O Círio de Nazaré, no Pará, é um fenômeno com especificidades e complexidades que escapam as dimensões religiosas, atravessando e agregando outras manifestações.
Então, dia 09 de outubro de 2022, após dois anos de suspensão, por conta da pandemia da Covid-19, a comunidade católica de Belém, do estado do Pará e de outros lugares do Brasil e do mundo reúne-se outra vez para celebrar o Círio de Nazaré, o qual é apontado como o mais importante evento religioso da Amazônia, “do Brasil e do mundo católico” (Maués, 2016, p. 221). É um fenômeno sine qua non para a fé dos católicos paraenses, mas com especificidades e complexidades que escapam as dimensões religiosas, atravessando e agregando outras manifestações, das quais, talvez a igreja e a religião sozinhas não deem conta de explicar.
Falo da pluriversidade de festas que ocorrem nas diferentes territorialidades belenenses, como a festa da Chiquita, as festas das aparelhagens, as festas das ruas e particularmente as festas nos quintais, nos pátios, nas cozinhas e nas mesas das casas de Belém, as quais não existem apartadas do Círio, tampouco do almoço, cujos pratos principais são o pato no tucupi e a maniçoba, iguarias feitas ad hoc, para serem servidos nesse banquete sacrifical (Maués, 2016). Seus ingredientes centrais são; tucupi (líquido amarelado, extraído da mandioca) e maniva (nome dado pelos paraenses à folha da mandioca). (Picanço, 2018).
É importante informar as leitoras e aos leitores sobre a existência, aqui na coluna Cultura Alimentar, a respeito de um texto, no qual discorro sobre a importância da maniçoba como comida sagrada do almoço do Círio. Assim, neste artigo tratarei sobre o lugar que o pato no tucupi ocupa no almoço do Círio.
A feitura do tucupi para o almoço do Círio
A priori, se faz necessário esclarecer que este artigo é um recorte da minha Tese de doutoramento, a qual tem como objeto de estudo a vida social da mandioca. Portanto, os escritos aqui resultam basicamente de observações diretas durante incursões em campo, realizadas nas cidades de Belém, de Ananindeua e na comunidade rural de Taiassuí, no município de Benevides, conforme descrevo no que segue.
Então, durante minha empreitada doutoral acompanhei o processo de produção de tucupi empreendido por Marcelo Santana, que é morador de Ananindeua, cidade que faz fronteira com Belém. Marcelo é proprietário de uma pequena fábrica artesanal de tucupi, localizada no quintal de sua casa onde trabalha desde a década de 1990. As técnicas utilizadas para o beneficiamento da mandioca para a tiragem do tucupi são artesanais e segue a seguinte dinâmica:
O processo de produção do tucupi não é muito complexo, e aqui a gente trabalha de maneira bem rústica ainda, usando o tipiti, ainda não usamos a prensa, que é uma técnica mais moderna. A primeira fase do processo começa com o descascamento da mandioca, manualmente com o terçado. Depois disso, a gente lava a mandioca em uma caixa d’água e depois coloca ela em uma masseira, ou gamela, onde ela é ralada na máquina. Esta etapa é feita mecanicamente, a mandioca é ralada no catitu, que é a máquina que a gente usa pra ralar a mandioca. Depois de ralada, a mandioca se transforma em massa e aí a gente coloca a massa em outra caixa d’água, onde acrescenta um pouco de água e depois coloca a massa no tipiti, que é colocado na prensa, onde o tucupi é retirado da massa. Depois disso, o tucupi vai pro processo de maturação, que é quando ele boia. O processo de maturação dura mais ou menos 16 horas, que é o tempo que a goma senta e o tucupi sobe. Se isso não acontecer, o tucupi não presta. Se retirar o tucupi antes dele boiar, ele não serve, porque além de retirar a goma do tucupi, é nesse processo que o veneno é retirado dele. Porque a mandioca tem um ácido que a gente chama de veneno, mas que na verdade é o ácido cianídrico. Depois da maturação a gente separa o tucupi da goma e ferve a lenha por mais ou menos 20 a 30 minutos com alho Chicória e alfavaca e sal. Nessa fervura o resto do veneno é retirado de vez e o tucupi fica pronto pra ser consumido (relato de Marcelo Santana).
