Oito horas, sete dias e mais de 50 km: saiba como é a jornada dos motoentregadores em Belém

Uma dissertação destacou o papel do “ciberproletariado”, termo associado às mudanças nas relações traba­lhistas diante das novas tecnologias da informação.

O iFood, empresa de delivery, contratou agências de publicidade para desmobilizar movimento de entregadores, segundo a Agência de Jornalismo Investigativo Pública. A tática era criar páginas e perfis falsos nas redes sociais para esvaziar a narrativa de greve. Entre os movimentos, destaca-se o “Breque dos Apps”, no dia 1º de julho de 2020, durante o qual, milhares de entregadores paralisaram suas atividades para reivindicar melhores condições de trabalho, como o aumento da taxa mínima de entrega e o “auxílio pandemia”.

O motivo dessas reivindicações é compreendido ao analisar a pesquisa aplicada entre motoentregadores para a dissertação da advogada Paula Pamplona Beltrão da Silva. A maioria dos participantes respondeu que trabalha mais de oito horas por dia, entre seis e sete dias por semana, percorrendo mais de 50 quilômetros, com remuneração mensal entre R$1.000 e R$1.500 para 44.6% dos entrevistados, valores que, apesar de próximos ao salário mínimo, não contemplam direitos previdenciários, pois a maioria dos participantes está em uma relação de trabalho autônomo.

A dissertação ‘Terceirização ou Autonomia: a condição laboral do motoentregador por plataforma digital em Belém-PA’, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA/IFCH) da Universidade Federal do Pará (UFPA), explicou esse contexto trabalhista destacando o papel do “ciberproletariado”, termo associado às mudanças nas relações trabalhistas, pautadas, sobretudo, nas novas tecnologias da informação. A autora defende que o “capitalismo de plataforma” potencializa a precarização do trabalho, enquanto as empresas maximizam seus lucros.

Foto: Alexandre de Moraes

Cabe ressaltar que uma das etapas da dissertação, orientada pela professora Andréa Bittencourt Pires Chaves, foi marcada por pesquisa documental para coletar informações quantitativas e qualitativas, sobre os motoentregadores, por plataforma que demanda proteção jurisdicional. Por fim, houve uma pesquisa de levantamento para mapear o perfil do trabalhador que atua por intermédio de plataforma digital.

60% dos entrevistados se consideram autônomos

O motoentregador é visto legalmente, no Brasil, como autônomo, isto é, um trabalhador informal contratado por uma empresa para prestar um serviço, sem que haja subordinação e vínculo empregatício, portanto o profissional assume os riscos da atividade. Porém vários países, como Itália, Espanha, além do Reino Unido, entendem que essas relações de trabalho dos entregadores com as empresas possuem princípios de emprego formal.

Diante disso, surge o questionamento do título da pesquisa: terceirização ou autonomia? A terceirização ocorre quando uma empresa contrata outra para realizar um serviço, sendo que o trabalhador terceirizado possui – em teoria – seus direitos trabalhistas assegurados pela empresa com a qual mantém contrato. Essa configuração, embora já praticada antes do advento da Lei da Terceirização (Lei nº 13.429/17), não conferia ao trabalhador as seguridades celetistas que prevê hoje, ainda que a finalidade seja adequar as relações de trabalho à flexibilização laboral.

“O resultado do mapeamento de perfil do motoentregador apontou que 60% dos participantes se consideram trabalhadores autônomos, enquanto 25% deles não souberam opinar sobre seu enquadramento laboral. Mesmo os que assumiram uma posição de autonomia, no entanto, possuem dúvidas quanto aos limites entre esse enquadramento laboral e o vínculo empregatício”, 

informa Paula Beltrão.

A dissertação analisou processos de motoentregadores pedindo reconhecimento de vínculos empregatícios nos moldes da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT). A pesquisa documental das ações judiciais ocorreu no site eletrônico do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 8ª Região PA/AP e buscou casos ocorridos na Região Norte do Brasil. Para delimitar a pesquisa, aplicou-se o termo “aplicativo de plataforma” na base de consulta pública do TRT, entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020. Foram eliminados os processos em que os motoentregadores não estavam no passivo da ação.

