Após quatro horas de traslado entre Bragança e a comunidade de Nova Canindé, além de mais duas horas e meia de missa celebrada na praça central da localidade, situada a 42 quilômetros do município do nordeste paraense, o grande ciclo de homenagens dos bragantinos, em pesar pela morte do jogador Lucas Gomes, terminou nesta segunda-feira (5). O jogador foi enterrado às 15h, em cerimônia que emocionou a multidão presente – incluindo muitos que se deslocaram por toda a cidade de Bragança, desde as primeiras horas da manhã, e também seguiram ao longo do dia o cortejo final pelo atleta.
Conforme o previsto desde ontem, o corpo do jogador Lucas Gomes deixou o ginásio do Senai Bragança, onde foi velado durante a noite toda, pontualmente às 8h. em seguida uma grande carreata se formou. Ela percorreu várias ruas de Bragança por toda a manhã, acompanhando o cortejo fúnebre que conduzia em carro aberto o caixão do jogador. O féretro era transportado em cima de um caminhão dos Bombeiros. Motociclistas, ciclistas e motoristas dos mais diversos tipos de veículos iam se somando ao cortejo à medida que ele avançava pela manhã.
Famílias inteiras de Bragança foram às ruas em plena segunda-feira: tomaram calçadas e varandas nos mais diversos pontos da cidade para prestar homenagens e acompanhar a passagem do cortejo. Muitas corriam às esquinas que davam para o circuito definido para as homenagens. A cidade parou para homenagear o atleta.
Também o traslado até a localidade de Nova Canindé se estendeu com várias outras homenagens, feitas pelas diversas comunidades que se revezam ao longo dos empoeirados 40 quilômetros da PA-112 (rodovia Dom Eliseu).
O corpo de Lucas Gomes chegou a Nova Canindé por volta de meio-dia. Com grande alvoroço, o pequeno lugarejo logo iniciou uma missa na praça principal. A cerimônia durou até as 14h30 e minguém arredou o pé – mesmo sob o sol forte. Logo em seguida, o corpo do jogador Lucas Gomes foi levado da praça ao cemitério, em curta caminhada acompanhada pela multidão.
Por volta das 14h50 O caixão foi depositado no jazigo da família, ao som de palmas e hinos como ”Segura na mão de Deus”, em homenagem ao atleta. A cerimônia encerrou às 15h, mas a multidão ainda se deteve por alguns minutos no modesto cemitério Maria Augusta – cujas dimensões são menores que as de um campo de futebol.
Ligação
Nova Canindé é o vilarejo mais próximo à localidade da Terceira Travessa do Montenegro, onde o ex-atacante Lucas Gomes, 26, paraense ligado ao time catarinense Chapecoense, viveu até a adolescência que o revelou para o futebol em torneios promovidos entre times da região de Montenegro. E foi em campeonatos de futebol amador, realizados nesta e em outras localidades, ao longo da rodovia Dom Eliseu, que Lucas Gomes foi descoberto como um talento para o futebol profissional brasileiro.
Esse último cortejo feito hoje por Bragança para Lucas Gomes aconteceu após o corpo do jogador ter sido recebido ontem (4) com uma grande comoção, no Estádio São Benedito. Quatro mil pessoas foram ontem à arena de Bragança, e o jogador ainda foi velado pela família e também, depois, durante todo o resto da noite, das 23h20 às 8h da manhã, no ginásio esportivo do Senai de Bragança.
No velório aberto em Bragança, se sucederam, ao longo da madrugada, várias homenagens de comunidades bragantinas – nas quais atuam times de futebol amador que fizeram parte da trajetória do jogador. Entre esses times amadores, Lucas jogou no União, da Comunidade Quilômetro Sete; no Nacional, do Quilômetro Oito; no Flamengo, da Comunidade do Quilômetro Vinte e Um; e no Horizonte, de Nova Canindé.
Em outra homenagem durante a madrugada, os pais do jogador ganharam de presente de um ex-companheiro de atuação no futebol profissional: uma camisa do Fluminense, escudo pelo qual o atacante também jogou.
Respeito
Três dias de luto oficial foram declarados pelo município de Bragança (sábado, domingo e hoje), por causa da morte do atacante paraense. Antes do velório público que tomou ontem o Ginásio do Senai, Lucas Gomes havia sido velado também, por quase duas horas, na casa dos pais, no bairro bragantino de Morro. A missa de corpo presente, antes programada, foi cancelada pela família, para que o corpo do atacante pudesse sair do Ginásio do Senai hoje mais pontualmente, às 8h da manhã.
No domingo o corpo do atacante também já tinha sido acompanhado por cinco horas de cortejo, após a chegada ao Pará, entre o aeroporto internacional de Belém e Bragança. Várias comunidades ao longo da pista espalharam faixas em respeito ao jogador. Ao longo desta semana, o ex-jogador Lucas Gomes cruzou ainda o País duas vezes, após a liberação dos corpos resgatados no acidente aéreo na Colômbia. Lucas esteve entre as vítimas homenageadas em Santa Catarina, em velório coletivo realizado sábado na arena Condá, em Chapecó (SC).
