Detalhe de mapa de igarapés com nomes em Kubeo, elaborado por representantes das etnias yuremawa, yúriwawa e betówa. Foto: Diego Pedroso, 2014
O primeiro número da revista científica do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) em 2024 apresenta a vida das populações originárias que habitam porção mais a oeste da Amazônia: trata-se de um mapa de igarapés elaborado por representantes das etnias yuremawa, yúriwawa e betówa, apresenta em detalhe os cursos d’água, com os nomes na língua do povo Kubeo.
Isso porque para se ver no contexto dos sentidos das nomenclaturas, da flora e da fauna e do imaginário desses povos, é preciso mergulhar no imaginário dos povos originários da Amazônia. E esse mergulho foi dado pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg há 120 anos em expedição pioneira no noroeste da região, em diálogo com o também pesquisador Emílio Goeldi.
Goeldi foi responsável pela criação e publicação do Boletim da instituição e o primeiro fascículo data de 1894. Com 130 anos de existência, o Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi é uma das publicações científicas mais antigas da América Latina em circulação. Acesse o primeiro boletim de 2024.
O dossiê ‘Temporalidades e interações socioambientais no noroeste amazônico’, publicado no Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi – Ciências Humanas, volume 19, nº 1, proporciona uma imersão na vida de indígenas e não indígenas naquela porção da Amazônia. O conjunto de artigos é organizado pelos pesquisadores Geraldo Andrello e Pedro Lolli, da Universidade Federal de São Carlos (SP), e Márcio Meira, do Museu Goeldi (PA).
Esse dossiê, dividido em dois números (o segundo sairá no último quadrimestre deste ano), é dedicado a Sueg–u Dagoberto Lima Azevedo e Ahk–uto Gabriel Sodré Maia, in memoriam, traz um compêndio de vinte artigos inéditos, resultantes de pesquisas realizadas na última década na região do noroeste amazônico, sob olhares diferenciados da etnologia indígena, antropologia, história, e cruzando fronteiras de disciplinas.
Como destacam Geraldo Andrello, Pedro Lolli e Márcio Meira, o foco desse dossiê está voltado aos aspectos variados da constituição da extensa rede social indígena na região do noroeste da Amazônia, bem como os impactos e as influências decorrentes do processo colonial ali iniciado no século XVII. Essa publicação celebra “os 120 anos da expedição do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg pela região do noroeste amazônico, cuja realização se deu sob forte influência do então diretor do Museu Paraense, o suíço Emílio Goeldi”. Em outubro de 2024, se celebra o centenário da morte de Koch-Grünberg.
Rumos
Os pesquisadores informam que, no começo do ano de 1903, Koch-Grünberg, então pesquisador do Real Museu de Etnologia de Berlin, iniciava sua permanência no rio Negro pelos dois anos seguintes. No preâmbulo ao livro publicado com os resultados de suas pioneiras investigações etnológicas (Koch-Grünberg, 1995 [1909-1910], p. 35, 2005 [1909-1910], p. 7), afirmava que havia “escolhi[do] o noroeste do Brasil, na fronteira com a Colômbia e Venezuela, por apresentar problemas importantes e interessantes, do ponto de vista geográfico e etnográfico”.
Essa iniciativa de Koch-Grünberg e a organização de uma coleção de 500 objetos etnográficos dos povos indígenas do rio Negro, salvaguardados na Reserva Técnica Curt Nimuendaju, e documentos essenciais da epopeia dos cientistas no noroeste amazônico estão sob a guarda do Arquivo do Museu Goeldi, em Belém.
Nos dois números do dossiê, o público vai poder conferir boa parte das localidades em que o etnólogo alemão foi recebido pelos povos Tukano, Arawak e Naduhup ao longo dos rios Negro, Içana, Aiari, Uaupés, Tiquié, Cuduiari, Pirá-Paraná e Apapóris.
Pioneirismo
“O legado mais importante da obra de Koch-Grunberg, produzida a partir de sua longa permanência em campo no noroeste Amazônico entre 1903 e 1904, foi certamente o estudo etnográfico primoroso que realizou entre os povos da família linguística Tukano oriental, ao longo do rio Uaupés. O etnólogo alemão foi um dos primeiros antropólogos profissionais a fazer pesquisas na Amazônia, no início do século XX. Por isso sua obra é pioneira em vários domínios, incluindo temas relacionados à arqueologia e à história indígena daquela região. Os estudos sobre organização social, cosmologia e de cultura material constituem uma das bases sólidas dos estudos que seguiriam seu caminho na etnologia da região, inclusive o de Curt Nimuendaju, feito em 1927. Um legado relevante foi, também, a imensa coleção de objetos etnográficos que reuniu, uma parte dela adquirida pelo governo do Pará e salvaguardada no Museu Goeldi desde 1904”, destaca Márcio Meira.
