria respeitando e valorizando seus integrantes, que, diuturnamente, deixam suas casas e famílias para arriscar a vida defendendo vidas alheias. Continuem cobrando eficiência, serviço de qualidade e disciplina, isto é praxe.

Mas, não é de hoje que os militares não têm seu valor reconhecidos. São valorizados apenas na guerra. Ocorre, no entanto, que com relação à segurança pública, a “guerra” ocorre todos os dias, uma luta incessante contra a criminalidade.

Certa vez, Moniz Barreto, célebre jornalista português, escreveu uma carta ao Rei de Portugal descrevendo com maestria a profissão militar:

Reprodução: Photo by Shalom de León on Unsplash

Carta a El-Rei de Portugal (1893) – Homenagem aos Soldados

“Senhor, umas casas existem, no Vosso Reino, onde homens vivem em comum, comendo mesmo alimento, dormindo em leitos iguais. De manhã a um toque de corneta se levantam, para obedecer. De noite, a outro toque de corneta se deitam, obedecendo. Da vontade fizeram renúncia como da vida. Seu nome é sacrifício. Por ofício desprezam a morte e o sofrimento físico, Seus pecados mesmo são generosos, facilmente esplêndidos. A beleza das suas ações e tão grande que os poetas não se cansam de a celebrar.

Quando eles passam juntos, fazendo barulho, os corações mais cansados sentem estremecer alguma coisa dentro de si. A gente conhece-os por militares: Eu cá chamo-lhes padres. Padres de religião augusta, a única possível nos dias de hoje; a do civismo. Por essa divina hulmidade que os faz semelhantes a coisas, eles se levantam acima dos outros homens.

Corações mesquinhos lançam-lhes em rosto o pão que comem; como se os cobres do pré pudessem pagar a liberdade e a vida. Publicistas de vista curta acham-nos caros demais, como se alguma coisa houvesse mais cara que a servidão. Eles, porém, calados, continuam guardando a Nação do estrangeiro e de si mesma. Pelo preço de sua sujeição, eles compram a liberdade para todos e a defendem na invasão estrangeira e do jugo das paixões. Se a força das coisas os impede agora de fazerem em rigor tudo isto, algum dia o fizeram, algum dia o farão. E, desde hoje, é como se o fizessem. Porque, por definição, o Homem de guerra é nobre. Enquanto ele se põe em marcha, à sua esquerda vai a coragem, e à sua direita a disciplina”. 

Moniz Barreto estava certo e, lamentavelmente, sua descrição continua correta: “corações mesquinhos lançam-lhes em rosto o pão que comem; como se os cobres do pré pudessem pagar a liberdade e a vida“. O que os militares querem é reconhecimento e valorização.

A simpatia de muitos militares por Bolsonaro deve-se ao discurso de apoio e valorizando às categorias dos militares (federais e estaduais). O presidente tem massageado seus egos, proporcionando melhorias salariais (aos federais) e garantindo direitos previdenciários. Alguns militares de alto escalão foram agraciados com altos cargos no governo federal e, mais recentemente, com promoções ao posto de Marechal (mesmo em tempo de paz), desencadeando promoções em cadeia, que beneficiaram muitos oficiais. Os discursos e os pequenos “mimos” têm agradado os militares, que estão se deixando seduzir pelo “canto da sereia”.

Ocorre, no entanto, que o canto da sereia fará os militares se descuidarem e, à semelhança do que ocorre com os marinheiros que se deixam seduzir pelo canto das sereias, naufragarão. Os militares deverão fazer como os marinheiros do navio de Odisseu: “tapar os ouvidos com cera para não escutarem o canto das sereias“. Os Generais, por sua vez, deveriam seguir o exemplo de Odisseu: amarrar-se ao mastro do navio. Mas, infelizmente, parecem preferir se amarrar aos cargos comissionados do governo federal.

Sabiamente a Constituição Federal proíbe os militares de se envolverem em política, não podem se filiar a partidos políticos e se assumirem cargos públicos civis serão transferidos para a reserva. Essa vedação faz sentido, pois quando a política entra nos quartéis a disciplina se fragiliza e desaparece.

Os políticos nem sempre são movidos pelos interesses públicos, mas sim pelos privados. Estão mais interessados em ganhar eleições do que fazer o melhor para o povo. Infelizmente esse tem sido o retrospecto histórico. Quem dera os políticos seguissem mais a política de Platão do que a relatada por Maquiavel.

É preciso enfatizar que militares não defendem governantes, mas sim o povo e o país; não defendem governo, mas sim o Estado. As instituições militares são permanentes e por isso não podem ter visão curta, restrita a gestões governamentais, pois governos passam e as instituições militares e o País permanecerão. O Brasil é um estado democrático de direito, e por isso não se admite manifestações que atentem contra as instituições democráticas. A própria Constituição possui instrumentos para corrigir eventuais falhas do sistema e de seus representantes. Quaisquer outras medidas, será golpe, o que as instituições militares não podem permitir, pois são guardiões da Constituição.

O que mantém as instituições militares fortes são a hierarquia e a disciplina, são seus alicerces básicos. O “canto da sereia” precisa ser sufocado pela voz da disciplina, ou seja, a disciplina precisa ser como o “canto de Orfeu” na lenda dos Argonautas: “Orfeu salvou os outros tripulantes quando seu canto silenciou as sereias, responsáveis pelos naufrágios de inúmeras embarcações“. Não vamos deixar que as embarcações (instituições militares) naufraguem, pois a democracia depende delas.

Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.

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