Os Yanomamis e a Guerra contra os garimpeiros: Saiba tudo o que está acontecendo na maior Terra Indígena do Brasil

Denúncias, exploração sexual de crianças e mulheres indígenas, contaminação de mercúrio e desnutrição são uma das problemáticas enfrentadas devido a exploração ilegal na região 

Os povos indígenas Yanomami são foco da semana em todos os noticiários depois da denúncia da morte de 570 crianças indígenas. A situação da Terra Indígena é preocupante e se intensificou com o passar dos anos. 

Segundo o secretário da Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba, em entrevista coletiva, relatou o cenário desolador e falou da importância da ação interministerial para salvar vidas e remover os mais de 20 mil garimpeiros que estão no território Yanomami. “Eles têm matado os peixes, matado os rios, e as comunidades acabam ficando reféns desse cenário de guerra, horror e de morte. Infelizmente, os dados são alarmantes”, lamentou.

O Ministério da Saúde decretou situação de emergência de saúde nacional no último dia 20. A portaria foi publicada na sexta-feira em edição extra do DOU (Diário Oficial da União). Mas, afinal, o que está acontecendo na maior Terra Indígena do país?

A situação da Terra Indígena é preocupante – Foto: Reprodução/Instagram/urihiyanomami

Povos Indígenas Yanomami

Os Povos Indígenas Yanomami estão localizados no estado do Amapá, com território de aproximadamente, 192.000 km², situados em ambos os lados da fronteira do Brasil com a Venezuela. Eles constituem um conjunto cultural e linguístico composto de quatro subgrupos adjacentes que falam línguas da mesma família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam). Estima-se que 30.400 mil indígenas vivem nas 386 comunidades na região. Com uma área de 9665 mil hectares, o território foi demarcado no dia 22 de maio de 1992 pelo então presidente da República, Fernando Collor. O processo durou cerca de 15 anos. 

Veja Também: Conheça os Yanomami: povos indígenas que vivem isolados na Floresta Amazônica

Povos Indígenas Yanomami – Foto: Reprodução / FUNAI

Invasões do garimpo na região

Um dos principais problemas na região está na invasão de garimpos ilegais. A Terra Indígena é alvo constante de garimpeiros ilegais em busca de minerais e pedras preciosas, em especial, o ouro. 

Um relatório realizado pela Hutukara Associação Yanomami publicado em abril de 2022, com o tema: “Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”, apontou a ação de garimpeirosafirma que o garimpo cresceu 46% em 2021 na Terra Yanomami. ele também aponta que mais da metade dos Yanomami (56%) é diretamente impactada pelo garimpo.

A área é mira do garimpo ilegal de ouro desde a década de 1980, e se intensificou, principalmente nos 4 últimos anos. Segundo dados da rede colaborativa MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo começou a subir, acumulando taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu uma porcentagem de 3350%3. 

Reprodução / Relatório “Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”

Em 2020, o garimpo ilegal avançou 30% na Terra Yanomami. Só o rio Uraricoera concentrava 52% de todo o dano causado pela atividade ilegal. Em 2021, o garimpo ilegal avançou 46% na região, a maior devastação da história desde a demarcação e homologação do território há quase 30 anos.

O relatório da Hutukara identificou que pelo menos 110 comunidades da TIY são diretamente afetadas pelos impactos do garimpo no meio biofísico (desmatamento, destruição de habitat, contaminação da água e dos solos, destruição do curso natural do rios e assoreamento etc.). A calha do rio Uraricoera é a região mais afetada pelo garimpo, onde se concentra mais de 45% do total de áreas de exploração de garimpo ilegal.

Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami – Foto: Reprodução / Bruno Kelly/HAY

“No rio Uraricoera as zonas de exploração garimpeira estão “divididas” por “donos”, conhecidos localmente por seus apelidos. Esses “donos” controlam o acesso aos canteiros, o uso das estruturas de comércio, logística e acampamento, e, para isso, alguns contam com serviços de “segurança privada”, geralmente prestado por grupos associados ao crime organizado. “Dona Íris” é um desses “patrões”. Em 2021, seus capangas protagonizaram alguns dos eventos mais marcantes do ano no território Yanomami, quando homens encapuzados atiraram, em diferentes oportunidades, contra os moradores das comunidades do Palimiu, em retaliação às tentativas de bloqueio da logística garimpeira por parte de jovens Yanomami. Em um dos ataques, duas crianças indígenas morreram afogadas no rio na tentativa de escapar dos tiros.” 

aponta trecho do relatório ‘Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo

No documento, que possui 120 páginas, também existem relatos do polo-base Kayanu da Terra Indígena Yanomami, que aborda fome, morte e exploração sexual de mulheres indígenas. Entre as situações, garimpeiros ofereciam comida em troca de sexo com adolescentes indígenas.

