Origem da vida: no que acreditam os povos indígenas?

A cosmologia indígena é rica, variada e dinâmica. Como enxergam o mundo define sua cultura, costumes e organização social.

Cosmologia – uma palavra que parece estar atrelada ao cosmos, ao “big bang”, ao estudo do espaço e das estrelas, às equações físicas que levaram o homem a lua. Claro, tudo isso faz parte da explicação científica para a existência, mas esta não é a única forma de se pensar o universo, de entender seu funcionamento.

Na realidade, cosmologia pode ser definida como ‘teorias de mundo’, sobre sua composição, sua origem (chamada de cosmogonia), seu espaço e orientação temporal. Normalmente as cosmologias têm diversas personagens, algumas sagradas, exotéricas, outras (como o próprio ser humano) mais materiais.

Devido à grande variedade étnica dos povos originários, seus universos são, também, muito diversos. Cada um destes sendo responsável por moldar os costumes, cultura e vivências destas populações. 

A origem do universo e seu funcionamento também tem versões partir da visão de mundo de algumas etnias indígenas da Amazônia.

Constelações da etnia tukano. Crédito: AEITY/ACIMET. Editoração gráfica: Renata Alves de Souza/Povos Indígenas do Brasil

Yanomamis – Omama, a entidade criadora

O povo yanomami recebeu grande atenção midiática em 2023, mas não por questões positivas. Esta etnia, que vive relativamente isolada, sofre há anos com a invasão de suas terras por garimpeiros ilegais e com o desmatamento de seu território. Apesar do destaque dado a estes pontos negativos, pouco se fala sobre a rica cultura deste povo. Como eles enxergam o mundo? No que acreditam? 

“Para o povo Yanomami, Omama é a entidade responsável pela criação e organização do mundo, ele criou a terra, as árvores, as montanhas e os homens e mulheres que aqui habitam”,

relata Daniela Gato, antropóloga e pesquisadora.

Abertura da Assembléia Geral Yanomami. À direita, o líder Davi Kopenawa (com Raimundo Yanomami). Aldeia Demini, 11/12/2000. Foto: Hervé Chandès/Povos Indígenas no Brasil

A colonização também influenciou na cultura dos povos originários, que explicam a interação do homem branco de sua própria maneira. Para eles, Omama é, também, a criadora do ‘homem branco’ (chamados de napü). Entretanto, este teria sido levado para as terras inférteis e frias da Europa. Por consequência, o homem branco passou a ter interesse nas terras Yanomami, por serem férteis e ricas em alimento, caça e pesca.

Estas variações na tradição ocorrem por conta do caráter vivido das culturas. A pesquisadora explica que as cosmologias são variáveis conforme novas informações sobre o mundo surgem. Isto ocorre em todas as tradições, não apenas nas de etnias indígenas, mas até na maneira ‘ocidental’. Por séculos, na Europa, acreditou-se que a Terra era plana, e que os planetas e o sol orbitavam a Terra por conta da tradição católica. Posteriormente, estas crenças se alteraram com novas evidências.

“A cosmologia Yanomami é muito vasta para ser resumida. Cada xapono (comunidade) possui seus mitos próprios e suas formas particulares de contar os acontecimentos, mas todos sempre envolvem a participação de Omama (ou Omawë) e a existência dos espíritos xapiripë, espíritos que habitam em tudo que existe, nas plantas, na chuva, nos rios, nos frutos e que se comunicam com os xamãs aconselhando sobre como cuidar e curar a terra e as pessoas”, comenta a antropóloga. 

Povos do Alto Rio Negro 

Os povos do Alto Rio Negro – cerca de 23 povos indígenas – tem inúmeras diferenciações entre si, entre as quais: línguas faladas, organização social e habitações. Algo que os une, todavia, é sua cosmologia compartilhada. 

“Todos se baseiam na mesma ideia de ‘criação de gente’ que tem origem na baia da Guanabara, no Rio de Janeiro, local miticamente conhecido como ‘lago de leite’. Com o mundo criado, o avô do universo (chamada de Yebá-buró pelos Dessana) resolveu criar seres humanos e foi lá, no lago de leite, onde surgiram as ‘gente de transformação’ que deram origem às pessoas”,

relata.

Uma festa de oferenda, chamada em Língua Geral de Dabucuri. Ilustração: Maurice Wilson (in S. Hugh-Jones, 1978)/Povos Indígenas do Brasil

Para estes ancestrais foram dados poderes específicos. Juntos, eles embarcaram em uma canoa mágica, com formato de cobra-grande, que ficou conhecida como “canoa da transformação”. Eventualmente, este povo, ao navegar pelo litoral brasileiro, adentrou a foz do Rio Amazonas, onde começaram seu processo de ‘criação de gente’.

“Surgiram os Yepahmasã [gente da terra] Tukano e os Umukomasã [gente do universo] Dessana e os demais. A ordem de criação, ou seja, quem foi criado ‘primeiro’ e quem foi criado ‘por último’ define uma hierarquia que compões as relações sociais entre os povos indígenas do Alto Rio Negro até os dias atuais. Por exemplo, os Tukano dizem ter sido criados primeiro e que seus ancestrais saíram da cabeça da cobra e, por isso, eles ocupam um local de prestígio e centralidade nas relações com os outros povos, enquanto os povos de língua Maku foram criados a partir do ‘rabo’ da cobra e, por isso, eles não possuem poder político em relação aos demais povos”, diz Daniela. 

A dinamicidade das culturas

Todas as culturas são passíveis de alteração, conforme novas perspectivas são apresentadas. No ‘mundo globalizado’, por exemplo, a cultura se altera na velocidade de um vídeo em rede social. 

Música, o que se gosta, o que não se gosta, personalidades admiradas, costumes, tudo isso é extremamente variável na contemporaneidade. 

“Assim como a ‘cultura’ é dinâmica, as cosmologias e mitos de criação (de universo, de gente, de leis sociais) também vão se alterando para abrir espaço a novos conhecimentos ancestrais e novas possibilidades de ver o mundo, isso não significa que a cultura ‘está morrendo’, pelo contrário, ela se renova de forma criativa e inventiva sobre uma mesma base comum. Omama e Yebá-buró vão ser sempre os deuses de referência para os povos que citei, respectivamente, os Yanomami e os Dessana, mesmo que a forma como a história é contada mude”,

finaliza Daniela.

*Estagiário sob supervisão de Clarissa Bacellar

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