Entre as primeiras moradias dos povos indígenas na Amazônia, os sambaquis foram construídos com terra e conchas e são sítios arqueológicos.
As pinturas, cerâmicas e artes rupestres são como uma ponte de ligação entre o passado, o presente e até mesmo o futuro. São esses registros feitos pelos primeiros povos que possibilitam a melhor compreensão do processo da história dos povos indígenas que ocuparam a Amazônia. Essas heranças deixadas por povos antigos são consideradas patrimônio da humanidade, conhecidos como sítios arqueológicos e amparados pela Constituição Federal por meio da lei nº 3924 de 1961, que garante a proteção desses espaços por meio do poder público.
Nesse cenário, entre as primeiras moradias dos povos indígenas, estão os sambaquis, construídos com terra e conchas. Entre estudos arqueológicos envolvendo os sambaquis, foi identificado que eles podem ser encontrados em áreas costeiras, próximos à áreas de mangues, às margens de rios, interiores de baías e ilhas de várzea.
Essas moradias foram construídas por indígenas há, pelo menos, 8 mil anos atrás. Uma expedição realizada pelo projeto ‘Janelas Abertas para a Biodiversidade do Baixo Amazonas’ (JABBA), registrou sambaquis no rio Amazonas, entre os municípios de Terra Santa e Porto de Moz, no Pará. A origem da palavra sambaqui veio através do tupi, ‘tãpa’ que significa conchas e ‘ki’ significa amontoado, ou seja, amontoado de conchas.
O Portal Amazônia conversou com a doutora em arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Gabriela Prestes, integrante do projeto JABBA, para saber mais sobre essa herança arqueológica.
A margem dos rios, no litoral amazônico se encontra uma das maiores extensões de manguezais do planeta, ecossistemas suscetíveis a mudanças climáticas e ambientais. Essas áreas atraíam populações, que nessas paisagens, contruíam sambaquis. Essas antigas moradias também podem ser referidas como ‘minas de sernambi’. Geralmente, apresentam formato oval, com dimensões e alturas variadas, formadas por restos do cotidiano desses povos como restos faunísticos, de plantas, objetos em cerâmica lítico e ossos.
“No Pará, o sambaqui mais antigo, o sambaqui da Taperinha, data de 8 mil anos atrás, e os sambaquis que nós estamos estudando agora no Baixo Amazonas estão sendo datados. Os moluscos, como o uruá (Pomacea sp.), o itã (Anodontites trapezeus), fizeram parte da nossa alimentação ainda que hoje sejam muito pouco consumidos. As conchas também foram usadas para a construção destes sítios, ou seja, as pessoas usavam os moluscos como um elemento construtivo”, esclareceu a doutora Gabriela.
Os sambaquis podem ser encontrados em diferentes regiões da Amazônia. No Maranhão, que faz parte da Amazônia Legal, há vários sítios, como o ‘sambaqui do Bacanga’. Também existem sambaquis em Rondônia, principalmente na região de fronteira com a Bolívia. No Pará, os sambaquis são encontrados no “litoral salgado” na costa paraense, ao longo do rio Xingu e no Baixo Amazonas.
No Baixo Amazonas, inclusive, recentemente houve a expedição do projeto JABBA, formado por um grupo de pesquisadoras, entre elas arqueólogas, biólogas e geógrafas, que buscam mapear os sambaquis e escavar alguns deles para conhecer mais sobre as pessoas que moravam neste tipo de sítio. Esse projeto iniciou em 2022, com expedições de prospecção e escavação.
“Nós realizamos algumas expedições de prospecção, onde vamos percorrendo os rios buscando novos sítios arqueológicos mapeando onde eles se encontram, e expedições de escavação, quando realizamos de fato a escavação dos sambaquis. Nossa última expedição foi uma escavação no sambaqui Ponta do Jauari que se localiza entre Alenquer e Curuá, no Pará. Nesse sambaqui nós encontramos ossos de animais que hoje estão ameaçados de extinção como o peixe-boi, além de muitos restos da vida cotidiana desses povos, como os restos de pirarucu, tambaqui, bacu-pedra e artefatos cerâmicos que eles usavam, vasilhas, potes”,
explicou Gabriela.
Ao longo de tantos anos, esses sítios arqueológicos apresentam um bom estado de conservação, que se deve ao carbonato de cálcio presente nas conchas e que preserva restos de animais encontrados, como espinhas de peixe, vértebras e dentes, também nas plantas, como fragmentos de troncos de árvore, sementes e pólens, utilizadas durante a construção dos sambaquis. De acordo com a pesquisadora, essa identificação feita em laboratório, permite reconstruir o ambiente do entorno, documentando como essas paisagens se transformaram ao longo do tempo.
Na superfície do sambaqui foram identificados ossos de peixe-boi, pirarucu, tartaruga, que são indicativos da alimentação dos antigos povos indígenas que viviam nos sambaquis. O projeto JABBA defende a ideia ‘Janelas do passado que se projetam no futuro, os sambaquis guardam algumas lições para a conservação do planeta’, quebrando a concepção de que o passado está relacionado com atraso, mas que pode promover ensinamentos sobre a conservação da floresta.
“Algumas pessoas ainda pensam no passado com uma ideia de ‘atraso’. Nós acreditamos justamente no oposto, os povos do passado faziam um uso mais sustentável da floresta. Se hoje nós estudamos tecnologias para produzir os mesmos alimentos o ano todo, sem respeitar as estações do ano, no passado aproveitava-se o ciclo natural das plantas, a sazonalidade dos recursos. A longo termo essas tecnologias indígenas permitiram a conservação de uma floresta de pé. No nosso projeto, além das escavações, nós queremos mostrar que antigas práticas indígenas de cultivo, de alimentação e de manejo tem muito a contribuir para conservação da biodiversidade amazônica. Se nós queremos bem viver no futuro, o exercício da nossa sociedade agora é olhar e aprender com o passado”,
ressaltou Gabriela.
Durante a expedição, o projeto JABBA visitou o sítio arqueológico Ponta do Jauari, também no Pará, onde são encontrados diversos cachimbos tubulares, feitos em cerâmica decorada, que eram utilizados para o fumo.
“Além dos cachimbos, nós também encontramos ossos polidos muito decorados que possivelmente eram usados como inaladores de rapé. Quando fizermos a identificação das espécies de plantas usadas vamos conhecer melhor a finalidade, seja medicinal ou ritual, destes artefatos. A preservação intacta deste tipo de artefato é rara e pode nos revelar mais sobre culturas indígenas que merecem ser valorizadas, preservadas e reconhecidas por todos nós”, concluiu a pesquisadora.