A proposta de uma educação anticolonial, vivenciada em diferentes territórios indígenas, é o que busca Duã Busã, professor, pajé e líder da etnia Huni Kuï. O educador vive e trabalha na aldeia Coração da Floresta, no Alto Rio Jordão, divisa do estado do Acre com o Peru. Em suas aulas, ele aplica os princípios do movimento Shubu Hiwea (Escola Viva), que luta para sustentar mundos. Para atravessar a perspectiva formal da escola que prioriza letras e números, a Escola Viva adentra a floresta e usa plantas, rios, sonhos e atividades do cotidiano como instrumentos pedagógicos que acordam memórias ancestrais.
Este pensamento é uma resposta crítica à violência colonial presente no ensino indígena no Brasil, marcado por séculos de imposição da cultura cristã e europeia aos povos indígenas, com a catequização forçada executada por jesuítas e missionários. Devido à catequese, os saberes indígenas foram adormecidos e deixaram de ser praticados. A pedagogia integracionista não respeitava as práticas e conhecimentos ancestrais de diferentes etnias e povos.
Como forma de expandir os saberes compartilhados pelo pajé Duã Busã e fortalecer as culturas indígenas dentro dos territórios, nasceu a iniciativa das Escolas Vivas, coordenada por Cristine Takuá, educadora, artesã, escritora, parteira e pensadora do povo Maxakali que habita há 20 anos a Terra Indígena Ribeirão Silveira, dos Guarani-Mbya, no litoral norte de São Paulo. Ela também é fundadora do Instituto Maracá, entidade voltada para a promoção da cultura, arte e literatura indígena.
O projeto recebe ainda contribuições de outras lideranças indígenas, como Ailton Krenak, e é apoiado pelo Selvagem – ciclo de estudos sobre a vida, espaço que compreende diversos temas a partir da integração de conhecimentos indígenas, científicos e filosóficos.
A mestra indígena é responsável por dialogar com as escolas vivas acompanhadas pelo programa em cinco territórios entre São Paulo, Minas Gerais, Acre e Amazonas: Shubu Hiwea (Escola Viva Huni Kuï), do povo Huni Kuï ; Apne Ixkot Hâmhipak (Aldeia Escola Floresta), do povo Maxakali; Mbya Arandu Porã (Ponto de Cultura), do povo Guarani Mbya; Bahserikowi (Centro de Medicina Indígena), dos povos Tukano, Desana e Tuyuka; e Wanheke Ipanana Wha Walimanai (Escola Viva Baniwa), do povo Baniwa.
“As escolas vivas são formas próprias de transmissão de conhecimentos. Todos os territórios indígenas são espaços de escolas vivas. Debaixo da árvore, na beira do rio, na casa de reza, são lugares onde os saberes e fazeres ancestrais são repassados de geração em geração. A ação das escolas vivas é um processo de tecer redes de afeto e cuidado para acordar essas memórias que foram adormecendo com o passar dos anos”, explica Takuá em entrevista ao Nonada Jornalismo.
Ela foi professora por 12 anos na Escola Estadual Indígena Txeru Ba’e Kuai’, no litoral de São Paulo, território onde vive, e saiu da unidade de ensino por não aceitar o sistema colonial que lá se impõe: “um currículo quadrado e desrespeitoso com a cultura de cada povo”, avalia.
O objetivo das escolas vivas é despertar em crianças, jovens e adultos indígenas a vontade de dar continuidade a transmissão de saberes ancestrais dentro dos territórios, em um processo geracional. São espaços de resistência criativa formadora de outros mestres e mestras dos conhecimentos indígenas.
Além disso, as escolas vivas se preocupam em cuidar dos territórios e conseguir manter as crianças e jovens sonhando e praticando os conhecimentos ancestrais para que as futuras gerações não esqueçam mais. “Não deixem adormecer toda a riqueza dos saberes de saúde dos avós”, completa Takuá.
De acordo com a educadora, é a partir da compreensão de que cada povo tem um modo particular de preparação e proteção de sua gente, desde antes do nascimento até depois da morte, que as escolas vivas operam seus currículos e atividades, em contraponto às escolas formais clássicas.
“As escolas vivas se diferenciam das outras escolas na medida que não priorizam o conhecimento ocidental, mas sim o saber oral dos anciãos, das plantas e dos sonhos. Não temos um currículo definido, mas uma infinidade de trama de possibilidades de transmitir o conhecimento respeitando o dom e principalmente, o tempo de cada pessoa”, explica Cristine.
