Há 68 anos, o suicídio de Getúlio Vargas parou o Brasil

O relógio indicava que faltavam 15 minutos para as 9 da manhã daquele 24 de agosto de 1954. Nunca o país assistira a tamanha comoção popular como a que veio logo após a divulgação da notícia.

Pelo telefone, claramente emocionado, o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, leu para a Rádio Nacional a carta-testamento encontrada na mesinha de cabeceira do presidente morto: “Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada temo. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história”.

O relógio indicava que faltavam 15 minutos para as 9 da manhã daquele 24 de agosto de 1954. Nunca o país assistira a tamanha comoção popular como a que veio logo após a divulgação da notícia: Getúlio Vargas se matara, em seu quarto, por volta de 8h30, com um tiro no peito.

Multidões saíram às ruas. Enfurecidos, manifestantes depredaram a sede da Tribuna da Imprensa, o jornal de Carlos Lacerda, mais furibundo dos adversários de Getúlio. Uma massa humana de 100 mil pessoas, a maioria em pranto incontrolável, desfilou diante do caixão do presidente, velado no antigo Palácio do Catete, no Rio. A imprensa noticiou que cerca de 3 mil pessoas presentes ao velório, vítimas de desmaios, mal-estares, crises nervosas e problemas de coração, precisaram ser atendidas pelo serviço médico do palácio.

Na enfermaria, o estoque de calmantes esgotou-se em minutos. O país inteiro quedou em estado de choque. Ninguém esperava por aquele desfecho para a crise que se abatera como uma nuvem negra sobre o governo, apesar de o próprio Getúlio ter dito, dias antes, com todas as letras: “Só morto sairei do Catete”.

A pergunta que se fez à época, e que até hoje ecoa, 68 anos depois, é uma só: afinal, por qual motivo Getúlio se matou? O que levou o presidente a puxar o gatilho de seu revólver, após apontá-lo contra o próprio coração? Que sentimentos insondáveis povoavam o homem Getúlio Vargas no instante daquele gesto que mudaria a história do Brasil?

Como sempre ocorre, boa parte das possíveis respostas e certezas morreu junto com o próprio suicida. Mas, reconstituindo os fatos daquele aziago mês de agosto — mês de desgosto, no imaginário popular brasileiro —, é possível esclarecer os últimos momentos de Getúlio. Entre as tantas hipóteses, conjecturas e análises divergentes, uma coisa pelo menos é certa: o governo Vargas começou a morrer 20 dias antes, alvejado por outro tiro, este ironicamente disparado contra seu arqui-inimigo Carlos Lacerda.

Entre os dois tiros, um que atingiu o pé esquerdo de Lacerda, o outro que se alojou no peito de Getúlio, provavelmente encontram-se as respostas para a pergunta que não quer calar.

Foto: Reprodução/Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

O atentado da Toneleros

Na madrugada de 5 de agosto, pouco depois da meia-noite, Carlos Lacerda havia sido vítima de um atentado diante do portão do prédio onde morava, na rua Toneleros, em Copacabana. Dois disparos atingiram seu acompanhante, o major da Aeronáutica Rubens Vaz, que não resistiu aos ferimentos.

Foi impossível não ligar o atentado da Toneleros às críticas virulentas disparadas diariamente por Lacerda contra o governo pelas páginas da Tribuna da Imprensa. Com a linguagem destemperada de sempre, Lacerda chegara a chamar o presidente de monstro, o ex-deputado Lutero Vargas de “ilho rico e degenerado do Pai dos Pobres e Oswaldo Aranha de mentiroso e ladrão.

Carlos Lacerda escapou, por pouco, do atentado. Naquele mesmo dia exibiu, em seu jornal, as fotos de um ferimento a bala em seu pé esquerdo — ferimento cuja veracidade seria contestada depois —. O prontuário do Hospital Miguel Couto, onde fora atendido, sumiria misteriosamente. Mas o estrago, àquela altura, já estava feito.

A Carta Testamento

Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa.

Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci.

Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios.

Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente.

Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano.

Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado.

Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação.

Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém.

Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.

Referência

(Rio de Janeiro, 23/08/54 – Getúlio Vargas) Carta Testamento – Getulio Vargas file:///C|/site/livros_gratis/carta_testamento.htm [19/06/2001 00:04:38]

Fontes dos dados: Aventuras na História, Laurentino Gomes, Jorge Caldeira, Boris Fausto, Luis Felipe de Alencastro, Mary Del Priore.

Foto: Reprodução/Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo

Sobre o autor

Osíris M. Araújo da Silva é economista, escritor, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Academia de Letras, Ciências e Artes do Amazonas (ALCEAR), do Grupo de Estudos Estratégicos Amazônicos (GEEA/INPA) e do Conselho Regional de Economia do Amazonas (CORECON-AM).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista


Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Xote, carimbó e lundu: ritmos regionais mantém força por meio de instituto no Pará

Iniciativa começou a partir da necessidade de trabalhar com os ritmos populares regionais, como o xote bragantino, retumbão, lundu e outros.

Leia também

Publicidade