Entre o abandono e o apagamento: arquitetura moderna de Belém está desaparecendo, alertam especialistas

O Laboratório de Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica (Lahca) da UFPA tem analisado a obra do engenheiro e arquiteto Camillo Porto de Oliveira. São construções, reformas e ampliações produzidas entre as décadas de 1940 e 1970.

Além dos elementos materiais e técnicos, a arquitetura deve ser entendida como um artefato cultural humano, pois uma construção consegue indicar os contextos político, social e econômico de uma época. Provavelmente já se viu bens patrimoniais que deveriam ser preservados serem demolidos ou sofrerem adaptações para a construção de novos prédios. Em Belém (PA), nota-se o apagamento frequente de exemplares da arquitetura moderna, uma produção que se desenvolveu a partir dos anos 1940.

“Esses apagamentos se dão de várias formas: alterações bruscas em elementos diferenciais do edifício, ausência de manutenção adequada, abandono e até mesmo demolição. Cada um desses exemplares, tais como casas, edifícios comerciais ou escolas, narra fragmentos da história da cidade. Apagá-los é equivalente a silenciar importantes informações e índices socioculturais e econômicos sobre a Belém da segunda metade do século XX”,

informa Rebeca Dias, mestra em Arquitetura e Urbanismo.

A professora Celma Chaves – que pesquisa a arquitetura moderna em Belém desde 2009 -, Bernadeth Beltrão e Rebeca Dias, são autoras do artigo ‘A arquitetura moderna em Belém como objeto e documento de investigação: da invisibilidade ao reconhecimento’, que expõe os resultados parciais da pesquisa em andamento ‘Transformações na cultura arquitetônica em Belém entre 1940-1980’, desenvolvida no Laboratório de Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica (Lahca) da UFPA.

Neste artigo, as pesquisadoras analisaram obras modernas, mediante seus aspectos históricos e técnicos, e explicaram a problemática do apagamento da arquitetura e da falta de conhecimento da sociedade sobre o tema. Os projetos arquitetônicos analisados pelas pesquisadoras são projetos originais do engenheiro e arquiteto Camillo Porto de Oliveira, doados pelo engenheiro Antônio Couceiro, em 2016. Ao todo, segundo o artigo, está catalogado um conjunto de 121 projetos, entre novas construções, reformas e ampliações produzidas entre as décadas de 1940 e 1970. Entre elas, estão: o prédio da Secretaria Executiva de Transportes (Setran), a sede social do Clube do Remo e a residência Bittencourt.

“Camillo Porto de Oliveira foi o mais expressivo engenheiro e arquiteto do moderno em Belém. Além dos inúmeros projetos e obras construídas para famílias abastadas e órgãos públicos, ele foi um dos responsáveis pela criação do Curso de Arquitetura da UFPA, em 1964”, relata Celma Chaves.

Foto: Alexandre de Moraes

Obras privilegiavam a funcionalidade dos espaços

Na arquitetura moderna, destaca-se a racionalização construtiva. A ideia era projetar ambientes funcionais, que atendessem às exigências técnicas do momento e aos usos que as pessoas fariam, sem espaço para elementos decorativos vistos em períodos anteriores.

Entre as características das construções modernas, as autoras apontam o uso de linhas geométricas bem definidas, telhados em V, marquises, concreto armado e vidro, espaços internos fluidos e integração das obras com seu entorno, por meio do uso de transparências e jardins, conforme repertório usual na arquitetura moderna brasileira.

Além dessas características, cada região demandava particularidades. Por exemplo, a arquitetura moderna idealizada na Amazônia precisava se adequar ao clima local. “Gosto de pensar que Belém encontrou sentido exato para algumas soluções típicas da arquitetura moderna, exemplo, um brise-soleil, dispositivo vazado para iluminação e ventilação, comumente utilizado nas obras modernas, faz mais sentido numa realidade de clima quente e úmido. Outra característica da arquitetura moderna, a ideia de racionalizar, ou seja, otimizar as soluções, parecia fazer muito mais sentido numa economia fragilizada, como era o caso de Belém”, explica Rebeca Dias.

Enquanto, no século XX, as construções modernas eram desejadas, no século XXI elas sofrem um apagamento. Muitas dessas obras estão abandonadas, seja porque a manutenção é inviável, seja porque os novos modos de vida não se adaptam aos programas arquitetônicos dos imóveis, avaliam as autoras. Além disso, essas construções geralmente são bem localizadas, possuem boas dimensões e estão em terrenos amplos, atraindo empresas do setor imobiliário, comercial e de serviços. Dessa forma, as obras são demolidas ou modificadas para adequação de novos empreendimentos.

Tombamento não assegura preservação dos bens

Leis, fiscalizações, tombamentos e multas são alguns dos artifícios utilizados para enfrentar o processo de apagamento. Entretanto o artigo questiona se esses processos são suficientes para garantir a segurança de um bem patrimonial. Por exemplo, a Escola Municipal Benvinda de França Messias é tombada pela Fundação Cultural do Município de Belém (Fumbel), mas já passou por reformas que descaracterizaram suas formas originais. A doutoranda Bernadeth Beltrão avalia como falha a atuação do poder público em relação a essas obras, “tanto no que diz respeito à quantidade de profissionais na área técnica de solução projetual como nas áreas de cobrança e fiscalização, o que afeta a qualidade de atuação desses órgãos. Há um acúmulo significativo de bens que devem ser protegidos”.


De acordo com a professora Celma Chaves, muitos proprietários de imóveis de valor patrimonial ou passíveis de tombamento desconhecem esse instrumento de proteção, entendendo-o como prejudicial aos seus interesses. “Isso acaba levando à demolição dos imóveis ou à venda para agentes imobiliários, que, na maioria das vezes, descartam-nos para dar lugar a novos empreendimentos. Talvez falte o entendimento de que um imóvel tombado pode gerar benefícios”, completa.

O desaparecimento da arquitetura moderna está relacionado com a falta de informação da população sobre a história arquitetônica da cidade, pois, se as pessoas desconhecem a importância de uma construção, dificilmente elas vão preservá-la.

“Para solucionar esse problema, a educação patrimonial baseada na tríade conhecimento, reconhecimento e preservação pode ser um caminho. Assim como aprendemos, de maneira direta ou indireta, que a área turística de Belém é aquela com casarões e palacetes, também podemos aprender o valor histórico e turístico das obras modernas”, 

defende Rebeca Dias.

Essa proposta já foi oferecida aos órgãos que lidam com o patrimônio pelo grupo de pesquisadores do Lahca e do coletivo Cultura Arquitetônica, Amazônia e Modernidade (CAAM).

A educação patrimonial pode ser promovida pela esfera pública, pela iniciativa privada ou por entidades não governamentais. Um bom exemplo desse tipo de iniciativa é o site Morar Moderno, que disponibiliza um acervo com informações, fotografias e documentos sobre as residências modernas existentes em Belém. O site, criado pelo CAAM, é um projeto premiado com recursos da Lei Aldir Blanc e, segundo Bernadeth Beltrão, visa pensar, pesquisar, produzir e disseminar conhecimento sobre o saber construtivo paraense moderno como parte da cultura local e nacional.

*Por Bruno Roberto, do Jornal Beira do Rio/UFPA edição 165

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