Acerca da importância decisiva da pesquisa científica sobre povos indígenas para a coexistência desses próprios grupos com os chamados homens brancos, Márcio ressalta que as pesquisas antropológicas têm como pressuposto fundamental o respeito à diversidade dos povos e de suas culturas.
“Nesse sentido, o conhecimento que é produzido pelos antropólogos é valioso para a garantia dos direitos dos povos indígenas, inclusive territoriais, diante dos desafios e da violência do chamado “mundo dos brancos”. Nos dias de hoje, os próprios indígenas têm se tornado antropólogos, ocupando espaços nas universidades e trazendo novos olhares e contribuições críticas para o conhecimento antropológico. Com esses avanços, oxalá o ensino de história e cultura indígenas, garantido pela Lei 11.645, venha a despertar entre os jovens de todo o Brasil um maior conhecimento da riqueza das culturas indígenas e de seu imenso patrimônio, que em muitos casos é compartilhado por toda a população do Brasil, e que nem sempre é reconhecido”, completa o pesquisador.
Rede
O levantamento de informações feito pelo conjunto de pesquisadores no dossiê indica que a região do noroeste amazônico é uma área de grande diversidade cultural e linguística que conforma uma vasta rede de relações sociais, integradas através de trocas matrimoniais, rituais e de bens.
É habitado atualmente, no território brasileiro, por 22 povos indígenas, agrupados em três grandes famílias linguísticas:
Tukano oriental (Cubeo, Desana, Tukano, Miriti-Tapuia, Arapasso, Tuyuka, Makuna, Bará, Barasana, Siriano, Carapanã, Wanano e Pira-Tapuia);
Arawak (Tariano, Baniwa, Kuripako, Warekena e Baré);
Naduhup (Hup, Yuhup, Nadëb e Däw).
Esses grupos ocupam cerca de 750 povoados de tamanhos variáveis, estabelecidos ao longo dos rios Negro, Uaupés, Tiquié, Papuri, Içana, Aiari, Xié, Curicuriari, Téa, Jurubaxi, Enuixi, Padauiri e vários outros afluentes menores, perfazendo, segundo o IBGE (2012), uma população indígena total de cerca de 48 mil pessoas, nos municípios de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. As bacias desses rios são incluídas em um conjunto de nove terras indígenas, sendo oito delas contíguas, cuja extensão ultrapassa os 12 milhões de hectares.
A rede social dos povos indígenas da região tem sido estratégica para a perpetuação da identidade das etnias, ao possibilitar, entre eles próprios, a troca de bens materiais e imateriais (inclusive, narrativas míticas), entre outras referências sociais. Essa rede desafia pesquisadores indígenas e não indígenas, dada a sua complexidade e as mutações sofridas e em andamento em sua trajetória com seus respectivos formatos e significados, no sentido de garantir a (re)existência desses grupos sociais originários do país.
Resistência
Sobre essa rede preciosa no noroeste amazônico, o pesquisador Geraldo Andrello observa: “Desde os trabalhos pioneiros de T. Koch-Grunberg e Curt Nimuendaju, sabemos que a região do noroeste amazônico abriga um extenso complexo de povos indígenas, classificados em três famílias linguísticas, possivelmente distribuídos em mais de 300 comunidades ribeirinhas e interfluviais localizadas na bacia dos formadores do rio Negro (Uaupés, Içana, Xié e outros). Trata-se talvez do mais conhecido “sistema regional” na Amazônia indígena. A complexidade das relações entre os diferentes povos que participam dessa extensa rede expressa-se em vários níveis, do plano da organização e das trocas sociais (mais de 20 povos inter-relacionados por exogamia de clãs e línguas) a uma intrincada mitocosmologia elaborada em um sem número de versões. Esses planos implicam-se mutuamente, de modo que – e isto é um dos pontos que mais me chama a atenção nessa região – é impossível tratar-se exaustivamente desses temas de modo isolado”.