Culturas contracoloniais
Nascida na comunidade de Assunção, no Baixo Rio Içana, na Terra Indígena Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, a antropóloga, fotógrafa e pesquisadora indígena Francy Baniwa, do povo Baniwa, pesquisou e escreveu durante seis anos o livro Umbigo do Mundo para documentar as histórias da origem de seu povo.
Sua preocupação como mulher indígena e pesquisadora era fortalecer entre as novas gerações as danças de seu povo e as práticas cotidianas como cuidar da roça e fazer beiju. Essas atividades permearam a infância de Francy, diferente do que ela observa com a infância de sua filha, por exemplo, vivida entre território e cidade.
“A gente tem um grande desafio de fortalecer essa cultura. Eu sou dona de roça com muito orgulho, faço farinha e me orgulho demais em ser dona de roça que nem minha mãe. Além de ser pesquisadora, para mim o meu mundo é muito válido e poder conhecer meu território, poder estar na minha casa, na minha comunidade, como uma mulher Baniwa, não tem preço”, diz.
A obra foi feita em diálogo com seu pai, Francisco Luiz Fontes Baniwa (Matsaape), narrador das histórias orais tradicionais do povo Baniwa, e seu irmão Frank Fontes Baniwa (Hipattairi), autor das 74 aquarelas criadas para o livro. Desse trabalho, surgiu a possibilidade de realizar o sonho coletivo da aldeia Assunção de fortalecer a transmissão de saberes dos mais velhos e aprender com eles, que são os pilares e a fonte de sabedoria da comunidade.
A Wanheke Ipanana Wha Walimanai (Escola Viva Baniwa) foi inaugurada no território do Alto Rio Negro em março deste ano, em uma emocionante celebração que mobilizou toda a comunidade de Assunção. “Foi um momento muito importante porque a comunidade começou a entender que a gente precisa publicar mais livros, que a oralidade precisa ir para a escrita e quem pode fazer isso somos nós professores e alunos indígenas”, relata.
A comemoração com danças, cantos e rituais contou com a presença dos 12 conhecedores da Escola Viva Baniwa, todos professores indígenas e mestres da comunidade. O calendário e o planejamento da escola são específicos e decididos entre a aldeia e os conhecedores, para construir um espaço de saberes que pretende valorizar a cultura desse povo entre os mais jovens.
A Escola Viva Baniwa trabalha com eixos temáticos que interseccionam arte e educação, por meio de confecção de cestaria de arumã; confecção de instrumentos musicais, de pesca, de caça e tecelagem em tucum; e uso das artes visuais, do audiovisual e da fotografia.
A liderança Cristine Takuá descreve que o papel da arte e da cultura no eixo de ensino das Escolas Vivas é a extensão do que já acompanha os povos indígenas a cada passo, “seja preparando um remédio, fazendo um parto, preparando uma armadilha, entoando um canto sagrado, tecendo uma rede, preparando uma argila que se transformará numa panela, a arte é o coração da cultura e segue nas escolas vivas sendo praticada e valorizada”.
A musicalidade é outro aspecto abordado pela Escola Viva Baniwa, onde os cantos, danças e performances musicais fazem parte das atividades conduzidas pelos conhecedores Baniwa. As línguas Baniwa e Nheengatu também são centrais na metodologia de ensino.
A expectativa é integrar ao projeto as outras 95 comunidades Baniwa que existem na Terra Indígena Alto Rio Negro e incentivar a nova geração a ocupar espaços de referência na comunidade, como futuras lideranças e sábios. São Gabriel da Cachoeira é o município com maior diversidade indígena do país. São 23 etnias diferentes.
Os Baniwa têm uma relação especial de respeito com a terra. Segundo Francy Baniwa, sua comunidade sempre foi escola viva por manter práticas milenares que remontam aos conhecimentos da natureza e a manutenção da língua materna.
“A gente é escola viva porque a gente fala nossa língua, a gente entende o mundo da roça, o que é ser dona de roça.
A escola viva somos nós dentro dos territórios, a escola viva é você conhecer o seu território e saber que naquela terra firme dá para fazer uma roça. A escola viva é saber que dá para plantar e que vai ter muita fartura, seja de banana ou pimenta. A Escola Viva é saber que naquele rio existem diversos tipos de peixes e dominar esse conhecimento do território”, manifestou a liderança.
Oralidade priorizada
O papel do ensino da oralidade para as novas gerações constitui um caminho para que os saberes ancestrais sejam “sempre trilhados pelos mais jovens e assim eles seguirão repassando todas essas memórias às futuras gerações”, garante a educadora Cristine Takuá, que reforça o conhecimento dos povos indígenas transmitido de forma oral por meio de cantos, narrativas, diálogos com as plantas e com os animais.
