Entenda qual a relação do El Niño com infestação de lagartas em Roraima

O fenômeno El Niño ocorre quando o Oceano Pacífico aquece, o que afeta o clima em todo o país.

A morte de mais de 7 mil bois e vacas por falta de pasto devido a uma infestação de lagartas está diretamente ligada ao fenômeno El Niño, evento climático que neste ano foi severo em Roraima. É o que explicam especialistas em meio à situação de emergência que 10 dos 15 municípios enfrentam diante das consequências da infestação. O fenômeno El Niño ocorre quando o Oceano Pacífico aquece, o que afeta o clima em todo o país.

O cenário no estado, que neste ano teve recorde de seca e queimadas históricas, também foi impulsionado pelo aquecimento do Oceano Atlântico Norte. Juntos, estes fenômenos resultaram na escassez dos predadores das lagartas que consomem os pastos. É o que explica meteorologista Ramon Alves, da Fundação Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), que monitora a situação climática no estado.

“Embora não tenhamos tido um super El Niño como o de 2015, as consequências foram mais graves. Registramos recordes de queimadas e baixas precipitações, com aproximadamente quatro meses quase sem chuvas, e quatro ou cinco meses de recorde de queimadas. Essas condições trouxeram consequências graves para o estado, causando desequilíbrio ambiental, e afetando todo o meio ambiente”, explicou.

Em menos de dois meses, 7.139 bois morreram por falta pasto. No interior, as áreas das fazendas viraram cemitérios de animais mortos de fome. A estimativa é que ao menos 54 mil hectares de pasto – o equivalente a 75 mil campos de futebol, tenham sido devastados.

O motivo da morte desse gado é a infestação de lagartas das espécies lagarta-do-cartucho-do-milho (Spodoptera frugiperda) e o curuquerê-dos-capinzais (Mocis latipes). Elas devoram o pasto que serve de alimento para os bois.

Essa superpopulação das lagartas está relacionada ao desequilíbrio ambiental causado pelo El Niño intenso nos primeiros meses do ano em Roraima, conforme o doutor em entomologia agrícola e pesquisador sobre lagartas e mariposas na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Cirano Melville.

Foto: Caíque Rodrigues/Rede Amazônica

Com seca severa e os focos de calor reflexos do fenômeno climático, a população de predadores naturais das lagartas reduziu e os impactos foram sentido em ao menos 840 propriedades rurais do estado.

“O desequilíbrio ecológico afugenta os predadores naturais das lagartas. Esses predadores naturais incluem bactérias, fungos, vírus, parasitoides, vespas e besouros, que ajudam a controlar as pragas. Em situações de seca e altas temperaturas, a população desses insetos controladores pode ser reduzida em até 60%”.

“Esses controladores biológicos geralmente chegam atrasados, após a reestabilização do equilíbrio ecológico, que pode demorar devido à mortalidade causada pelas condições climáticas desfavoráveis”, explicou o pesquisador.

Para se ter ideia, a cadeia da devastação nos pastos de Roraima ocorreram desta forma: com o início do período chuvoso, o capim começou a brotar novamente e ganhar vida. No entanto, neste mesmo período, surgiram as lagartas e os percevejos que atacaram os brotos que se tornariam alimento para o gado. Com isso, o capim não nasceu – e ainda foi impactado pela ação voraz do mata-pasto, uma espécie de erva daninha.

Clima úmido favoreceu reprodução

Melville explicou ainda que a transição das altas temperaturas do El Niño para o período chuvoso fez com que a umidade do clima também contribuísse para que as lagartas se reproduzissem de uma maneira desenfreada, aumentando a população desses insetos. Esse processo é descrito por ele como desequilíbrio ambiental.

“A umidade e a temperatura elevadas favorecem os insetos. Quando chove, por exemplo, aqui em Roraima, a temperatura baixa um pouco, tornando-se mais amena, o que é ideal para as lagartas. Elas precisam de temperaturas entre 25 e 30 graus para se desenvolverem”.

“A temperatura elevada acelera o metabolismo e o desenvolvimento das lagartas, o que também impacta na reprodução mais rápida desses insetos, encurtando o ciclo de vida deles. Em vez de 55 a 60 dias, o ciclo pode se reduzir para 40 a 45 dias, aumentando o número de ciclos e populações de insetos nesse período favorável.

As plantas que começaram a brotar com o início do período chuvoso, em abril, também são pratos cheios para espécies como a lagarta-do-cartucho-do-milho e o curuquerê-dos-capinzais, as duas que têm atacado os pastos em Roraima.

“Nas áreas de pastagem, após queimadas, as novas brotações de capim se tornam um ambiente perfeito para as lagartas devido ao alto teor de nitrogênio presente nas cinzas. As primeiras folhas que surgem após a queima são ricas em nitrogênio, o que é ideal para a alimentação das lagartas, acelerando ainda mais o desenvolvimento delas”.

Também pesquisador da Embrapa, Daniel Schurt explica que os efeitos do El Niño e do período seco em Roraima, independentemente da intensidade, podem ter soluções se houver a preparação dos produtores antes dos desastres acontecerem.