Um aspecto fundamental, como frisa Andrello, é que, não obstante a longa e violenta história da colonização da região (iniciada já na segunda metade do século XVII), seus povos puderam manter-se em seus territórios tradicionais, apesar dos dramáticos e sucessivos processos de escravização e descimentos (as tropas de resgate e os aldeamentos do século XVIII) e deslocamentos forçados para os seringais do baixo rio Negro (o recrutamento violento da mão de obra indígena durante o período da borracha).
Impactos
Para o pesquisador Pedro Lolli, é difícil sintetizar os principais impactos da chegada do colonizador branco na região. Isso porque as primeiras frentes pioneiras coloniais datam do século XVI e se intensificam a partir do século XVIII em diante. Há, portanto, muitas camadas históricas de uma sucessão de impactos no sistema social regional do noroeste amazônico. Mas de maneira esquemática e geral é possível destacar algumas ondas que marcaram épocas e que ainda se fazem sentir atualmente.
A primeira grande onda, como revela Lolli, veio com o avanço da indústria extrativista e a instauração de um sistema de dívidas – conhecido também como aviamento, instauração do sistema do aviamento – no qual os indígenas foram ora atraídos, ora capturados como escravos para servirem de mão-de-obra. Nesse período, o sistema regional sofreu uma grande perda populacional (como decorrência da violência colonial), ao mesmo tempo que uma grande dispersão populacional (seja empreendida por aquelas pessoas que fugiam das frentes pioneiras, seja por aquelas pessoas que eram capturadas e levadas para Manaus ou mesmo Belém).
Uma segunda grande onda de impacto coincide com o boom da exploração da borracha na passagem do século XIX para o XX e a instalação das missões salesianas na região. A chegada dos missionários salesianos introduziu um novo capítulo na violência colonial. Enquanto procuravam conter a sede de sangue dos grandes patrões da região, que matavam indígenas por esporte, os salesianos iniciaram um processo educacional que obrigava aos indígenas a mudarem radicalmente seu modo de vida. Isso incluía a proibição de falar a língua materna nas escolas, o abandono de importantes rituais, a demonização do conhecimento indígena, a incorporação de roupas e de casas nucleares. Houve, portanto, um profundo impacto cultural que se estendeu ao longo do século XX, tendo seu apogeu entre meados da década de 1950 até 1980, como repassa o pesquisador.
Uma terceira grande onda de impacto ocorre a partir da década de 1970, quando o governo da ditadura militar colocou em prática um novo projeto de ocupação para a Amazônia, onde o plano era levar o desenvolvimento econômico para a região. É um período de megaobras realizadas em nome de um desenvolvimento predatório (muitas das quais apodreceram na floresta sem sequer ter a funcionalidade pretendida), que atraiu significativa migração para a região da Amazônia. Os principais impactos nesse período foram a ameaça e a perda territorial por parte dos povos indígenas. Além disso, é uma época em que o impacto ambiental é avassalador e sem precedentes.
Acerca dos conteúdos publicados no dossiê do MPEG sobre o noroeste amazônico, Pedro Lolli destaca que os artigos reunidos no Boletim do MPEG expressam também um conjunto de pesquisas que se fundamentam em um trabalho colaborativo entre pesquisadores(as) brancos(as), sábios(as) indígenas e pesquisadores(as) indígenas e que vem trazendo importantes compreensões sobre o processo colonial que ocorreu na Amazônia. Uma das contribuições desses trabalhos é que o processo colonial na Amazônia não pode ser compreendido apenas numa chave histórica e que devemos levar em consideração as várias historicidades indígenas que se entrecruzam no processo histórico colonial. Não é mais possível pensarmos sobre os rumos da Amazônia sem levar em consideração essa diversidade de historicidades, que implica também em trazer para o centro da discussão os (as) próprios (as) indígenas.
“Devemos abrir nossos ouvidos a essas historicidades (ainda que saibamos, como bem nos chama a atenção Davi Kopenawa, sejamos resistentes em escutar), pois elas se confundem com a própria floresta amazônica. Lembro apenas, como poderão verificar na leitura do dossiê, que no noroeste amazônico a paisagem não são apenas árvores e plantas, mas casas de ancestrais e lugares onde eventos importantes aconteceram. Em suma, o que se pode entrever ao longo do dossiê é que não há floresta Amazônica em pé, sem os povos indígenas, e que não podemos entender a devastação da floresta sem trazer as perspectivas históricas dos povos indígenas sobre essa destruição”, conclui Pedro Lolli.
*Com informações do Museu Paraense Emílio Goeldi