Consumo de carne de caça pode reduzir anemia em crianças da floresta amazônica, indica estudo

A pesquisa avaliou 610 crianças, com idades entre 6 e 59 meses (4,9 anos), de quatro cidades de acesso remoto na Amazônia, incluindo 58 comunidades ribeirinhas.

Um estudo realizado por meio de parceria entre o Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia), Lancaster University (Reino Unido), Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal do Pará (UFPA), apontou que o consumo de carne de caça de animais como roedores, antas, porcos selvagens, veados e aves, pode reduzir as taxas de anemia infantil, por possuir uma fonte alimentar rica em ferro. O consumo de carne de caça é muito comum entre a alimentação dos ribeirinhos da Amazônia, devido ao acesso limitado a outras fontes de proteína.

De acordo com o epidemiologista e pesquisador no ILMD, Jesem Orellana, que participou das etapas realizadas no Amazonas, o estudo abre uma série de possibilidades de exploração em relação à sustentabilidade alimentar. 

“Há uma grande lacuna na literatura científica de ciências da saúde, avaliando a relação entre consumo de carne de caça e anemia em crianças menores de cinco anos, especialmente em regiões com poucas alternativas à sua sustentabilidade alimentar, como crianças ribeirinhas que vivem em regiões remotas e com baixa cobertura de políticas governamentais capazes de garantir segurança alimentar ou condições de saúde adequadas”,

explica Orellana.

Foto: Jesem Orellana/Fiocruz Amazônia

O estudo foi publicado na Scientific Reports, revista que compõe o portfólio científico da Nature. O artigo intitulado ‘Wildmeat consumption and child health in Amazonia‘ (Consumo de carne de caça e saúde de crianças na Amazônia – tradução livre), aponta que as famílias rurais consomem, em média, quatro vezes mais carne de caça do que as famílias das zonas urbanas. 

Além disso, após simulações estatísticas, os pesquisadores estimaram que as taxas de anemia por deficiência de ferro em crianças pobres da zona rural poderiam aumentar cerca de 10% em termos relativos – mais de 3 mil crianças forem considerados todos os 44 municípios sem acesso por estrada apenas no Estado do Amazonas -, caso o acesso à carne de caça fosse restringido. 

Por outro lado, se as crianças rurais mais vulneráveis do Amazonas comessem uma refeição adicional de carne de caça a cada semana, a prevalência de anemia reduziria em cerca de 20% em termos relativos.

Percentual de crianças amazônicas que consomem carnes silvestres em diferentes fases da primeira infância e primeira infância, separadas por localidades rurais e urbanas. Foto: Reprodução/Artigo ‘Wildmeat consumption and child health in Amazonia’

Os pesquisadores detectaram que cerca de dois terços das crianças de domicílios rurais mais vulneráveis à pobreza foram consideradas anêmicas, devido a fatores como insegurança alimentar, consumo de alimentos de menor qualidade nutricional, malária e infecções parasitárias intestinais. A pesquisa avaliou 610 crianças, com idades entre 6 e 59 meses (0,5 a 4,9 anos), de quatro cidades de acesso remoto na Amazônia, incluindo 58 comunidades ribeirinhas. 

Uma das cidades foi Ipixuna, distante 2.800 quilômetros fluviais de Manaus (AM). Foram realizadas entrevistas para coletar informações diversas, incluindo a frequência do consumo de carne de caça, bem como coletadas amostras de sangue para medir a concentração de hemoglobina, um indicador de anemia.

Segundo Jesem Orellana, é possível que a maior contribuição deste estudo seja a de reacender a negligenciada discussão sobre a possível relação entre o consumo de carne de caça e anemia infantil, um tema muitas vezes evitado não apenas por preocupações ambientais (possível relação com o aumento do desmatamento, redução da diversidade da fauna, devido a caça excessiva) ou ligadas a doenças zoonóticas (decorrentes da interação homem-natureza (surgimento de novas doenças ou disseminação ainda maior de doenças conhecidas), como também dos tabus alimentares (maior ou menor aceitação de certos tipos de caça na dieta de crianças), especialmente em locais onde o seu consumo é visto como dispensável ou facilmente substituível, como em áreas urbanas, por exemplo.