O processo de feitura do tucupi descrito por Marcelo pode ser observado nas imagens que seguem:
O tucupi produzido por Marcelo é comercializado em uma banca da família, localizada na feira da Cidade Nova IV, em Ananindeua.
Segundo Marcelo, o trabalho com o tucupi dura o ano inteiro, porém, durante a quadra nazarena, (Quadra nazarena diz respeito ao tempo que os paraenses de Belém dedicam às coisas do Círio. Normalmente esse tempo se inicia quinze dias antes e perdura por mais quinze dias depois do segundo domingo de outubro, totalizando trinta dias.), especialmente nos 15 primeiros dias que antecedem o Círio, a produção cresce consideravelmente. Fora dessa época, ele produz e vende em média 300 litros de tucupi em um mês; nos quinze dias que antecedem o Círio ele produz e vende até 2.100 litros.
Marcelo relatou que em outrora produzia e vendia muito mais. Segundo ele, a redução no volume da produção e venda tem sido ocasionada pela chegada das grandes redes de supermercados na cidade, que passaram a comercializar o tucupi. “O supermercado usa o cartão de crédito e nós não. Isso facilita a compra lá. Acabou tirando os fregueses da gente”.
Dito isso, importa dizer que a mandioca que dá concretude ao tucupi produzido e vendido por Marcelo é comprada diretamente do produtor, no meio rural do município de Acará, que está localizado a aproximadamente 100 km de Belém
Assim como na fábrica do Marcelo, acompanhei a produção de tucupi na feira do Ver-o-Peso, lugar que acolhe uma pequena cooperativa que agrega fazedores de tucupi. Nesse lugar, a mandioca é transformada no líquido amarelado, bem “aos olhos” dos fregueses, conforme mostrado nas imagens abaixo.
Antes de continuar, considero importante observar que, as negociações em torno da venda e compra do tucupi no contexto das feiras de Belém “[…] são regidas por tratativas cujos sujeitos que as protagonizam são respectivamente fregueses e não clientes. E é exatamente nessa condição de ser freguês que reside a capacidade do fenômeno de se configurar em relações de consumo que não se findam em negociações meramente mercantis. Ao contrário, são práticas eminentemente culturais que desempenham papel decisivo na construção e estreitamento de laços sociais, assim como no enfrentamento de mudanças, ou na criação de permanências, por entre os interstícios da modernidade e dos contextos urbanos” (Picanço, 2017, p. 310), como no caso aqui tratado.
Além dessas primeiras experiências, também tive o privilégio de acompanhar a feitura de tucupi em Taiassuí, que é uma comunidade rural que tem como base de sustentação o cultivo de roça de mandioca. Praticamente todos os habitantes do lugar se ocupam dessa atividade. Dentre eles se encontra Denys Rodrigues, que é proprietário de um retiro, ou seja, uma casa do forno que funciona como abrigo de todos os materiais necessários à produção de farinha de mandioca, tapioca, beiju e, principalmente, de tucupi.
Além de proprietário do retiro, Denys também produz suas próprias roças de mandioca, que, segundo ele, são plantadas em três ciclos diferentes: a roça para a retirada da maniva para a feitura da maniçoba é plantada seis meses antes da quadra nazarena; já o plantio da roça para a feitura do tucupi ocorre um ano e meio, e a roça para feitura de farinha um ano. De acordo com Denys, esse longo tempo é necessário para que a mandioca possa concentrar maior quantidade de tucupi: “quanto mais velha a mandioca, mais ela tem tucupi e mais concentrado ele é”.
Então, a primeira etapa do processo de feitura do tucupi diz respeito à colheita ou, como falam os produtores, à “arrancada” da mandioca da terra. Depois de colhida a mandioca é transportada pelos produtores até a casa do forno, conforme indicam as imagens.