Em outro ponto da Terra Indígena, no rio Apiaú, onde moradores do Apiaú relataram à Hutukara, cenas de abuso sexual de mulheres indígenas muito próximas às descritas no Kayanau. De acordo com a denúncia, um garimpeiro que trabalha na região certa vez ofereceu drogas e bebidas aos indígenas, e quando todos já estavam bêbados e inertes, estuprou uma das crianças da comunidade.

Ainda de acordo com os moradores, a oferta frequente de bebidas alcoólicas e drogas trazidas pelos garimpeiros deixam as comunidades vulneráveis a toda sorte de abusos. São vários os casos de estupros e assédio de crianças e mulheres. Em um deles, conta-se de um “casamento” arranjado de uma adolescente Yanomami com um garimpeiro mediante a promessa de pagamento de mercadoria, que nunca foi cumprida. Os moradores relatam ainda que os garimpeiros andam armados, e por isso os indígenas já não oferecem resistência aos assédios por medo de serem atacados.

Reprodução / Relatório ‘Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo

 Crescimento da tensão entre Yanomamis e Garimpeiros

No início de 2021, a Associação Hutukara enviou um ofício informando o aumento de tensão e a presença de garimpeiros armados. Em fevereiro daquele ano, garimpeiros armados invadiram uma comunidade em busca de um morador que haviam se desentendido, causando uma troca de tiros, deixando um garimpeiro morto e um indígena que ficou gravemente ferido. Segundo a associação, o caso foi notificado e solicitado a intervenção de forças de segurança na região, entretanto, o pedido foi ignorado.

Desde então, a tensão continuou a crescer. 

“Em fevereiro de 2021, abaixo do Palimiu, na aldeia Helepe, garimpeiros armados haviam invadido a comunidade à procura de um morador com quem tinham desentendimentos. Durante a investida, houve uma troca de tiros que resultou na morte de um garimpeiro e em um indígena gravemente ferido25. A associação notificou o fato e solicitou intervenção de forças de segurança na região. O alerta foi ignorado, porém. Semanas depois, no dia 27 de abril, um grupo de jovens Yanomami da região do Palimiu interceptou um bote com 900 litros de combustível que tinha como destino o “garimpo de Dona Íris”. A ação dos jovens foi uma reação à morte de uma criança que havia se afogado depois que um barco de garimpeiros passou próximo ao porto da comunidade onde a família tomava banho. A onda gerada pela voadeira derrubou a criança, que em seguida foi levada pela correnteza. Os Yanomami tomaram o combustível e obrigaram o barqueiro a descer o rio de volta. Outros garimpeiros que passavam na direção contrária dispararam tiros e proferiram ameaças. A HAY, mais uma vez, oficiou os órgãos públicos pedindo que fossem tomadas providências para garantir a segurança da comunidade e novamente não obteve respostas.” 

denuncia um trecho do relatório.

 Consequências da expansão do Garimpo Ilegal

O Portal Amazônia conversou com o pesquisador e geógrafo Vinicius Zanatto do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), para explicar quais as consequências que essa expansão pode afetar na vida de pessoas que moram na região e no ecossistema.

São várias as consequências de um garimpo ilegal. A primeira e mais visível é a mudança ambiental que ele gera. Se abrem estradas, modificam-se os cursos dos rios, abrem clareiras na floresta. O que causa o desmatamento e a contaminação dos cursos hídricos. 

Reprodução / Relatório “Relatório ‘Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”

Outra consequência é a violência. É uma prática ilegal. Um garimpo demanda mão de obra, as pessoas são aliciadas em aldeias, comunidades e nas cidades pensando que terão retorno rápido em dinheiro. Quem está no garimpo precisa comer, vestir e utilizar outros serviços. Nesse sentido se gera uma pressão sobre os recursos naturais, não só os recursos hídricos, mas na fauna, o garimpo “incentiva” outras práticas ilegais, como a caça de animais silvestres para consumo e o tráfico de drogas, que também é um dos financiadores da atividade.