“Nas áreas urbanas há maior acesso a outras fontes alimentares, não necessariamente mais ricas do ponto de vista nutricional, como os alimentos ultra processados (salsicha, bacon, hambúrgueres, sopas instantâneas, frango congelado, bolachas, pães, salgadinhos de pacote, entre outros). Outro ponto importante deste estudo é que parece não haver uma relação significativa entre consumo de carne de caça e anemia em zonas urbanas e até mesmo em domicílios rurais menos desfavorecidos, sugerindo uma especificidade até então inexplorada na Amazônia brasileira”, 

pondera o pesquisador.

Patricia Torres, que participou do estudo pela USP, explica que “o potencial benéfico do consumo de carne de caça sobre os níveis de anemia apenas em crianças mais vulneráveis da zona rural é um aspecto que favorece a promoção de iniciativas de manejo sustentável da fauna nessas áreas rurais, permitindo a conciliação entre interesses sanitários e nutricionais com aqueles de ordem mais ambiental ou legal”.

E Orellana pondera ainda que: “é importante destacar que para muitas dessas crianças de domicílios rurais mais vulneráveis, especialmente àquelas menores de dois anos, o consumo de carne de caça pode não representar exatamente uma preferência alimentar, mas uma necessidade humana básica de acesso à proteína animal, dado o limitado acesso a outras fontes alimentares de ferro como a carne bovina, por exemplo. No atual contexto pandêmico e de crise econômica no Brasil, esse aspecto precisa ser considerado”.

E continua: “os resultados do estudo retratam um padrão de consumo de carne de caça previamente existente e que pode estar limitando, ainda que modestamente, não apenas o número de crianças de domicílios rurais mais vulneráveis com anemia, como suas consequências negativas no curto e longo prazo, incluindo desde os conhecidos sintomas de fadiga e menor capacidade física, comprometimento da capacidade de aprendizagem ou da resistência a infecções, até a menor produtividade econômica na vida adulta”.

Assim, segundo o pesquisador, cortar ou limitar o acesso à carne de caça de crianças de domicílios rurais mais vulneráveis poderia interferir de forma negativa as condições de saúde e nutrição.

“De outro lado, aumentar o seu consumo sustentável poderia reduzir ainda mais o número de crianças anêmicas em contextos desfavoráveis e com pouco alcance de ações governamentais que visam reduzir o impacto da anemia sobre o crescimento e desenvolvimento dessas crianças, como àqueles do âmbito educacional (Programa Saúde na Escola) ou da saúde (fortificação de alimentação infantil com ferro ou tratamento/prevenção medicamentosa da anemia)”,

completa.

Anemia Ferropriva

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a anemia é uma condição na qual o conteúdo de hemoglobina no sangue está abaixo do normal, resultado da falta de um ou mais nutrientes essenciais.

As anemias podem ser causadas por deficiência de nutrientes, como, ferro, zinco, vitamina B12 e proteínas, entretanto, a anemia causada por deficiência de ferro, denominada de anemia ferropriva, é a mais comum entre os casos. Estima-se que 90% dos casos, sejam por falta de ferro, um nutriente que atua principalmente na fabricação das células vermelhas do sangue e no transporte de oxigênio para todas as células do corpo.

Foto: Reprodução/Ministério da Saúde

Crianças, gestantes, lactantes (mulheres que estão amamentando), meninas adolescentes e mulheres adultas em fase de reprodução são os grupos mais afetados pela doença, muito embora homens – adolescentes e adultos – e os idosos também possam ser afetados por ela.

Segundo o Ministério da Saúde, os principais sintomas são: cansaço generalizado, falta de apetite, palidez de pele e mucosas (parte interna do olho, gengivas), menor disposição para o trabalho, dificuldade de aprendizagem nas crianças, apatia (crianças muito “quietas”). Entretanto, os sinais e sintomas da carência de ferro não são específicos, necessitando saber do resultado de exames laboratoriais de sangue, para o diagnóstico correto.

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

IBGE divulga que Brasil tem mais de 8,5 mil localidades indígenas

Pesquisa indica que entre 2010 e 2022 a população indígena cresceu 88,9% e aponta desafios em temas como saneamento, coleta de lixo e educação.

Leia também

Publicidade