Preconceito popular: pesquisadoras defendem que lendas da Amazônia devem ajudar a preservar espécies

Sem poderes sobrenaturais, alguns animais acabam se tornando vítimas do preconceito em função das histórias em que são incluídos.

Eles já foram personagens de filmes, séries e contos de terror. Na Amazônia, quem ainda não ouviu a história de que quando a Rasga Mortalha passa por uma residência, é sinal de mau agouro? Que o boto seduz mulheres ribeirinhas e depois desaparece? Ou sobre uma cobra grande de olhos gigantes que afunda embarcações?

Essas são algumas das várias histórias contadas na Amazônia, utilizadas tanto para amedrontar, quanto como forma de cuidado. Independente da intenção, o problema é quando animais parecidos aos citados nas histórias realmente existem na natureza. 

Sem poderes sobrenaturais, eles acabam se tornando vítimas do preconceito popular. Para esses animais, mau presságio pode ser justamente encontrar um humano pela frente.

Conheça o que pesquisadoras da Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra) tem a dizer sobre três desses casos:

A Rasga Mortalha 

A lenda diz que quando a coruja Rasga Mortalha passa por uma residência, é sinal de mau agouro. O problema é que a lenda, muito comum nas regiões norte e nordeste, faz com que a ave, também conhecida como coruja de igreja e Suindara, seja mais uma das vítimas de violência e preconceito popular.

“As pessoas atiram pedras, dão tiro e provocam lesões que na maioria das vezes leva ao óbito desses animais. Nós já recebemos animais com traumas provocados por agressão, e ultimamente, temos recebido filhotes dessas corujas”, lamenta a professora Ana Silvia Ribeiro, coordenadora do Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Selvagens (Cetras)

Ao contrário do que diz a lenda, a Suindara tem um importante papel na biodiversidade, e é uma sorte tê-la por perto. De acordo com a professora, é necessário informar e alertar a população sobre o papel ecológico desse animal. 

“Não podemos deixar que as lendas populares sejam justificativas para a prática da violência contra elas. Ela é uma espécie carnívora, que se alimenta de roedores e pequenos mamíferos, anfíbios, pequenas aves e insetos. Nos ambientes urbanos é uma controladora de roedores e insetos, com um papel ecológico importante”, 

explica.

Foto: Ravaglia/Divulgação

A Suindara é da espécie Tyto furcata, e possui um timbre agudo, que lhe deu o nome popular de rasga mortalha. “Para os leigos soa como um grito forte, que ela emite frequentemente durante o vôo. O objetivo pode ser um som de alarme e interação social entre os indivíduos”, explica. Além do canto característico, é fácil reconhecer uma Suindara. Isso porque ela apresenta disco facial em forma de coração, olhos escuros e pequenos, pernas relativamente grandes, plumagem predominantemente branca e parda, não havendo diferenciação sexual.

“São conhecidas por serem predadoras com hábitos noturnos e crepusculares, que vivem em áreas abertas e semiabertas, podendo ser encontradas em áreas rurais e também em cidades. São animais que caçam principalmente nas primeiras horas da noite ou antes do amanhecer e, preferencialmente, se alimentam de roedores e invertebrados. No ambiente urbano se abrigam em forros dos prédios residenciais, torres de igrejas, e lá fazem seus ninhos”, diz a professora. 

Leia também: “Som da morte”: Descubra a lenda por trás da coruja-rasga-mortalha

O Boto

A lenda do boto é sobre um homem charmoso, sempre vestido de branco e com um chapéu na cabeça, que aparece para seduzir e engravidar moças ribeirinhas. Depois se transforma em boto, sumindo nos rios.

Para a pesquisadora Angélica Rodrigues, bióloga e uma das coordenadoras do BioMA, grupo de pesquisa da Ufra que trabalha com biologia e conservação de mamíferos aquáticos na Amazônia, a lenda é rica porque dá possibilidades, tanto no campo místico-religioso, quanto no campo da vivência com as comunidades locais.

E é uma das mais difundidas na Amazônia. “As lendas tem um componente que podem ter tanto uma visão negativa do animal, quanto positiva, dependendo do local. Há locais onde as pessoas gostam do boto porque ele interage positivamente, levando os peixes para os artefatos de pesca, ou interagindo, como é o caso do turismo, como ocorrem em Mocajuba e Cametá. Já em outros locais eles acabam causando prejuízos aos pescadores, destruindo redes de pesca, um animal que é visto como uma espécie que compete pelos peixes”, diz.

