Foto: Reprodução/Pilnik (2019, p.450
O Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) – Ciências Humanas, Volume 19, nº 2 (maio-agosto de 2024), faz um alerta sobre um tema bem caro a todos os amazônidas, para não se falar em escala mundial: a culinária do povo indígena Huni Kuin, da Terra Indígena (TI) Kaxinawá do baixo rio Jordão, no estado do Acre, encontra-se sob risco de extinção.
Isso diante do avanço cada vez mais latente da globalização, que acaba de substituir culturas tradicionais por outras, no caso, por outros produtos fornecidos e comercializados internacionalmente. Os alimentos naturais, com todo um valor simbólico para os Huni Kuin, estão sendo gradativamente “trocados por alimentos por produtos processados e ultraprocessados que são, atualmente, acessíveis, tanto financeiramente, quanto nos comércios urbanos, tais como óleos e açúcares orgânicos”, escrevem em coautoria Málika Simis Pilnik e Tarik Argentim.
Essa situação é exposta em um dos trabalhos de pesquisa científica que integram essa publicação do Museu Goeldi, instituição que está às vésperas de completar, em 6 de outubro, 158 anos de atuação na realidade amazônica.
A gravidade desse processo verificado na comunidade indígena pode ser mensurada, apenas no aspecto da identidade regional desses e de outros cidadãos da Amazônia, por meio da suposição dos efeitos potenciais que seriam observados a partir da ausência de iguarias como a maniçoba, o vatapá, o arroz paraense, o pato no tucupi e doces de frutas da região na mesa dos amazônidas em geral. Ainda mais, nos dias que antecedem o Círio de Nazaré, em outubro, em Belém do Pará, quando a festa religiosa é emoldurada por essas e outras iguarias que dialogam historicamente com a cultura de povos indígenas e negros da Floresta Amazônica.
No artigo “Etnoculinária do povo indígena Huni Kuin do Jordão, Acre: conhecimentos, práticas e transformações alimentares na Amazônia ocidental brasileira”, assinado pelos pesquisadores Málika Simis Pilnik, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Manaus (AM), e Tarik Argentim, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas, de Cruzeiro do Sul, do estado do Acre, o público verifica que esse processo conhecido como transição alimentar envolve uma redução nas taxas de desnutrição e, em contraponto, a emergência de doenças crônicas, como câncer, obesidade, diabetes e outras comorbidades nesses indígenas.
“Se, recentemente, tais distúrbios não afrontavam essas populações, há de se analisar que as mudanças nos hábitos alimentares têm certa responsabilidade no desencadeamento de novas formas de insegurança alimentar”, pontuaram os investigadores.
Daí a necessidade de políticas públicas focadas na promoção do etnodesenvolvimento, considerando o modo de vida tradicional e a soberania dos povos. Nesse trabalho, os pesquisadores relatam um pouco da trajetória do povo Huni Kuin relacionada aos empreendimentos seringalistas e à ocupação de territórios no Acre (“tempo do cativeiro”, para os indígenas); da dieta alimentar desse povo, abrangendo as ‘leguminosas do roçado” (yunu) e espécies florestais (ni).
A alimentação pode ser considerada o cerne da cultura huni kuin, haja vista tratar-se de um dos aspectos mais importantes da sociabilidade entre os núcleos familiares, reiteram Pilnik e Argentim. “De acordo com essa etnia, se alimentar bem é essencial para manter a saúde do corpo (yuda) e do espírito (yuxĩ)”, completam.
Saberes ancestrais
Por isso, esse conhecimento da alimentação é um repleto de conhecimentos, memórias, práticas e processos diversos para o povo Huni Kuin. Ao detalhar a centralidade da comida na vida dos Huni Kuin, o artigo mostra a importância da comensalidade (alimentarem-se em grupo); de alimentos entre parentes nas visitas a casas; o significado simbólico/espiritual de serem mastigados conjuntamente (naikĩ) os alimentos da floresta (da fauna e flora) para esse povo Nesse processo, os alimentos são saboreados lenta e simultaneamente.
É feita a abordagem dos cuidados com a alimentação dos bebês, em especial à corporalidade. A macaxeira e a banana são ingredientes essenciais na alimentação huni kuni, principalmente pela oferta abrangente, pelo seu valor nutritivo e ainda pelo uso em dietas/restrições alimentares (samã kea) de cunho espiritual realizado pelos xamãs (mukaya). Na capa do Boletim do MPEG, que está completando 130 anos em circulação, está uma foto do preparo de atsa pei (macaxeira com folha em hãtxa-kuin), em referência ao tema da edição “Territorialidades e patrimônios”.
Na descrição das práticas alimentares dos Huni Kuin, é possível observar o valor simbólico do ato de cozinhar (“ba”) relacionado à reprodução humana, ao ato de “procriar”, “nascer”, uma simbologia que envolve as utensílios da culinária desse povo e destaca a presença feminina em dois processos, entre outros aspectos estruturais da temática abordada, compondo um trabalho minucioso e esclarecedor sobre a relação umbilical de um povo indígena e sua alimentação para a própria existência através dos tempos.
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*Com informações do Museu Goeldi