“Para os povos indígenas e comunidades tradicionais que são obrigados a conviver com essa prática temos sérias consequências na saúde e na cultura. Ao desmatar a floresta, doenças, como a malária, tem um terreno fértil para serem disseminadas. E sem assistência adequada temos situações como a que vemos na Terra Indígena Yanomami. O garimpo utiliza o mercúrio para separar o ouro de outros sedimentos, esse mercúrio fica nos cursos dos rios, são consumidos, especialmente, por peixes, que consequentemente contaminam as pessoas. Os próprios garimpeiros são vetores de doenças, por circularem em diversos locais, e assim podem contaminar as populações locais. Indígenas isolados sofrem ainda mais com essa situação, pois não possuem os anticorpos e conhecimentos para tratar as doenças comuns no meio urbano e periurbano. Com a devastação que o garimpo gera, as pessoas ficam sem ter onde fazer seus roçados tradicionais, onde caçar e praticar suas ativades cotidianas. Por medo da violência ou por estarem doentes não conseguem exercer suas atividades plenamente, assim a economia local e subsistência ficam prejudicadas. Gerando casos de desnutrição e outras doenças”

Contaminação de Mercúrio

Um estudo de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Evandro Chagas e Universidade Federal de Roraima (UFRR), mostrou que os peixes dos rios do estado de Roraima estão contaminados. Os pescados coletados em quatro pontos na Bacia do Rio Branco apresentaram concentrações de mercúrio maiores ou iguais ao limite estabelecido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). A análise de avaliação de risco à saúde, baseada em metodologia proposta pela OMS, coletou amostras de pescado entre 27 de fevereiro e 6 de março de 2021 e revelou índices altos de contaminação em trecho do Rio Branco na cidade de Boa Vista (25,5%), Baixo Rio Branco (45%), Rio Mucajaí (53%) e Rio Uraricoera (57%).

Outro documento importante é o laudo da Polícia Federal publicado em junho de 2022 sobre contaminação dos rios na Terra Indígena Yanomami, revelou que quatros rios da região possuem alta contaminação por mercúrio. O percentual é 8600% superior ao estipulado como máximo para águas de consumo humano. Foram analisadas amostras das águas correntes dos rios Couto de Magalhães, Catrimani, Parima e Uraricoera, próximos a garimpos ilegais onde os invasores usam produtos nocivos à natureza, principalmente o mercúrio, durante a extração de minérios.

A análise apontou que entre 2018 e 2021, os peritos identificaram que na região do rio Uraricoera, um dos mais afetados pelo garimpo, houve um aumento de 505% da área garimpada.

 Aumento dos casos de Malária e Desnutrição

De acordo com os dados do Sivep-Malária (Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Malária), indicam que dos 123.151 casos de malária no Brasil, 11.530 ocorreram no território Yanomami. As informações indicam que os diagnósticos da doença na região representam 9,3% dos total.

Os indicadores de saúde do Kayanau são considerados dramáticos, o polo ficou entre os cinco piores em casos de desnutrição infantil considerando os anos de 2019, 2020 e 2021, e é o sétimo no ranking de Malária. De 2019 até a data de publicação do relatório da Associação Hutukara, quatro crianças morreram por desnutrição, um adolescente por malária e sete pessoas por agressão, sendo três por disparo de arma de fogo no rio Mucajaí.

No Médio Catrimani, em uma das conversas relatadas do relatório, uma das mulheres entrevistadas por um dos pesquisadores indígenas contou da inquietação sobre a ameaça e a situação de saúde.

A situação da Terra Indígena é preocupante – Foto: Reprodução/Instagram/urihiyanomami

‘”Certo, nós estamos muito preocupados, pois eles verdadeiramente contaminam a floresta. A floresta se torna infestada pelos carapanãs, reduzida a um lamaçal. Eu não quero que nós morramos por causa dos garimpeiros que destroem nossa floresta. Não queremos morrer por causa das doenças letais dos garimpeiros. Por causa das águas contaminadas do rio, nossos ouvidos adoecem. Não queremos a agressão letal da malária. Por isso, nós não queremos deixar os garimpeiros se aproximarem”

Trecho do relatório “Yanomami Sob Ataque: Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo

O Ministério da Saúde resgatou no dia 20 de Janeiro de 2023 indígenas que estavam doentes com quadros de desnutrição severa e malária. Segundo o secretário do Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), mais de 1.000 indígenas foram resgatados nos últimos dias, desde o decreto de situação de emergência.

