Casa comunitária dos Moxihatëtë — Foto: Guilherme Gnipper/Hutukara/Divulgação
Provavelmente, cada um de nós compartilha determinadas representações, ora positivas, ora negativas, a respeito dos chamados “indígenas” ou “índios”, termo considerado pela maioria dos povos e suas organizações como pejorativo, sobretudo quando pronunciado por aqueles que não pertencem a esses grupos. Através das instituições que nos forjam como seres sociais (como a família e a escola), nós aprendemos, inculcamos e incorporamos práticas, ideias, valores e visões de mundo. Isso inclui a maneira pela qual imaginamos os povos indígenas ou povos originários, isto é, aqueles que estavam pelas bandas de cá antes de Colombo, Cabral ou Hernández. Façamos um exercício. Fechemos os olhos. Quais são as imagens que passam pela sua cabeça quando ouvem a palavra “indígena”?
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Para alguns, saltará aos olhos a figura de Peri, cujos amores foram narrados pelo escritor José de Alencar (1829-1877) em um livro amplamente lido nas escolas brasileiras: O Guarani (1857). Posteriormente, em 1870, a imagem desse índio heroico e idealizado inspiraria uma ópera do compositor Antônio Carlos Gomes. No século XX, Peri chegaria às salas de cinema três vezes: em um filme mudo de 1912; um filme de 1979 dirigido por Fauzi Mansur; e um filme dirigido por Norma Bengell em 1996.
Assim como Peri, vocês devem lembrar como as violências e os abusos sexuais perpetrados pelos colonizadores europeus contra mulheres indígenas apareceram de maneira jocosa, apimentada e sacana no filme Caramuru – a invenção do Brasil (2001), dirigida por Guel Arraes, que narra as supostas relações amorosas entre o náufrago português Diogo Álvares Correia (1475-1557), que viveu entre indígenas da costa brasileira. A nudez aqui seria sinônimo de “pureza” ou “volúpia”? A suposta “disponibilidade” das mulheres indígenas, assim como das mulheres negras escravizadas, permeiam as páginas de Casa-grande & senzala (1933), livro do sociólogo Gilberto Freyre, defensor da “democracia racial”, mito segundo o qual as relações étnico-raciais no Brasil seriam amistosas e harmoniosas.
Mas continuemos o nosso exercício. Os cinéfilos também devem se lembrar do filme The Mission (1986), dirigidos por Roland Joffé. A missão implementada pelo padre jesuíta Gabriel e pelo colonizador e comerciante de escravos Rodrigo Mendoza, interpretados por Jeremy Irons e Robert De Niro respectivamente, é um bom exemplo das violências que foram perpetradas contra os indígenas durante as colonizações das Américas. Naquele período, esses povos eram concebidos como “sem alma”, razão pela qual deveriam ser evangelizados. Para que deixassem de ser “selvagens”, deveriam ser “civilizados”, tornando-se, assim, súditos da Coroas.
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No século XX, não haverá tantas modificações nesse imaginário, sempre orientado por uma pretensão de superioridade moral e material. A memória de alguns não deixará escapar a minissérie Mad Maria, baseada no romance de Márcio Souza. Trata-se da história da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, na Amazônia. Para a minha avó, aqueles índios que estavam atravancando o caminho do “progresso” e do “desenvolvimento” eram, de fato, muito “preguiçosos” e deveriam trabalhar, ao invés de se rebelarem.
Ultrapassando as páginas dos livros e as telas, essas imagens orientaram as políticas indigenistas de diferentes países latino-americanos, isto é, as ações que foram desenhadas e executadas pelos Estados nacionais para “proteger” os povos indígenas. No Brasil, durante o governo de Nilo Peçanha (1867-1924), foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1910 – depois, seria reduzido para SPI. Esse nome é bastante sugestivo. Cabia ao órgão indigenista localizar e atrair os “silvícolas” para que o contato (forçado) fosse realizado. Atraía-se por meio de presentes e bugigangas. Vistos como “bravos”, os indígenas precisavam ser “pacificados”. No entanto, a célebre frase do marechal Cândido Rondon, patrono da política indigenista brasileira – “morrer, se preciso for; matar, nunca” –, não impediu que milhares de indígenas fossem dizimados por epidemias e balas.
Mas como isso era feito? Na verdade, adotava-se praticamente o mesmo procedimento do período colonial: os indígenas eram retirados de suas terras e eram confinados em determinadas porções territoriais (na colônia, permaneciam nas missões ou aldeamentos; no período republicano, nos postos de atrações ou fazendas agrícolas). Essa prática continuou sendo adotada após a extinção do SPI e a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1967, em plena ditadura militar. Assim, enquanto os estados expandiam suas fronteiras, liberando as terras indígenas para a exploração econômica, os indígenas eram sedentarizados, de modo que, gradativamente, fossem “abandonando” suas identidades étnicas e transformando-se em cidadãos nacionais. O indígena era visto, portanto, como um ser transitório, isto é, era aceito como um elemento constituidor da nação, mas deveria ser integrado e assimilado à sociedade nacional.