Na casa do forno, depois de raspada e lavada a raiz é triturada no catitu. É a partir do processo de trituração que ela deixa de ser mandioca propriamente dita e se transforma em massa de mandioca que, ao ser misturada com água, fornece o tucupi. Diferentemente da técnica utilizada pelo Marcelo, no retiro de Denys não se utiliza o tipiti para a produção do tucupi. A massa é armazenada em pequenas quantidades dentro de sacos e, em seguida é amassada manualmente em movimentos fortes e contínuos até que o líquido amarelado seja extraído por entre as finas fissuras do saco. Em seguida, o tucupi é distribuído em grandes caixas para o processo de maturação. Ali permanece até a manhã do dia seguinte, quando é transportado para as panelas que imediatamente são assentadas sobre o fogo a lenha, até que fervam por aproximadamente 30 minutos.
Durante o tempo da quadra nazarena, o trabalho no retiro se intensifica de tal maneira que Denys chega a produzir em média 1.300 litros diários.
Importa aqui dizer que toda a produção do retiro é comercializada pelo próprio Denys que vende, ora no atacado para os fregueses revenderem em suas bancas nas feiras de Belém e região metropolitana, ora comercializa em sua própria banca na feira do produtor rural, que acontece todos os sábados, lá na Feira da 25. Durante a quadra nazarena, a feira do produtor muda a sua dinâmica, funcionar desde a quarta-feira até o domingo do Círio.
Nas próximas laudas, tratarei de outra fase na trajetória da mandioca, a saber: já como tucupi, ocupa lugar de destaque nas panelas, dando concretude e sabor ao pato no tucupi; e, nas mesas das donas de casa, na condição de alimento fulcral do almoço do Círio.
Feituras do pato no tucupi para o almoço do Círio de Nazaré
Durante a quadra nazarena Belém é tomada pelo cheiro que exala das panelas que fervem o tucupi, que é o principal ingrediente do pato no tucupi, o qual, junto a maniçoba, constitui-se num dos pratos mais importantes do almoço do Círio. Assim como a maniçoba, existem maneiras diferentes de fazê-lo.
O tucupi requer um tempo menor de cozimento, com regularidade apenas alguns minutos, entre meia e uma hora. Ele é o último a se juntar ao pato e aos outros condimentos (a gosto) no interior da panela. É importante saber que existem diferentes modos de saber fazer a iguaria e essas diferentes maneiras de fazê-la correspondem…
“[…] às modalidades da ação, às formalidades das práticas […] cotidianas, ancoradas por táticas desviacionistas que não obedecem uma lei única do lugar. Contrariamente, manipulam, alteram e produzem outros modos de fazer. Essas operações “[…] se multiplicam com a extensão dos fenômenos de aculturação, ou seja, com os deslocamentos que substituem maneiras ou “métodos” de transitar pela identificação com o lugar. Isso não impede que corresponda a uma arte muito antiga de fazer com”. (Certeau 1998, p. 93).
Então, descrevo no que segue, as maneiras como dona Fátima, moradora de Belém e dona Ana, residente em Ananindeua, na região metropolitana de Belém, ambas católicas e devotas da Santa, costumam fazer a iguaria para o almoço do Círio.
Dona Fátima lava os patos já cortados com limão e depois de refogá-los no azeite e alho, junto aos demais temperos, assa-os no forno. Depois de assados, banha-os no tucupi e ali permanecem por toda a noite
de sábado. Do mesmo modo ela faz com o jambu que, depois de levemente cozido é banhado no tucupi, permanece ali, também durante a noite. No dia seguinte, domingo pela manhã, bem cedo, coloca o pato para ferver no tucupi e, depois de aproximadamente 30 minutos, apaga o fogo e vai se juntar aos milhões de peregrinos que, junto com ela, acompanharam a procissão do Círio. Após retornar do evento, junta o jambu ao pato e os ferve por alguns minutos antes de servi-lo.
