A ROTA foi criada nos anos 70, como um batalhão de elite, apresentando, desde o seu início, altos índices de letalidade.
Há pouco tempo foi lançada na Globo Play uma minissérie com o título “ROTA 66: A POLÍCIA QUE MATA”, baseada no livro do jornalista Caco Barcelos, escrito há 30 anos. Assisti à série, e confesso que fiquei impressionado, pela história e pela excelente produção televisiva.
O livro e a série fazem referência a algumas ações criminosas praticadas por guarnições do 1º Batalhão de Polícia de Choque, da Polícia Militar do estado de São Paulo, também chamado de Batalhão Tobias de Aguiar.
A ROTA foi criada nos anos 70, como um batalhão de elite, apresentando, desde o seu início, altos índices de letalidade. Ficou conhecida, também, pela participação de seus policiais na formação de “esquadrões da morte” que atuavam nas periferias da cidade.
O nome ROTA tem origem nas iniciais da modalidade de policiamento realizado pelo Batalhão de Choque: Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA); o número 66 representa o número de identificação de uma das viaturas do referido Batalhão, que ficou muito famosa por ter se envolvido em uma ocorrência que resultou na morte de três jovens da alta sociedade paulistana.
O caso desses três jovens de classe alta de São Paulo executados no Jardim Paulista, bairro mais nobre da cidade, abre o livro de Caco Barcellos “Rota 66 – A História da Polícia que Mata“, já que teve grande repercussão quando ocorreu, em 1975, e também é o único em toda a história da ROTA em que as vítimas não eram pobres.
Ao assistir à série, é impossível não nos impressionarmos com a naturalidade com que aqueles policiais matavam. Eles se achavam acima da lei: prendiam, julgavam e executavam aqueles que prendiam; acumulavam as funções de policial, juiz e carrasco. Na verdade, eles não eram policiais, mas sim bandidos travestidos de policiais, porque policiais de verdade não fazem esse tipo de coisa. Eles cumprem a lei.
Esses eventos fazem-nos refletir sobre algumas coisas:
- O erro de generalizar as polícias do Brasil, como se todas agissem da mesma forma;
- Será que essa mentalidade de justiceiros ainda permeia as mentes de alguns policiais;
- Pretos e pobres ainda são vistos como bandidos?
- A importância da Justiça Militar para a construção de uma Polícia Militar mais eficiente, humana, legalista e cidadã.
- Será que nesses últimos 30 ou 40 anos as corporações policiais evoluíram?
Bem, são questões difíceis de serem respondidas no limitado espaço desta coluna. Esse é um tema para ser discutido em uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado.
Mesmo assim, vamos tentar responder a alguns desses questionamentos.
Não podemos generalizar, as Polícias, em geral, agem dentro da lei, respeitando o cidadão e o Estado democrático de Direito. Os desvios de conduta são exceções à regra. Infelizmente os acertos, as ações bem-sucedidas que ocorrem diuturnamente, todos os dias, nem sempre são divulgadas, pois os policiais não fizeram mais que sua obrigação. Por outro lado, as ações erradas viram capa de jornais e destaques nos noticiários, o que, equivocadamente, dá a impressão de que os erros são uma regra. Isso não verdade.
Com relação à mentalidade de justiceiros, desde a constituição cidadã de 1988, e com o fortalecimento das Corregedorias das Polícias, houve enorme mudança, as Polícias passaram a agir de forma mais cidadã, respeitando a dignidade humana. Os desvios de condutas têm sido severamente punidos. Obviamente, ainda estamos longe do ideal. É necessário investir mais na seleção e formação dos policiais e, também, nas corregedorias, para que haja mais fiscalização e controle sobre os policiais.
Sobre o racismo e a ideia pré-concebida de que todo negro e pobre são bandidos, de que quem vive à margem da sociedade são “marginais”, no sentido de criminosos, ainda temos muito a evoluir. Os policiais são pessoa da sociedade, não vieram de marte, mas sim das cidades, dos bairros e das ruas onde os cidadãos comuns moram. Se algumas pessoas da sociedade em que vivemos é preconceituosa, é natural que alguns membros das corporações policiais também o sejam. Não deveriam, mas são, infelizmente.
Essas questões são delicadas no âmbito das corporações policiais, pois em sua maioria absoluta, os policiais são de origem pobre, majoritariamente negros e pardos, o que torna incoerente condutas racistas dentro das corporações. Felizmente, o nível de escolaridade e esclarecimento dos policiais tem evoluído muito nos últimos anos. Algumas corporações têm exigido nível superior para ingressar nas carreiras policiais. Isso não é uma garantia de que o racismo e o preconceito social sejam eliminados, pois temos assistido diversos casos de pessoas de alto grau de escolaridade praticando atos reprováveis. No entanto, acreditamos que a educação pode transformar a sociedade e as instituições. E no caso específico das corporações militares, a disciplina rigorosa deve ser usada para corrigir desvio de condutas e transformá-los em cidadãos melhores.
Algo que pode ajudar muito é a interação maior entre as polícias e a comunidade, principalmente com as mais carentes. É nelas que o estado precisa estar mais presente.
A Justiça Militar tem papel importantíssimo para a construção de uma Polícia Militar mais eficiente, humana, legalista e cidadã. Nos casos mencionados no livro e na série ROTA 66, os policiais militares que praticaram aqueles crimes bárbaros foram condenados e presos, muitos foram excluídos da corporação. A impunidade gera a reincidência e gera mal exemplo para os bons policiais. É imprescindível que a justiça seja feita e os criminosos sejam punidos dentro da lei. Uma Justiça Militar forte e atuante, como também uma Polícia Judiciária Militar forte e atuante, com certeza evitará desvios de conduta, fazendo com que os policiais não ultrapassem os limites da lei. Afinal de contas, homens e mulheres da lei devem agir dentro da lei e não a sua margem.
Não há dúvidas de que as polícias do Brasil evoluíram muito ao longo das últimas quatro décadas. Mas sabemos que ainda temos muito a evoluir. Como também tem muito a evoluir a nossa sociedade. Todos nós, indivíduos da sociedade brasileira, precisamos evoluir como cidadãos respeitadores da lei e da dignidade da pessoa humana. Enquanto nossa sociedade for racista, homofóbica, machista, xenofóbica, preconceituosa e violenta, jamais teremos uma polícia ideal, pois as imperfeições das polícias são proporcionais as imperfeições da sociedade.
Uma sociedade violenta terá uma polícia violenta, principalmente porque estimula a violência policial, achando que “bandido bom é bandido morto”. Uma sociedade que estimula os policiais a agirem contrários à lei está condenada a ser vítima dessa mesma polícia.
Sobre o autor
Sávio A. B. Lessa é Doutor em Ciência Política; pós graduado em Ciências Penais, Segurança Pública, Direitos Humanos e Direito Militar; Advogado Criminalista; Professor de Direito Penal e Processual Penal da FCR; Pesquisador do PROCAD/MIN. DEFESA; e Coronel da Reserva da PMRO.
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