Foto: Reprodução/AMPA

Mas os botos também são foco do comércio de subprodutos místicos. “A mística que paira no universo das lendas ainda influencia muito, ainda tem muita demanda pela compra de produtos. Tanto na capital quanto no interior do estado é possível encontrar venda de pele, unguentos pra fins medicinais, amuletos. São produtos que não ficam tão à mostra, para evitar fiscalização, mas ainda existe muita procura. Os botos sempre estão ameaçados”, diz. Várias espécies de botos integram a categoria “vulnerável”, da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas. 

“E eles tem um papel importantíssimo na natureza, porque são sentinelas ambientais, a partir deles conseguimos mapear a saúde de um rio”, 

explica a pesquisadora.

O BioMA atua há mais de dez anos no estado, tendo como alvo as espécies de golfinhos de rios e peixe boi, a interação deles na natureza, papel ecológico e interação com humanos. A pesquisadora, que trabalha com etnobiologia, diz que é importante conhecer os saberes populares a respeito dos botos e outras espécies de mamíferos aquáticos. “Esse conhecimento pode subsidiar campanhas de conservação dessas espécies, especialmente as ameaçadas.
As nossas pesquisas são realizadas no rio Guamá, Tocantins e Tapajós e também na zona costeira paraense. Área que está sempre sob influencia de pressões antrópicas, como exploração de petróleo, minério, desmatamento, portos e outros impactos constantes que ameaçam as espécies. O que precisamos é de recurso para a pesquisa e para propor ações que melhorem o bem estar das populações e das espécies”, diz a pesquisadora.

Leia também: Entenda a diferença de comportamento entre os botos da Amazônia e se eles são mesmo “implicantes”

A Boiúna 

Segundo a lenda, a Boiúna é uma cobra grande que habita as profundezas dos rios amazônicos. Possui olhos gigantescos e brilhantes, atraindo os pescadores para depois afundar as embarcações.

Na Amazônia uma das serpentes existentes é a sucuri, também chamada de boiúna, sucuriju, anaconda, entre diversos outros nomes populares. “Essa serpente pode chegar a cinco metros ou mais, mas na literatura existem alguns registros de espécimes com mais de seis metros de comprimento. Ela se alimenta por constrição, se enrolando na sua presa e a impedindo de respirar”, explica a professora Annelise Batista D’Angiolella, zoóloga e coordenadora da Casa da Ciência, na Ufra Capitão Poço.

Segundo a professora, as sucuris até costumam ser encontradas durante o dia, mas são principalmente noturnas. E se alimentam de uma gama variada de vertebrados como peixes, aves, mamíferos (desde capivaras, pacas, antas, cervos) e também de outros répteis como jacarés. “Serpentes como a sucuri são muito fortes pois seus músculos são muito desenvolvidos. Imagine que esses animais podem se alimentar de animais grandes como cervos, bezerros e jacarés. E como engolem suas presas inteiras, precisam imobilizá-las bem”, explica.

E o homem não costuma fazer parte dessa dieta. “Ataques a humanos são raríssimos, os homens não são uma presa natural desse animal”, diz. Ao avistar uma sucuri, o conselho é simples: deixe-a em paz. 

“Esses animais não irão atacar a menos que se sintam ameaçados. Por isso é extremamente importante não tentar mexer no animal ou matá-lo. Se ela estiver parada, se afaste do local. Se ela estiver passando, apenas deixe-a passar”, 

alerta.

Foto: Reprodução/Instituto Butantan

Para evitar ser surpreendido por serpentes em uma residência é bom manter alguns cuidados, como ter o quintal limpo, sem entulhos ou lixo. “Mas é importante lembrar que se isso acontecer, é preciso entrar em contato com as autoridades competentes, como o Batalhão da polícia Ambiental, Secretaria de Meio Ambiente do seu município ou especialistas, para que pessoas devidamente capacitadas façam a retirada do animal e deem o devido destino a ele”, alerta.

A professora explica que as serpentes colaboram com o equilíbrio do meio ambiente pois se alimentam de inúmeros animais como ratos, lagartos, sapos, outras serpentes, lesmas (dentre outros) e também servem de alimento para inúmeros animais como aves e mamíferos. “Além disso, no caso de espécies peçonhentas, como a Jararaca, ainda ajudam na saúde humana, pois as toxinas dos seus venenos são utilizadas na produção de fármacos como o captopril, remédio brasileiro amplamente utilizado para controle da pressão arterial”, diz.

Sempre importante lembrar que corujas, cobras e botos são animais silvestres. Segundo a Lei Federal 9.605/98, conhecida como Lei dos Crimes Ambientais, praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos é crime, e a pena pode ser multa ou prisão.  

Leia também: Lendas amazônicas: Onde estão as cobras grandes da Amazônia?

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