Nascedouros
Quando o féretro de Lucas Gomes atravessou os 42 quilômetros que ligam Bragança ao Montenegro, ele reencontrou-se com um dos mais férteis celeiros do futebol amador paraense da atualidade. Uma região que é uma verdadeira usina de novos jogadores, devido à grande concentração de times que se revezam pelos mais diversos campos de futebol das várias comunidades que se sucedem, quilômetro a quilômetro, adentro da estrada que cruza Bragança rumo a Nova Canindé.
Nesta segunda-feira, o corpo do jogador pode se reencontrar também com diversas famílias e companheiros de chuteiras que marcaram o início de sua trajetória. É o caso da família da pensionista Nilza Guimarães, que colocou uma grande faixa negra, de luto, em frente às casas da Comunidade do Quilômetro Sete. “Ele era o nosso grande amigo”, resumiu.
Na mesma comunidade, o estudante Fábio Rodrigo, 21, que jogou com Lucas no time amador União – e também contra o atacante paraense, quando este defendia o pequeno Flamengo de Montenegro –, fazia sua homenagem particular ao amigo e ídolo que partiu. “Ele era gente boa, muito humilde, e um atacante espetacular, que corria muito e jogava muito bem”, sorria o estudante. “Lucas sempre estava por aqui, mesmo depois de começar a jogar nos times grandes. Este ano ele deu uma chuteira para um amigo meu da Comunidade do Quilômetro Oito”.
O amigo premiado é Daniel de Souza, 26, que esta segunda estava ao lado de todo o time amador do Nacional, na Comunidade Quilômetro Oito, esperando ver o cortejo do velho amigo passar em Montenegro. “Essas chuteiras foram um presente que ele me deu justamente na ida dele para o Chapecoense. É uma raridade, um presente de certo modo triste, pois foi um incentivo. Ele era um grande amigo, único, excepcional”.
Dênis Reis, conhecido por organizar todos os anos a Copa Rural do Montenegro, campeonato de onde despontou Lucas Gomes para o início da carreira no futebol Sub-20 do time Bragantino, resume bem o celeiro de chuteiras que a estrada Dom Eliseu hoje representa: “São mais de vinte times amadores em atividade, se revezando em confrontos todos os fins de semana. Mais de 16 participaram da última Copa Rural. Sem isso, Montenegro não tem centro”, pondera Reis.
O professor guarda com carinho um documento raro: uma ficha preenchida pelo então jovem Lucas Gomes, ainda em 2010, com 20 anos, se inscrevendo mais uma vez no campeonato de futebol amador Copa Rural do Montenegro. O meia atacante já se destacava pelo talento, mas também pelo carinho compartilhado com os amigos e pelas grandezas. “Ele nunca esqueceu suas origens e sempre sonhou muito. Por isso mais uma vez está voltando, agora, para repousar em sua terra. Sinto orgulho de ter participado desse seu início, embora esse momento seja triste. Essa lembrança é a que quero guardar: não do craque que perdemos, mas do garoto que venceu e foi longe”.
Na Comunidade do Quilômetro Vinte e Três, da mesma estrada que liga Bragança a Montenegro, oito mangueiras delimitam a diversão de um punhado de jovens. É mais um dos vários campinhos comunitários que coalham a rodovia PA-112. A bola corre veloz ao centro da algazarra dos garotos suados que se digladiam sem camisas – vivendo um daqueles mais puros, sublimes e primevos momentos do futebol: o do estado bruto da arte de brincar.
Vários deles jogam noutro dos diversos times que pipocam no Montenegro: são do Juventude. Outro pequeno Lucas se cria no areião, entre sombras frondosas e folhas secas de mangueiras. “Ele [Lucas Gomes] era muito bom. Sim, quero jogar como ele”, diz em ar meio aborrecido Lucas da Costa Reis, 15. É justificado. O papo é chato e a bola já espera mito. São apenas 10h40 da manhã naquele que agora é o centro do mundo. A bola volta a correr.
Campos afora
O paraense Lucas Gomes, reconhecido pelas grandes explosões de desempenho em campo, correu para uma carreira vitoriosa. As pernas velozes, que ganharam a estrada para além dos campinhos de Montenegro e da arena do Bragantino, fizeram mais: saltaram beiras de estradas, pastos, cercas, buritizais e capoeiras da região dos caetés. Pularam ruas e prédios, rios e matas e montanhas. Cruzaram estádios do Brasil e voaram para os campos verdes dos louros e da glória das vitórias.
Agora, as pernas de Lucas retornaram calmas e lentas pelo caminho de volta para casa. Como o caudaloso Amazonas, serenamente partindo dos Andes de Perus e Colômbias para se unir de novo a todas as águas sedentas do repouso quente do trópico – elas querem desaguar no colo do mar.
Ao seu repouso tranquilo em Montenegro retornou Lucas Gomes. Entre familiares e amigos, ao berço do seu sonho mais bragantino. Ao terreno do orgulho e da esperança mais terno do Brasil. Um hectare de luz, superação e redenção: 65 por 110 metros, ou tantos por tantos outros, forjados a esperanças que, por muitas vezes, têm apenas uma sombra, o capim e um céu espelhado como testemunhas. Uma meia lua, pequenas e grandes áreas, centro do campo. A bola do mundo de outro pequeno menino ou menina roda de novo a história. E em Bragança, ela está cada vez maior, partilhada e viva.