Os ranchos funcionavam como uma cozinha construída no quintal, separadamente da casa e com uma arquitetura ancestral, portando um teto sustentado por caibros de árvores nativas, coberto por palhas de palmeiras também nativas.
Os ranchos, como esse da fotografia que fiz recentemente em minha casa na comunidade de Araí, no meio rural de Urumajó, no nordeste paraense, funcionavam como uma cozinha construída no quintal, separadamente da casa e com uma arquitetura ancestral, portando um teto sustentado por caibros de árvores nativas, coberto por palhas de palmeiras também nativas. Varas finas davam concretudes as suas paredes.
Com piso de chão batido e mobiliado por uma mesinha no centro, feita da árvore de açaí. Dois bancos, um em cada lado da mesa, um fogão de barro e a lenha ao lado de um jirau com um pote e um alguidar.
Em outrora, os ranchos marcavam a geografia dos quintais das comunidades do nordeste paraense, como na vila de Araí.
Falo no passado, porque faz algum tempo que os ranchos encontram-se em um contínuo processo de apagamento e aqueles que têm resistido portam uma arquitetura moderna, cuja alvenaria substitui os materiais nativos que em outrora compunham sua feitura.
Mas, apesar disso, eles ainda insistem em continuar “povoando” as paisagens e geografias dos quintais das comunidades, onde funcionam, antes de tudo, como instituições socioalimentares, como lugares entremeados de linguagens que, ao mesmo tempo que falavam de comidas, de comensalidades e sociabilidades, também figuram marcas de ancestralidade, de heranças dos povos da floresta, conforme reconheceu Silva (2005), na obra Farinha, feijão e carne seca, ao afirmar que, sob influência dos costumes indígenas, a Casa – grande construía cozinhas do lado de fora da casa, “[…] afastada das habitações íntimas […], (p.40). A autora se refere a um “[ …] “puxado” ao lado externo da cozinha, que servia tanto para abrigar o jirau como para preparar a comida na trempe. “[…] A cozinha limpa (interna) para o preparo de doces finos e a cozinha suja (externa), para os preparo das comidas cotidianas, ligam-se ao quintal da casa. Nesse complexo servil […] as indígenas e africanas se encontravam comandadas pelas mulheres brancas, (p. 40).
Por fim, a autora assevera que foi nesse cenário, da cozinha da Casa – grande, aliada ao rancho no quintal e entremeadas por encontros de culturas alimentares (dos povos da floresta com povos africanos e europeus) que novos temperos, sabores e pratos foram forjados.
Portanto, os ranchos de Araí e quiçá das demais comunidades amazônidas performam historicidade e ancestralidades que falam em nós e sobre nós que povoamos esses territórios nortistas e amazônidas, (PICANÇO, 2021).
Referências
PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Comida Cabocla; uma questão de identidade na Amazônia: desde uma perspectiva fotoetnográfica. Belém: Paka-Tatu, 2021.
SILVA, Paula Pinto. Farinha, feijão e carne-seca: um tripé culinário no Brasil colonial. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005.
Sobre o autor
Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).
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