Após 30 anos, tombamento ainda não é consenso entre moradores da Fordlândia no Pará

Necessidade de regularização fundiária e a localização de Fordlândia tornam o processo lento e dificultam o tombamento.

Nas primeiras décadas do século passado, o empresário americano Henry Ford desenvolveu um empreendimento na região do Baixo Amazonas, com o objetivo de cultivar seringueiras para a extração do látex vegetal, matéria-prima utilizada na produção de pneus automotivos pela Ford Motor Company. O empresário buscava a autossuficiência em todas as fases da linha de montagem dos automóveis e, ao mesmo tempo, procurava criar uma alternativa para a importação do látex da Ásia.

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O projeto foi implantado a cerca de 300 quilômetros ao sul da cidade de Santarém, na margem leste do rio Tapajós, local acessível apenas por via fluvial, mas inacessível para grandes navios em época de seca. Além da área para o cultivo planejado, a Companhia Ford instalou uma fábrica de beneficiamento do látex e montou uma vila para os trabalhadores, com infraestrutura dotada de hospital, escola, rede de abastecimento de água, energia e comércio.

No meio da selva amazônica, surgiu a cidade de Fordlândia. O empresário, no entanto, não contava com a disseminação de uma praga que, com incrível rapidez, destruiu o cultivo.

A solução encontrada pela companhia foi devolver a área de Fordlândia para o governo brasileiro e transferir o empreendimento para outra gleba mais próxima de Santarém, a 36 km, chamada Belterra, que também recebeu os investimentos feitos em Fordlândia.

Desta vez, a companhia se cercou de estudos realizados por botânicos e especialistas sobre o solo do lugar para evitar um novo ataque de pragas. Mas a idade avançada de Henry Ford, a morte do principal incentivador do projeto, o filho Edsel Ford, em 1943, e a descoberta da borracha sintética estão entre as causas determinantes para o fechamento definitivo do empreendimento.

Restou, em Fordlândia e Belterra, um patrimônio arquitetônico material formado por vilas em estilo americano, atualmente habitadas principalmente por familiares de ex-funcionários, e por prédios que serviram de infraestrutura para o negócio, hoje bastante deteriorados pela ação do tempo e ausência de manutenção.

Arquitetura residencial em madeira, comum na vila criada pela Companhia Ford em Belterra, Santarém (PA). Foto: Reprodução/UFPA

De cidade-fantasma a objeto de pesquisa

Na infância, a arquiteta Zâmara Elaíne Anunciata Lima passava sempre com a família por Fordlândia nas viagens de barco entre Itaituba, onde nasceu, e Santarém. De longe, avistava a velha caixa d’água de ferro e achava-a fascinante.

As memórias da infância inspiraram a universitária a pesquisar a velha cidade, tida por “fantasma” em várias publicações, embora fosse habitada. Na Iniciação Científica, seguiu a linha de Patrimônio Cultural no Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural (Lamemo), em que desenvolveu estudos que resultaram no Trabalho de Conclusão de Curso Fordlândia: Arquitetura norte-americana do início do século XX na Amazônia, suas tipologias e adaptações, desde então orientada pela professora Cybelle Miranda.

Posteriormente, seguiu para o mestrado, ampliando a pesquisa para Belterra, centrando o foco em um estudo comparativo entre as duas cidades fundadas por Ford. Em 2019, Zâmara defendeu a dissertação ‘A patrimonialização de Company Towns: o caso de Fordlândia e Belterra’.

Durante a pesquisa, Zâmara observou que a alcunha “cidades-fantasmas” era comumente dada às cidades-empresas e vilas operárias que tiveram seu apogeu em determinada época e, após o fechamento das empresas, entraram em decadência, mesmo que ocupadas por familiares de ex-funcionários e novos moradores.

“Trata-se de uma metáfora por terem sido ‘abandonadas’ pela empresa e pelos funcionários, deixando galpões e maquinário inutilizados. No caso de Fordlândia, até mesmo um hospital foi deixado entregue à ruína”, 

explica a arquiteta.

A dissertação teve como objetivo observar o valor atribuído à arquitetura residencial de Fordlândia e Belterra por parte de seus moradores, bem como as propensões das entidades governamentais – IPHAN e prefeituras –, com a finalidade de discutir a pertinência da patrimonialização.

