“A Aliança não é física, é ancestral”, disse Maial Paiakan Kayapó, conselheira da Aliança em defesa dos Territórios, quando a parceria foi formalizada em Brasília.
Durante o acampamento Luta pela Vida, em agosto de 2021, em Brasília, lideranças das Terras Indígenas mais afetadas pelo garimpo ilegal decidiram se juntar para compor um documento contrário à atividade, nomeada por eles como uma “doença que os brancos estão trazendo para os nossos territórios”. Para além de uma carta-manifesto, assinada por nove organizações, deste encontro surgiu a ideia de criar a Aliança em Defesa dos Territórios, formada pelos povos Kayapó, Yanomami e Munduruku. Em dezembro, a frente indígena foi formalizada em uma reunião inaugural.
Ao longo de 2022, essa aliança inédita no país desenvolveu ações em parceria a fim de fortalecer e visibilizar a luta contra o garimpo em suas terras. Aconteceram encontros nas aldeias, dentre eles o que celebrou os trinta anos da homologação do território Yanomami, em maio do ano passado, além de reuniões para a articulação do coletivo que, há seis meses, formou um conselho político constituído por dois representantes de cada povo. O conselho tem o objetivo de, autonomamente, deliberar agendas comuns. “A aliança não é física, é uma aliança ancestral”, disse Maial Paiakan Kayapó, conselheira, quando a parceria foi formalizada em Brasília.
Por ora, não há um local onde se possa conferir a agenda da aliança e parte dos compromissos, eventos e documentos desenvolvidos por ela não vêm a público por motivos de segurança, para evitar ataques, uma vez que as lideranças que a compõem são alvo direto ou indireto de violência. Mas dois deles foram lançados e divulgados neste mês, em parceria com a Teia Documenta e com o Instituto Socioambiental (ISA), visando fomentar o debate em torno do tema: o documentário ‘Escute: a Terra foi rasgada‘ e o dossiê ‘Terra rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira‘. Ambos nasceram na reunião de dezembro de 2021, quando – junto aos indígenas – foram estruturados os pontos principais a serem contemplados tanto em um quanto no outro.
‘Escute: a terra foi rasgada’ teve sua estreia na Mostra Ecofalante de Cinema 2023, no dia 4 de junho, em São Paulo, e contou com a participação de Davi Kopenawa Yanomami e Beka Munduruku, integrantes da Aliança em Defesa dos Territórios, para um bate-papo com os diretores e aberto a perguntas do público após a exibição. O documentário, dividido em três atos, conta o que a floresta representa para os povos Yanomami, Munduruku e Kayapó, traz uma perspectiva sobre o avanço do garimpo na Amazônia brasileira, e fala da formação da Aliança.
“É muito importante criar histórico, mostrar para nosso futuro, para as crianças de vocês verem e aprenderem a preservar, conservar o planeta Terra”, disse Kopenawa no lançamento, sobre a relevância do filme. O documentário surgiu como um desejo dos próprios indígenas. “Fomos, em princípio, registrar a reunião inaugural da Aliança e, neste encontro, eles nos disseram que a forma com a qual gostariam de contar a constituição dela seria por meio de um filme”,
explicou Fred Rahal, um dos diretores do documentário.
As lideranças também protagonizaram a confecção do conteúdo: “entregamos algumas perguntas, sobre o que gostariam e o que não gostariam de ver na tela, e adotamos as respostas deles como uma cartilha, que seguimos à risca”, a outra diretora, Cassandra Mello, contou à Mongabay.
Durante a noite, também houve a distribuição de alguns exemplares do dossiê ‘Terra rasgada: como avança o garimpo na Amazônia brasileira’, lançado em março deste ano pelo ISA e que traz um panorama da situação com informações e dados alarmantes. Entre 2010 e 2020, a atividade garimpeira nos territórios dos povos que compõem a Aliança aumentou 495%. Luísa Molina, antropóloga e organizadora da publicação, falou à Mongabay sobre a importância do documento: “Ainda não existia algo que reunisse todos os aspectos do avanço do garimpo ilegal em Terras Indígenas de maneira ampla, quais os mecanismos que o permitem avançar e quais as medidas a serem tomadas a esse respeito”.
O aumento no preço do ouro no mercado internacional, a atratividade exercida pelo garimpo sobre trabalhadores afetados por crises econômicas, em função do aumento do desemprego, e fragilidade nos sistemas de fiscalização são algumas das causas que justificam a guinada do garimpo ilegal nos últimos anos no Brasil. Para erradicá-lo, o dossiê apresenta como algumas das ações imediatas a serem tomadas: a instalação de bases de proteção e monitoramento nos limites territoriais das Terras Indígenas e a destruição de pistas onde pousam aeronaves clandestinas — já que muitas vezes este é o único meio possível de se acessar minas em zonas remotas.
Segundo o documento, tanto a Constituição Brasileira de 1988, no art. 174, § 3º e § 4º, quanto a lei 7.805/1989, a partir da qual se instituiu o regime de Permissão de Lavra Garimpeira, reforçam a exclusão das Terras Indígenas das áreas passíveis de lavra, o que configura qualquer atividade desse tipo, nesses territórios, como ilegal. Diversos projetos de lei, no entanto, tramitam atualmente no Congresso Nacional com o objetivo de regulamentar ou facilitar o garimpo em Terras Indígenas, como o PL nº 191/2020, do ex-presidente Jair Bolsonaro, e o Marco Temporal, que propõe mudança na demarcação de territórios.
“Eu tenho quarenta e nove anos de luta, não quero baixar minha cabeça, mas eu tenho um limite. Quem vai continuar? Nossos filhos”.
A fala do líder Yanomami Davi Kopenawa, no desfecho do evento de lançamento do filme, evidencia que os embates em torno dos territórios indígenas não se encerrarão em breve e a presença dos mais novos na linha sucessiva da luta é também um elemento constituinte da Aliança em Defesa dos Territórios. Beka Munduruku, jovem de vinte anos que estava ao lado de Davi, complementou e fortaleceu a sua fala nesse sentido: “Se esse Marco Temporal for aprovado, não será uma vitória para eles, nós sempre resistimos. A luta sempre vai continuar e a gente vai se manter firme, dentro do nosso território, em defesa do nosso rio, da nossa floresta, e dos espíritos que vivem nela”.
Para a antropóloga Luísa Molina, existe claramente uma guerra em curso no país. “Há a ocupação das Terras Indígenas por organizações criminosas e uma investida muito grande de propaganda contra a preservação desses territórios. Isso vem de muito tempo, desde antes da Constituinte, e se intensificou na última década com um discurso contrário às ONGs, à Funai, à política ambiental”. Ela reforça que o elo por parte dos Munduruku, Kayapó e Yanomami é fundamental para confrontar o outro lado da trincheira. “Sozinhos, eles sabem que não dão conta. Como já disse o próprio Davi Kopenawa, os não indígenas que promovem o garimpo nas terras estão bem aliados, é importante que nós também tenhamos aliança do nosso lado”, complementa.
*O conteúdo foi originalmente publicado na Mongabay, escrito por Carolina Conti.