Em 2019, dos quatro processos, três tiveram reconhecimento de vínculo empregatício nos moldes da CLT e recolhimento de verbas trabalhistas e direitos correlatos. Em 2020, cinco dos seis processos tiveram ganho para o trabalhador. A empresa prestadora de serviço na modalidade delivery argumentou que os reclamantes eram autônomos e a empresa do aplicativo de delivery se defendeu afirmando que não contratou os reclamantes nem lhes dirigiu comandos. Entretanto, nesses dois anos, os juízos entenderam que havia princípios de subordinação, pessoalidade, não eventualidade e onerosidade, que são padrões do trabalho protegido, além de situarem o motoentregador como trabalhador terceirizado.

Número de trabalhadores cresceu nos últimos anos

Paula Pamplona Beltrão da Silva realizou um levantamento, do tipo survey (método de obtenção de informações quantitativas), para mapear o perfil do motoentregador por aplicativo em Belém/PA, especificamente nos bairros Marco, Nazaré, Pedreira e Umarizal. Durante os meses de outubro a dezembro de 2021, foram feitas 14 perguntas de cunho pessoal e 13 perguntas de cunho profissional para 91 motoentregadores, mas somente 80 formulários foram validados após o filtro dos critérios de inclusão e exclusão. Não era obrigatório responder a todas as perguntas.

A maioria dos participantes se reconhece como pessoa parda (53.8%), do sexo masculino (97.5%) e está na faixa etária entre 18 e 39 anos (61.3%). A pesquisa destaca um avanço, ainda que tímido, na questão da diversidade, pois 2.5% dos entrevistados são do gênero feminino. A respeito da idade, confirmou-se a hipótese da autora, de que grande parcela dos entregadores estaria na primeira faixa de idade, mais propícios a um ambiente de oportunidades e incertezas.

Por outro lado, alguns resultados foram inesperados para a pesquisadora, por exemplo, a maioria dos participantes (57.5%) afirmou que suas motocicletas são próprias e quitadas. Quanto à moradia, fator importante para entender os limites de estabilidade financeira dos trabalhadores, 62.8% do total mora em casa própria, mas a pesquisa não aborda as condições das habitações. Outra surpresa foi que 89.9% dos entrevistados estavam com o Imposto Estadual sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) quitado, mesmo em ano de pandemia. Por fim, 58.8% dos trabalhadores relataram que nunca sofreram acidente de trabalho, o que surpreendeu, dadas as condições de insegurança trabalhista.

Os resultados também indicam um aumento da quantidade de entregadores nos últimos anos. 57.7% dos participantes possuem no máximo três anos de trabalho no ramo, sendo que 10.3% deles começaram há menos de um ano. “A pandemia ‘empurrou’ um grande número de pessoas desempregadas para dentro de uma lógica de captura, imobilização e extermínio de certos corpos dispensáveis na conjuntura hierárquica social brasileira”, afirma a autora. Outro resultado relevante é que 35.7% do total possui Carteira Nacional de Habilitação há menos de 5 anos.

Sobre punições por atraso de entrega, a maioria (59.2%) declarou não sofrer. Contudo a autora alerta que as informações não devem ser analisadas isoladamente, pois 84.2% dos entregadores não são sindicalizados e 45.6% não possuem ambiente de trabalho, o que a pesquisa ressalta como sendo um dos pontos de vulnerabilidade estrutural.

Conheça quem entrega o seu pedido:

Jornada: mais de oito horas por dia, seis a sete dias por semana.
Remuneração: entre R$1.000 e R$1.500 (mês).
Pessoa parda: 53.8%
Gênero masculino: 97.5%
Gênero feminino: 2.5%
Faixa etária entre 18 e 39 anos: 61.3%
Motocicletas próprias e quitadas: 57.5%
Não são sindicalizados: 84.2%
Considera-se autônomo: 60%

Sobre a pesquisa: de outubro a dezembro de 2021, foram feitas 14 perguntas de cunho pessoal e 13 perguntas de cunho profissional para 91 motoentregadores, mas somente 80 formulários foram validados.

*Por Bruno Roberto, Jornal Beira do Rio edição 163/UFPA  


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