Este conceito deve ser entendido como o processo institucionalizado de reconhecimento e proteção de um bem cultural material por meio de tombamento, seja ele das esferas federal, estadual ou municipal. No caso de Fordlândia e Belterra, o interesse pela preservação do patrimônio material se iniciou em 1990, quando a petição de tombamento entrou em análise pelo IPHAN, porém, até o momento, aguarda por deferimento ou não.

Onde faltam informações, sobram controvérsias

A pesquisadora utilizou o método qualitativo, por meio da prática etnográfica, que consiste na observação participante e envolve três formas de coleta de dados: entrevistas, observação e documentos. A análise do discurso dos atores sociais, no caso, os moradores das vilas ouvidos no estudo, revelou que o tombamento nunca será um consenso, principalmente quando envolve um bem coletivo, nesta situação, um conjunto urbano.

“Falta informação e há muitas controvérsias. Nem sempre há esforços por parte dos administradores públicos, e a própria população se divide. No entanto a resposta que mais busquei foi o porquê da demora do parecer. Favorável ou não. Com o desenvolvimento da pesquisa, fui me deparando com vários aspectos que justificam a demora”, explica a arquiteta.

O aspecto mais citado, segundo Zâmara Elaíne Anunciata Lima, é a necessidade de regularização fundiária. Com o fim do empreendimento, Fordlândia e Belterra voltaram a pertencer à União, administradas pelo Ministério da Agricultura, e nunca repassadas oficialmente aos municípios de Belterra e Aveiro, do qual Fordlândia é distrito.

O mesmo processo ocorre com as residências ocupadas por empossamento e transferidas de morador para morador. “Com o tombamento, cada morador continuará responsável pela manutenção e conservação do imóvel, mas a regularização se faz importante para possíveis responsabilizações e financiamentos, por exemplo”, aponta.

Outro aspecto que dificulta o processo de tombamento é a localização de Fordlândia, distante quatro horas de Santarém por via fluvial. Concorre também a ausência de uma representação do IPHAN na região, o que torna o processo dependente do deslocamento de técnicos de Belém, mas a Superintendência alega não dispor de verba e técnicos suficientes para o andamento mais ágil do processo.

Em Belterra, a descaracterização é menos evidente

Em dezembro de 2021, uma audiência on-line com representantes do IPHAN, da Secretaria de Cultura do Estado do Pará, do Ministério Público Federal e da Prefeitura de Aveiro deliberou a re­alização de vistoria e audiência pública em Fordlândia. Zâmara Lima participou da audiência como pesquisadora do Laboratório de Memória e Patrimônio Cultural. Segundo ela, a população questionou as entidades, enquanto a justiça cobrou do IPHAN a conclusão do processo.

A pesquisadora informou sobre a possibilidade de um desmembramento, com deferimento do tombamento apenas de Belterra. A justiça deu cinco meses para o órgão realizar inscrição no Livro do Tombo, em que são registrados os bens culturais em função do valor histórico e cuja conservação seja de interesse público pela vinculação a fatos memoráveis da história nacional. Sem dúvida nenhuma, o empreendimento de Henry Ford, nas primeiras décadas do século passado, é um capítulo relevante para a história da Amazônia e do mundo.

Conforme descreve a pesquisadora, as habitações em Fordlândia e Belterra foram construídas principalmente em madeira. Apesar das dificuldades de manutenção, estão resistindo, com intervenções pontuais de adaptação para usos atuais, como ampliações e troca de cobertura. Nos últimos anos, porém, houve um avanço significativo nessas intervenções, sobretudo em Fordlândia, com descaracterização das unidades. Sob o argumento de maior segurança e facilidade de manutenção, alguns moradores estão trocando a madeira por alvenaria.

Zâmara Lima observa que, em Belterra, o processo de descaracterização é menos evidente, com a antiga vila se apresentando mais preservada, “ainda que existam algumas intervenções, a escolha de muitos moradores foi manter as casas pintadas nas cores verde e branca, característica encon­trada na cidade de Alber­ta, nos EUA, construída pela mesma companhia, na cidade de Alberta, nos EUA”.

*Por Walter Pinto, do Jornal Beira do Rio (edição 163) 


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