Em 2017, a farinha de Cruzeiro do Sul alcançou uma conquista histórica ao se tornar o primeiro produto brasileiro derivado da mandioca a obter o selo de Identificação Geográfica.
Em 2017, a farinha de Cruzeiro do Sul, no Acre, alcançou uma conquista histórica, ao se tornar o primeiro produto brasileiro derivado da mandioca a obter o selo de Identificação Geográfica (IG). Todas as qualidades do alimento foram reconhecidas por meio de marca registrada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi), órgão federal ligado ao Ministério da Agricultura e Pecuária.
“O registro de Identificação Geográfica é concedido aos produtos que possuem notoriedade e fama junto aos seus consumidores. Dentro deste selo, temos a Identificação de Origem, que leva em consideração o ambiente onde os produtos são feitos, e a Indicação de Procedência, que é a tradicionalidade no modo de saber fazer, mesmo com o passar do tempo, como é o caso da farinha de Cruzeiro do Sul”, define Joana.
Durante dez anos, várias instituições governamentais e não-governamentais realizaram estudos, pesquisas e ações juntamente com os produtores para atestar os diferenciais e a regionalidade da farinha. Além de Cruzeiro do Sul, a certificação abrange os municípios acreanos de Mâncio Lima, Marechal Thaumaturgo, Porto Walter e Rodrigues Alves.
Há décadas, a farinha de Cruzeiro do Sul sofre com a pirataria. Produtos que sequer são feitos no Juruá se apropriam da fama e comercializam o alimento como se fosse da região. “Isso é muito ruim para nós e só traz prejuízo. Qualquer empresa faz uma embalagem, coloca o nome e vende como se fosse a nossa”, opina o produtor Manoel Nunes.
Detentora exclusiva do registro, apenas a Central de Cooperativas do Juruá está legalmente autorizada a utilizar a marca Farinha de Cruzeiro do Sul.
“Essa foi uma grande conquista para nós no combate à pirataria. Já estamos verificando a possibilidade de acionar na justiça quem continuar usando o nome indevidamente”,
admitiu a presidente da entidade, Maria José Maciel.
O que torna a farinha de Cruzeiro do Sul tão saborosa e especial?
Por toda a sua história, a farinha de Cruzeiro do Sul se tornou um verdadeiro patrimônio nacional. Para chegar até a mesa dos consumidores, o alimento percorre um longo processo. Desde o plantio da mandioca até o produto pronto para consumo são, aproximadamente, nove meses. A mágica acontece nas chamadas casas de farinha, onde todo o processo de feitio é concentrado. Um trabalho familiar, que ultrapassa gerações.
No Ramal do Pentecoste, zona rural de Mâncio Lima e uma das maiores comunidades produtoras do Juruá, os casais Marina Oliveira e Raimundo Batista, e Mírian Oliveira e José Batista se ajudam na farinhada, como eles chamam a produção de farinha. As irmãs e os cunhados estabeleceram entre si uma forma bem peculiar para arcar com a mão de obra.
“Essa mandioca vai render uns sete sacos. Se trabalhar somente duas pessoas, fica muito cansativo e não damos conta do serviço. Então, a gente chama eles [o casal] para nos ajudar a produzir a nossa farinha. Quando é a vez deles, a gente vem e ajuda com o nosso trabalho. É assim que a gente se paga”, exemplificou José Batista.
Após ser arrancada do solo, a mandioca é logo levada para a casa de farinha, onde é colocada em um equipamento chamado bolador. Nesta etapa, são retiradas a maior parte das impurezas, como o excesso de terra e as folhas. Em seguida, a raízes são descascadas manualmente e postas em reservatórios de água misturada com cloro para serem lavadas e evitar contaminação.
Do lado de dentro da casa de farinha, a mandioca passa pela primeira trituração, é prensada para a retirada da manipueira (líquido tóxico presente na raiz), é triturada novamente, peneirada, torrada no forno, peneirada pela segunda vez e, finalmente, levada para a secagem. Todo o processo leva, em média, mais de 30 horas.
A casa de farinha e a área de terra de 12 hectares destinadas ao mandiocal são compartilhadas por seis famílias. Entre os mais de 20 tipos de mandiocas plantados na região, a preferência deles é pela Branquinha e a Manso Brava. “São as melhores da gente trabalhar e as que rendem mais na hora da farinhada. Aqui é uma produção 100% familiar, de onde a gente sobrevive”, justificou Raimundo Batista.
Mas, afinal, o que faz a farinha de Cruzeiro do Sul tão saborosa e especial? Marina não hesita ao responder. “O nosso diferencial é fazer as coisas com amor e carinho. Essa farinha não é feita de qualquer jeito, temos todo um cuidado na hora de fazer, para que não fique uma farinha ruim. Muita gente produz pensando em quantidade. Nós preferimos a qualidade”, disse.
Ao ser questionado sobre o mesmo assunto, o presidente da Cooperativa de Produtores de Farinha do Vale do Juruá (Cooperfarinha), Sebastião Nascimento, o Tiãozinho, prefere manter o mistério. “É um segredo só nosso”, resumiu.
Para a pesquisadora Joana Leite, que acompanha a cadeia produtiva da mandioca desde 2000, o que torna a farinha de Cruzeiro do Sul única é o modo de preparo. “Temos esse produto no Brasil inteiro, mas os sabores, texturas e crocância são completamente diferentes, porque cada lugar faz do seu próprio jeito. Aqui no Acre, especialmente no Juruá, essa tradição de mais de um século, onde o processo de fabricação é praticamente o mesmo, e que é passado de pai para filho consolidou o modo de saber”, pontuou.