Ele recomenda que seja ofertado aos produtores capacitações que os preparem para adversidades como secas, cheias e pragas.

“É importante que os agricultores e pecuaristas estejam preparados para essas situações. Recomendamos que se capacitem, busquem informações nos órgãos de pesquisa e extensão, diversifiquem as pastagens, façam rotação de culturas e análises de solo, e conheçam as alternativas de controle, incluindo o uso de inseticidas e o monitoramento constante das pragas”, explicou o pesquisador.

Foto: Caíque Rodrigues/Rede Amazônica

Regiões impactadas

Nos dados obtidos, Mucajaí, a 60km da capital Boa Vista, é o município com as maiores perdas. No entanto, o problema se estende a Amajari, Alto Alegre, Bonfim, Cantá, Caracaraí, Iracema, Pacaraima, Normandia e Uiramutã.

Diante da situação, com um número crescente de gado que morre a cada dia, o governo decretou situação de emergência. A ideia é oferecer apoio financeiro a produtores rurais das regiões afetadas.

Como a falta de comida impacta o gado

Sem ter pasto para se alimentar diariamente, o gado morre em poucos dias. É o que explica doutor em zootecnia e professor de bovinocultura na Universidade Federal de Roraima (UFRR), Jalison Lopes.

Ele explica um boi consegue sobreviver sem comida por até 20 dias, dependendo do estado nutricional. Sem água, sobrevive até 4 dias, no máximo. As alternativas para enfrentar o problema incluem substituir a pastagem morta por alimentos conservados, como silagem (alimento conservado) ou feno (mistura de plantas secas).

“A ideia seria substituir o pasto pela ração, podendo fornecer milho-grão inteiro junto com núcleo proteico mineral vitamínico. Diversas plantas podem ser usadas para produzir feno, assim como palhadas de culturas. Coprodutos de agroindústria indústria, como a borra de dendê em Roraima, também são opções para substituir a pastagem”, explica o professor.

Reflexos do desequilíbrio ambiental

A reportagem esteve em dois locais que foram severamente afetados pela morte de rebanhos em fazendas por falta de comida: as vilas Samaúma e a Apiaú, município de Mucajaí, no Sul de Roraima. Na região, produtores perderam grande parte do gado. Emocionados, eles relataram o clima de desespero, apreensão e medo.

Historicamente, a criação do estado de Roraima se entrelaça com a da pecuária e, consequentemente, com os impactos ambientais que a atividade engloba, como o desmatamento. No entanto, desta vez, especialistas afirmam que ainda é prematuro associar o desequilíbrio ambiental das lagartas e mortes dos bois com a supressão de vegetação. Até agora, a principal relação é com o El Niño intenso dos últimos meses.

Foi neste cenário que o pecuarista Joaquim Simão Costa, de 55 anos, se viu obrigado a buscar pasto em outras regiões. Para fugir da fome, ele levou o rebanho a pé para uma fazenda alugada de um amigo na região do Truarú, em Boa Vista, distante quase 113 Km da Sumaúma, onde vive, numa viagem de aproximadamente 10 dias.

No trajeto, muitos animais de Joaquim morreram e foram deixados na estrada, outros tiveram a carcaça arrastada pelo caminho. Vídeos mostram ele levando o rebanho pelas ruas para fugir da fome.

Na vila Samaúma, o cenário é de tristeza. Urubus sobrevoam por todas as partes nas ruas e nas estradas. Carcaças de bois e vacas mortos são vistas com facilidade nas margens das vias. As áreas de pastos se tornaram cemitérios dos animais que antes eram o sustento de famílias rurais.

No caminho, com o rebanho fraco e com fome, animais morrem e são abandonados. Rastros de sangue de cascos machucados são deixados na estrada. Tudo isso deixa Joaquim emocionado.

Passar pela situação é um “pesadelo” para ele, mas não há outra solução a não ser levar o gado para outro lugar que não esteja infestado por lagarta.

“É muito triste ver essa situação. Estamos enfrentando uma dificuldade enorme, muita tristeza. A situação está muito feia e difícil. Moro aqui há 40 anos. Nunca tivemos um fenômeno tão desesperador. Está muito difícil, nunca tinha visto algo assim. Fomos pegos de surpresa”.

“Em dez dias o gado foi morrendo de fome na estrada, debilitado, caindo e ficando para trás. É uma tristeza imensa, muito difícil”, contou o pecuarista.

Com o decreto de emergência, o governo também criou o Programa Emergencial de Apoio à Pecuária Familiar, medida que prevê a contratação temporária de pessoas, dispensa de licitação para aquisição de bens e serviços essenciais, além da convocação de voluntários para reforçar as ações de resposta ao desastre.

Para o combate às pragas e recuperação do pasto nas propriedades, o governo, por meio da Agência Desenvolve, anunciou o o repasse de R$ 1.750 aos produtores rurais. O valor será concedido por meio do programa Desenvolve Roraima. O teto máximo que cada produtor deve receber é de 5 hectares, o equivalente R$ 8.750.

*Por Caíque Rodrigues, da Rede Amazônica RR

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