Pesquisadora viajou até a região para conhecer e conversar com a população sobre a realidade vivida por ela e os impactos na saúde. Fotos: Mariana Inglez/Acervo pessoal
Comunidades ribeirinhas da Amazônia localizadas na Floresta Nacional de Caxiuanã, no Pará, estão trocando alimentos tradicionais por produtos industrializados, aumentando risco de doenças graves e perda de qualidade de vida, como mostra um estudo realizado no Instituto de Biociências (IB) da USP. A pesquisa, que tem como autora a bioantropóloga Mariana Inglez, foi premiada na categoria Inclusão Social e Cultural e Redução das Desigualdades da 14ª edição do Prêmio Tese Destaque USP.
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O estudo analisa esse fenômeno de transição nutricional como um processo de nutricídio, termo criado pelo médico Llaila O Afrika, em 1993, para descrever a perda nutricional caracterizada pela dificuldade ou total falta de acesso a uma alimentação saudável em populações à margem da sociedade, o que influencia a saúde e continuidade de culturas alimentares tradicionais.
Entre 2019 e 2023 a pesquisadora acompanhou de perto as comunidades. Os dados coletados por Mariana mostram que, em duas décadas, o consumo de alimentos industrializados cresceu de forma significativa. Na dieta, a participação de carboidratos provindos de alimentos comprados passou de 14% para 33%, a de proteínas de 13% para 33%, e a de gorduras de 21% para 71%. Esse avanço reflete uma substituição de dietas tradicionais por produtos industrializados ricos em energia e pobres em nutrientes.
“Quando falo nessa transição nutricional, estou falando da substituição de alimentos que fazem parte da identidade de um povo, que têm uma relação com o ambiente e uma relação com aspectos simbólicos, culturais e afetivos. Geralmente são alimentos muito mais saudáveis”, diz Mariana em entrevista ao Jornal da USP.
O resultado encontrado durante a pesquisa etnográfica — abordagem que implica convívio e imersão na rotina das pessoas que colaboraram com o estudo — mostra que a dieta antes baseada em farinha, peixe e frutas locais tem sido substituída por produtos comprados, como arroz branco, açúcar, óleo vegetal, refrigerantes e macarrão instantâneo.

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“Esse processo já era percebido pela população”, afirma Mara, habitante de uma das comunidades visitadas em Caxiuanã. A reportagem optou por não identificar o sobrenome da moradora e o nome da comunidade para preservar sua segurança e privacidade, em acordo com a escolha da pesquisadora.
“Antes a gente consumia basicamente alimentos naturais, por exemplo, o peixe que a gente pescava, a caça, a farinha que produzimos aqui mesmo. No café da manhã, tomava com uma farinha de tapioca ou uma tapioquinha. Hoje em dia, houve um avanço na questão da alimentação industrializada”, afirma.
Evolução na saúde
A tese Transição nutricional em comunidades ribeirinhas da Amazônia brasileira: “escolhas” entre alimentos tradicionais e industrializados na região de Caxiuanã, Pará, Brasil, foi defendida em 2024, sob a orientação do professor Rui Sérgio Sereni Murrieta, no Programa de Pós-Graduação em Ciências (Genética e Biologia Evolutiva) do IB.
Através de dados quantitativos, a bioantropóloga comparou seus resultados com informações coletadas nos mesmos locais, entre 2002 e 2009, por Bárbara Piperata, uma das principais referências em antropologia nutricional na Amazônia, que foi orientadora de Mariana quando ela esteve fora do Brasil, na The Ohio State University (EUA) durante o doutorado sanduíche.
Com uma abordagem biocultural, o objetivo de Mariana foi conduzir uma pesquisa que integrasse dimensões biológicas, socioculturais, econômicas e ambientais para compreender a alimentação, saúde e modos de vida na região. Tudo a partir de um ponto de vista decolonial, valorizando a vivência das populações ribeirinhas. Esse é um modelo novo de pesquisa que traz as populações para dentro do estudo da alimentação e as coloca no centro do debate das relações entre saúde humana e ambiental, aspectos culturais, sociais e o enfrentamento às desigualdades.
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Mais vulneráveis desde a prática colonial
As análises, realizadas com 177 participantes, variando entre adultos, jovens e crianças, mostraram que toda a população ganhou peso nas últimas duas décadas, mas as mulheres foram as mais afetadas, o que significa que elas apresentam maior risco de doenças crônicas como hipertensão, obesidade e diabetes.
“Geralmente as mulheres deixam ‘as melhores partes’ para os parceiros e para as crianças. Então, são as primeiras que vão enfrentar a insegurança alimentar e aí, consecutivamente, as que mais vão consumir alimentos ultraprocessados, que não têm tanto poder nutritivo, mas que são mais calóricos”, afirma Mariana.
O estudo aponta que, embora programas de redistribuição de renda tenham contribuído com o combate à fome, houve um aumento na insegurança alimentar — situação em que falta acesso regular a alimentos na quantidade e qualidade necessárias para a sobrevivência. A pandemia de covid-19 agravou o problema, com a interrupção das cadeias de abastecimento e das fontes de renda nas comunidades.

“Os povos tradicionais, negros, afro-indígenas, ribeirinhos e periféricos foram grupos mais vulneráveis durante a pandemia”, diz Mariana. Para ela, isso evidencia qual o perfil dos grupos que estão em maior fragilidade alimentar.
“É o sistema que vai influenciar quem consegue se alimentar bem e manter a sua cultura alimentar no Brasil. Um que começa desde a prática colonial”.
Outra causa do aumento do consumo de ultraprocessados é a inadequação das políticas públicas de alimentação. As cestas básicas entregues às comunidades, por exemplo, contêm mais alimentos ultraprocessados, não condizente com a cultura alimentar ribeirinha, e que também são ofertados na merenda escolar às crianças e jovens, em desacordo com as orientações do Guia Alimentar para a População Brasileira (GAPB).
Criado pelo Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP em conjunto com o Ministério da Saúde (MS) em 2014, o guia apresenta informações e orientações sobre alimentação e nutrição para a sociedade em geral, serve de base para a atuação de profissionais de saúde e também para a formulação de políticas públicas.
As mudanças climáticas aparecem como um novo fator na piora da alimentação local. Com a diminuição das chuvas e o aumento da temperatura alterando a produção agrícola e diminuindo a disponibilidade de peixes nos rios, fica cada vez mais difícil depender exclusivamente dessas fontes. “Hoje em dia o feijão que vem é industrializado, mas antes a gente comia o feijão que plantávamos, [atualmente] raramente se planta aqui na nossa comunidade”, conta Mara.
Segundo Mariana, tendo contato direto com essas comunidades foi possível perceber que, se tiver escolha, a população ainda prefere se alimentar de maneira tradicional.
“Existe uma percepção local do que é uma comida de verdade que faz bem para a saúde, e não é comida ultraprocessada. Então, quando existe a possibilidade de escolher, vão comer um peixe cozido com farinha”, diz.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal da USP, escrito por Maria Eduarda Oliveira (estagiária sob supervisão de Silvana Salles e Antonio Carlos Quinto)