Dona Ana faz seus patos da seguinte maneira: após cortá-los e lavá-los com limão, os refoga ao alho e azeite, misturando-os com os demais condimentos que, juntos são colocados na panela de pressão para uma leve fervura e, depois são levados ao forno para assar. Enquanto os patos assam, dona Ana junta ao tucupi a chicória e a alfavaca e os leva ao fogo, deixando-os ferver por aproximadamente 30 minutos. Após esse tempo, os patos, já assados, são mergulhados no tucupi e ali ficaram fervendo por mais uns 15 minutos, tempo necessário para finalizar a feitura do pato no tucupi que, assim como a maniçoba, são servidos com acompanhamento de arroz branco, farinha d’água, pimenta queimosa e jambu. Portanto, é desse processo de cozimento que Belém “cheira” a maniçoba e a tucupi durante a quadra nazarena.
Então, eis que chegou o dia 9 de outubro de 2022, segundo domingo, dia considerado pelos belenenses católicos como o mais importante de todos; dia em que Belém é, definitivamente, tomada pelo “espírito nazareno”. É dia do Círio de Nazaré. Dia de fazer e pagar promessas, dia no qual o povo se mistura em num cortejo sacrificial que reúne milhões de pessoas, as quais logo após o encerramento da missa na Praça Santuário em frente à Basílica de Nazaré se dispersam para se juntar em outros lugares, desta vez para festejar e comer com os amigos, vizinhos, parentes e familiares no almoço do Círio, evento que assegura lugar privilegiado para a mandioca, a qual se presentifica como iguarias fulcrais e sagradas desse banquete sacrificial.
De tudo isso resulta que o almoço do Círio é o único lugar de Belém onde a mandioca se singulariza ao ser retirada de lógicas mercadológicas e elevada a outro plano: do sagrado.
Conclui-se, por tanto, que o Círio de Nazaré e mandioca figuram duas das mais relevantes expressões êmicas do povo paraense e ocupam lugar conspícuo na vida daqueles que por lá habitam, especialmente quando chega o segundo domingo de outubro, dia em que Belém encontra-se tomada pelo “espírito nazareno” que envolve a cidade e as pessoas, dispondo-as numa atmosfera que não se manifesta em outros tempos pela cidade.
É nesse contexto de festa, celebração e fé que a mandioca performa o almoço do Círio, diferenciando-se, substancialmente, daqueles bens de consumo que, com regularidade, são encontrados nas feiras, nos mercados, nos supermercados e nas barracas dispostas pelas ruas de Belém. Nesse tempo sagrado, mudanças profícuas são operadas no ciclo ritual da mandioca, tornando-a uma coisa singular e, quiçá, sacralizada (Appadurai, 2008; Kopytoff, 2008), ao converter-se em iguarias, pato no tucupi e maniçoba, feitas ad hoc para o almoço do Círio, funcionando como comidas que sustentam a fé, a alma e os laços sociais daquela gente católica, amazônida, belenense e paraense.
Referências
APPADURAI, Arjun. Introdução: mercadorias e a política de valor. In: A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. (Org). APPADURAI, Arjun. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 15-88.
CERTEAU, de Michel. A invenção do cotidiano: a arte de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990.
KOPYTOFF, Ygor. A biografia cultural das coisas: mercantilização como processo. In: A vida Social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. (Org). APPADURAI, Arjun. Nitéroi: Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008, p. 89-120.
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Almoço do Círio: um banquete sacrificial em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré. Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 36 (2): p. 220-243, 2016. Disponível em: www.scielo.br.
PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Bom para vender, bom para comer, bom para se ver: um olhar por entre as coisas de comer nas ruas e esquinas da Grande Belém. INTRATEXTOS, Rio de Janeiro, v. 8, n.1, p. 308-313. 2017. Disponível em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/intratextos.
PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pelas trajetórias da mandioca no e além do nordeste paraense. Belém: Paka-Tatu, 2018
Sobre o autor
Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).
*O conteúdo é de responsabilidade do colunista.