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As noções de assimilação e integração – atenção com as palavras! – estavam presentes na Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957. Entenderam a relação entre a OIT e a população indígenas? Sim, eles eram vistos como potenciais trabalhadores, uma vez que, ao serem assimilados e “aculturados”, seriam proletarizados. Essa orientação somente seria modificada no dia 27 de junho de 1989, quando a OIT promulgou a Convenção 169, fruto das lutas dos povos indígenas pela garantia de seus direitos. Esse documento, do qual o Brasil é signatário, tem como base a diferença e a autodeterminação. Parafraseando meu amigo Lévi-Strauss, os povos indígenas têm o direito “de ser o que se é”, mantendo e reproduzindo suas línguas, culturas, costumes, crenças, configurações familiares, laços de parentesco, organizações políticas e tomando as rédeas de suas vidas.
Paralelamente à aprovação da Convenção 169, promulgada pelo governo brasileiro em 2004, o ordenamento jurídico do país passou a contar com uma dimensão pluriétnica a partir da Constituição de 1988, que incorporou os direitos dos povos indígenas nos artigos 231 e 232. Quem tiver curiosidade, vale procurar o vídeo do discurso de Ailton Krenak – que se tornou ‘imortal’ da Academia Brasileira (leiam os livros dele!) –, na assembleia constituinte. Esse registro ajuda a ilustrar que, apesar das atrocidades, os povos indígenas se organizaram politicamente e resistiram (e resistem) às investidas de fazendeiros, garimpeiros, missionários e agentes estatais. Conseguiram, assim, participar dos debates que balançaram a Praça dos Três Poderes durante o período de redemocratização.
Em seu artigo 3º, inciso IV, a Constituição explicita que um dos objetivos fundamentais da República brasileira consiste em “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Eis aí o direito à diferença. Nos artigos 215 e 216 do texto constitucional, encontram-se os direitos culturais aos grupos formadores da nação, como indígenas e afro-brasileiros, de modo que “cultura”, nesses dispositivos, corresponde à perspectiva antropológica, ou seja, aos modos de ver o mundo, sentir e agir – embora o artigo 216-A refira-se à “cultura” enquanto “manifestações artísticas”.
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Assim como a Convenção 169, a Constituição de 1988 também rompeu com a lógica da tutela. Em outras palavras, rompeu com a ideia segundo a qual os indígenas seriam “incapazes”, “infantis”, “ingênuos”, “bravos” ou “bons selvagens”. A ideia dos colonizadores, missionários e indigenistas segundo a qual os indígenas precisavam e deveriam ser “guiados”, não foi contemplada nessas legislações. Não obstante, como tenho argumentado em minhas pesquisas, me parece que o colonialismo está a todo vapor. Isso porque algumas práticas e discursos sobre os povos indígenas continuam se perpetuando cotidianamente. As imagens que vimos acima ainda são reproduzidas; muitas vezes, por nós mesmos. Penso que são imagens de controle, termo cunhado pela socióloga Patricia Hill Collins para se referir às imagens estereotipadas que fazem parte de uma ideologia de dominação. A depender dessas imagens exotizantes, os indígenas deveriam estar presos em um tempo específico (a colonização) e em um espaço delimitado (a floresta). Daí o curto-circuito nas cabeças do senso comum quando se deparam com indígenas em contexto urbano ou em situação de deslocamento forçado. Seriam “nômades”?
Para contribuirmos para que essa engrenagem seja rompida, a proteção dos povos indígenas não pode estar apartada da promoção da autonomia e do respeito à autodeterminação. Tampouco se deve esquecer do direito à consulta prévia, livre e informada. Se a Antropologia tem alguma coisa a nos ensinar é que a minha visão de mundo, as minhas formas de sentir, agir e pensar são apenas algumas entre tantas outras possibilidades de ser e estar no mundo. O trabalho com povos indígenas deveria nos ensinar que, ao nos abrimos para diferentes alteridades (os Outros), constatamos o óbvio: o mundo é plural e culturalmente diverso. Temos muito a aprender com as populações com as quais trabalhamos. Mas, para que o caminho do aprendizado esteja aberto, precisamos nos desvencilhar de velhas imagens mofadas e carcomidas.
*Conteúdo publicado originalmente pela ACNUR Brasil. Leia o conteúdo AQUI.