Pesquisadora descobre novo papel do peixe-boi: o de “jardineiro da Amazônia”

Atualmente, o peixe-boi é classificado como espécie vulnerável pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). O maior risco para sua extinção vem da caça ilegal.

Peixe-boi-da-amazônia (Trichechus inunguis). Foto: André Dib

Localizado próximo ao encontro dos rios Solimões e Japurá, o Lago Amanã (que significa “caminho da chuva”) é conhecido como a casa do peixe-boi-da-amazônia (Trichechus inunguis), no Amazonas. Durante a estiagem, quando o nível dos rios baixa, esse mamífero encontra ali refúgio e alimentação. Foi nas praias de Amanã que a bióloga Michelle Guterres fez uma descoberta surpreendente: fezes de peixe-boi com filetes de gramíneas germinando. Com essa observação, ela deu um passo importante para confirmar uma hipótese até então apenas especulada: o peixe-boi é capaz de dispersar sementes, ajudando na migração de plantas entre diferentes habitats.

Michelle coletou 96 amostras de fezes, sendo que em 19 delas já havia plantas germinando. Uma das maiores dificuldades da pesquisa era encontrar uma quantidade significativa de fezes, pois, logo que o peixe-boi defeca, elas ou se desmancham na água ou são consumidas por peixes. Por conta disso, a função de fertilizador das águas já era conhecida, mas o papel de dispersor de sementes foi uma descoberta inovadora.

A seca extrema de 2023 facilitou a coleta das amostras, que foram encontradas nas praias formadas pelo baixo nível da água. Em outubro, o Lago Amanã chegou a apenas 20 cm de profundidade.

Depois disso, as amostras precisaram ser desmanchadas com pinças, devido à sua textura fibrosa. Ao todo, foram encontradas 2.033 sementes, das quais 556 estavam viáveis com embriões.

Qual a importância dessa descoberta?

Na Amazônia, a dispersão de sementes e a distribuição de plantas estão intrinsecamente ligadas aos ciclos de cheia e seca dos rios. Maria Tereza explica que, durante as cheias, a água age como o principal dispersor, especialmente de plantas aquáticas e semi-aquáticas, nas várzeas e igapós.

“As plantas frutificam, e as sementes caem na água. Peixes as comem e as levam para outros habitats, rio acima ou em áreas próximas”, explica a pesquisadora, referindo-se a estudos que já documentaram sementes no trato digestivo de peixes.

Mas saber que o peixe-boi desempenha um papel semelhante é uma descoberta significativa. Pesando até 550 kg, o peixe-boi se alimenta de até 40 kg de plantas aquáticas por dia, e já foram registrados deslocamentos do animal de até 115 km entre os lagos Amanã e Mamirauá. Com um trato digestivo longo, as sementes podem permanecer em seu intestino por até uma semana, aumentando seu potencial como dispersor. “Além disso, ele já entrega a semente com adubo natural, um verdadeiro kit de jardinagem”, comenta Maria Tereza com bom humor.

Os padrões migratórios do peixe-boi sugerem que o animal desempenha uma papel vital para a dispersão de sementes entre habitats férteis, como as várzeas dos rios, e áreas mais pobres em nutrientes, como os igapós. “Durante as cheias, o peixe-boi fica nas várzeas, onde há abundância de alimento”, explica Miriam Marmontel, especialista em mamíferos aquáticos do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. “Quando o nível dos rios desce, eles procuram refúgio em lagos e áreas de igapós”, complementa.

Enquanto as várzeas dos rios são áreas produtivas, com cerca de 400 espécies de plantas, os igapós, com águas mais ácidas e solos pobres, abrigam apenas 10% desse total. Com isso, é possível supor que o peixe-boi transporte sementes de uma área para outra, aumentando a biodiversidade desses ambientes e garantindo sua própria fonte de alimento para a próxima seca.

Lago Amanã, no Amazonas. Foto: Miguel Monteiro

Um debate de décadas

Natural de Porto Alegre, Michelle Guterres tem uma longa experiência com a Amazônia e com os peixes-boi. Sua primeira estada em Tefé, no Amazonas, durou 10 anos, de 2000 a 2010, onde trabalhou no Instituto Mamirauá.

Em 2012, publicou seu primeiro trabalho sobre a ingestão de sementes pelo peixe-boi. Na época, com mais de 200 amostras coletadas, todas as sementes encontradas estavam inviáveis, sem embriões, o que levou à conclusão de que o peixe-boi não desempenhava o papel de dispersor.

Outros pesquisadores também investigaram essa possibilidade. Um estudo de 2020, que analisou o peixe-boi marinho no Caribe, não encontrou sementes viáveis em suas fezes. Mesmo trabalhos mais antigos, como o do biólogo Robin C. Best, nos anos 1980, especularam sobre essa função, mas sem comprovações.

Após mudar-se para Florianópolis e passar por uma pausa na carreira, para cuidar dos filhos, Michelle retomou a pesquisa em 2019, durante a pandemia, e voltou ao Lago Amanã. “Aquela pergunta nunca saiu da minha cabeça”, diz ela. “Mas este foi um resultado totalmente inesperado, que nasceu a partir da vivência em campo. A Amazônia permite encontrar coisas que ninguém jamais imaginaria.”

Praia durante a seca no Lago Amanã. Foto: Michelle Guterres

Necessidade urgente de conservação

Atualmente, o peixe-boi é classificado como espécie vulnerável pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN). O maior risco para sua extinção vem da caça ilegal.

Na primeira metade do século 20, no auge da pesca até então legal, cerca de 19 mil peixes-boi foram mortos para a extração de couro, usado na produção de borracha. Sua carne também é apreciada por comunidades ribeirinhas. Em 1967, a caça foi proibida, mas ela ainda persiste em algumas regiões.

Publicada em 2019, uma pesquisa com populações ribeirinhas aponta que a caça ainda é a principal causa de morte dos peixes-boi na Amazônia, sendo confirmada por 62% dos entrevistados na região de Anavilhanas e 52% no Tapajós.

Secas severas, como as vividas em 2023 e 2024, também facilitam a captura desses animais. Em geral, o período de estiagem dura cerca de três meses, em que os animais permanecem nos lagos, onde são mais facilmente abatidos. Mas, com secas prolongadas, esse intervalo de maior vulnerabilidade também se torna mais extenso.

Para Michelle, sua descoberta é mais um argumento pela conservação do peixe-boi. “A gente sempre bate a tecla da educação ambiental, para sensibilizar as pessoas da relevância do peixe-boi para a Amazônia, inclusive para a saúde e bem-estar das comunidades que dependem das águas dos rios, das suas várzeas e florestas”.

Maria Tereza complementa: “Ao fertilizar as águas e transportar sementes, o peixe-boi contribui para a biodiversidade. Proteger essa espécie é proteger o ecossistema e as populações que dele dependem”.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Tiago Mota e Silva

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Espécies novas de sapos ajudam a entender origem e evolução da biodiversidade da Amazônia

Exames de DNA feitos nos sapos apontam para um ancestral comum, que viveu nas montanhas do norte do estado do Amazonas há 55 milhões de anos, revelando que a serra daquela região sofreu alterações significativas.

Leia também

Publicidade