Atualmente, mais de 700 pacientes estão recebendo atendimento na Casa de Apoio à Saúde Indígena (CASAI) de Boa Vista. Um outro hospital de campanha também deve ser montado dentro do território indígena, localizado na região Surucucu, com uma estrutura com profissionais, materiais e insumos necessários para a assistência necessária à população local. 

Confira algumas imagens:

Suspeita de descumprimento de ordens e desvio de medicamentos

O Ministério Público Federal informou na última quinta-feira (26) que desde setembro de 2022 faz alertas sobre a insuficiência de medidas adotadas pelo governo federal para a retirada de invasores da Terra Indígena Yanomami.

A informação consta em um documento enviado pelo MPF ao Supremo Tribunal Federal (STF), que também afirma que o governo descumpriu ordens judiciais para garantir a segurança de comunidades indígenas no país. O MPF afirma que já havia detectado problemas orçamentários para a Fundação Nacional do Índio (Funai), além de redução de recursos nos últimos anos.

No ano de 2022 ocorreu a descoberta de um esquema de desvio de medicamentos. Uma inspeção em julho alegou que a entrega do vermífugo albendazol, ocorreu em quantidade inferior ao que constava em nota fiscal. Conforme o MPF, havia “claras evidências de que a mesma prática estendia-se a outros 95 medicamentos licitados”, prejudicando a distribuição de outros itens, como Aciclovir, Ácido Fólico, Ácido Valpróico, Amoxicilina, Cefalexina, Cetoconazol, Clorexidina digluconato e Lidocaína. Segundo o documento, os indícios sugerem a participação de agentes públicos e privados em práticas fraudulentas. Entre 2020 e 2021, diz o MPF.

Estima-se que 10 mil crianças, de um total de cerca de 14 mil, deixaram de receber remédios, agravando o quadro de subnutrição. As suspeitas apontavam que somente 30% dos mais de 90 tipos de medicamentos fornecidos por uma das empresas contratadas pelo Distrito Sanitário Yanomami foram entregues.

Diante a crise humanitária, o Supremo Tribunal Federal (STF), identificou o descumprimento de determinações judiciais e suspeitas. As inconsistências envolvem a realização de operações para garantir segurança, alimentação e saúde aos Yanomami.

Em decisão sigilosa, o Supremo determinou que fosse executado um plano de expulsão de invasores da Terra Indígena Yanomami e de outras seis terras indígenas, em que há a presença ilegal de garimpeiros e madeireiros. Foi determinada também a interrupção da chegada do suprimento de alimentos, combustíveis e itens de primeira necessidade nos garimpos ilegais. A ideia era forçar a saída dos invasores sem atos de violência. A Corte ainda estabeleceu o uso da força e a permanência de agentes nas comunidades em casos de violência contra os indígenas e para a proteção de comunidades ameaçadas.

Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) declarou que a situação dos povos yanomami foi denunciada pelo menos 21 vezes à Justiça. Segundo a entidade, cerca de 100 crianças morreram em 2022. Procuradores do Ministério Público Federal (MPF) afirmaram que a situação de saúde dos indígenas yanomami foi causada pela omissão do Estado brasileiro na proteção das terras indígenas.

De acordo com a nota, apesar dos esforços feitos pelo órgão, as providências tomadas pelo governo foram limitadas.

“No entendimento do Ministério Público Federal a grave situação de saúde e segurança alimentar sofrida pelo povo yanomami, entre outros, resulta da omissão do Estado brasileiro em assegurar a proteção de suas terras. Com efeito, nos últimos anos verificou-se o crescimento alarmante do número de garimpeiros dentro da Terra Indígena Yanomami, estimado em mais de 20 mil pela Hutukara Associação Yanomami”, declarou o órgão.

A nota cita ainda deficiência na oferta de serviços de saúde, falta de distribuição de remédios e a presença de garimpeiros na região como fatores que contribuíram para a situação.

“O Ministério Público Federal destaca também o firme compromisso da instituição de continuar atuando de forma célere e diligente, em todas as esferas e em cumprimento à sua missão constitucional para coibir as atividades ilegais de garimpo e outros ilícitos em terras indígenas, para a retirada de invasores nas Terras Indígenas Yanomami e de outros povos, como Munduruku e Kayapó, bem como para o fortalecimento da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai)”, concluiu.

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