Para a antropóloga Francy Baniwa, o exercício da oralidade e da prática entre pessoas e o seu território configura como escola viva nos afazeres do cotidiano, como acordar pela manhã e se banhar no rio. São escolas vivas as mulheres, crianças e homens indígenas que conhecem o seu próprio mundo. “É esse conhecimento nosso que temos de único, a língua, as narrativas presentes, as regras da floresta e os segredos”.
A Escola Viva Baniwa trabalha para que a consciência da importância da oralidade seja estabelecida entre as novas gerações Baniwa. A intenção de Francy Baniwa é transmitir o entendimento sobre as narrativas Baniwa que falam de cura e do cuidado com a alimentação, para que essa memória não seja esquecida.
“Explicar porque é tão importante ter resguardo, porque o benzimento é tão importante. Se eu não descrever as narrativas e explicar o que elas significam hoje ninguém vai conseguir entender porque que eu não posso comer o peixe cru, que isso me faz mal. A gente entende nosso mundo de um jeito, a gente tem essa diversidade muito rica dentro da comunidade”, detalhou.
Francy acredita que o conhecimento da oralidade de um povo é a chave para que os jovens não fiquem perdidos sobre o que são as narrativas, em um escuta constante com os mais velhos. Seu medo é que os filhos e netos esqueceram de onde vieram. Para isso, fortalece a Escola Viva Baniwa com o ensinamento específico Baniwa.
“Sentar, abrir a mente e deixar entrar e fluir e viajar nas narrativas é você percorrer esse trajeto de universidade que a gente faz. A oralidade precisa estar viva porque se a gente não fortalecer hoje, daqui uns 20 anos os nossos filhos e netos não vão saber de onde vieram e porque vieram”.
Produção de conhecimento e ciência ancestral
Em Manaus, no Amazonas, o Bahserikowi (Centro de Medicina Indígena) é outro projeto contemplado pela iniciativa das Escolas Vivas. O centro disponibiliza tratamentos tradicionais de cura e proteção guiados por pajés das etnias Desana, Tuyuka e Tukano.
São os Kumuã — anciãos indígenas conhecedores da medicina da floresta — os especialistas que dominam as práticas milenares de cuidado da saúde na medicina dos povos indígenas do Alto Rio Negro, como o Bahsese (“benzimento”, na língua Tukano) para tratar doenças ao invocar substâncias curativas dos vegetais, minerais e animais, e o Wetidarese (proteção) para afastar agressões pessoais.
As plantas medicinais também são usadas para curar diversos tipos de doenças no espaço idealizado pelo antropólogo indígena da etnia Tukano João Paulo Lima Barreto. O Bahserikowi é resultado da luta pelo respeito às medicinas tradicionais indígenas. No mundo ocidental, essas práticas ainda são vistas apenas como espirituais, e por isso não fazem parte das Práticas Integrativas e Complementares (PICS), regulamentadas e oferecidas gratuitamente à população pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Ivan Tukano, cofundador e coordenador do centro, afirma que o lugar foi criado porque a medicina ocidental não aceita que os especialistas indígenas tenham preparo para cuidar da saúde das pessoas. Ao longo dos oito anos de existência do centro, já passaram pelos benzimentos mais de 13 mil pessoas.
“Por preconceito não aceitam que nós temos a nossa própria ciência e tem o pensamento que indígena é aquele bicho do mato, sem tecnologias e incapaz de inserir numa sociedade o que a gente cria”, ressaltou.
Para além das consultas e tratamentos de saúde, o Bahserikowi é uma escola viva e centro de estudos avançados sobre os conhecimentos e práticas indígenas. Uma casa de oficinas de saberes indígenas para jovens indígenas e não indígenas, de festas tradicionais e de formação de futuros novos Kumuãs.
“O Centro de Medicina Indígena foi fundado com o objetivo de mostrar para a sociedade não indígena que nós temos a nossa própria medicina, onde as pessoas possam ter contato com os nossos especialistas de cura e a partir disso usufruir, ver e sentir as nossas práticas”, completa Ivan.
A reivindicação é para que o conhecimento dos Kumuã seja incorporado às políticas públicas de saúde. “A palavra para nós é concreta, diferente do mundo não indígena que dá importância a aquilo que está escrito. Através da oralidade, nos formamos pessoas que entendemos o nosso mundo, que cuidamos da saúde, do corpo, da floresta, porque o nosso corpo tem esta conexão com a natureza”, diz.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Nonada Jornalismo, escrito por Nicoly Ambrosio