A nuvem que nos perseguia

Logo no início dos trabalhos, tivemos uma visão surpreendente de uma nuvem movendo-se no mesmo sentido que o nosso barco.


Às margens do Rio Madeira, o barco Veloz sob a nuvem. Foto: Bianca Darski

*Por Conexões Amazônicas – contato@conexoesamazonicas.org

Quando escrevemos um projeto para realizar uma pesquisa científica, temos que abstrair certas coisas que podem acontecer se o projeto for aprovado. Pesquisas que demandam trabalho em campo, por exemplo, são recheadas por histórias de situações completamente inesperadas. No mundo da ciência, quem gosta de fazer trabalho de campo, assume uma série de riscos sem fim. Não se trata de não pensar sobre os riscos, mas de ter coragem, criatividade e flexibilidade para lidar com o cenário que vamos encontrar. No meu caso, foi uma nuvem.

Durante muito tempo em minha carreira, realizei trabalho de campo em florestas, fazendo trilha, subindo e descendo morros e pirambeiras, no sol, na chuva, a pé, de carro, de barco, passando por pontes improvisadas, atolando os pés na água e na lama. Tudo para poder ver e ouvir as aves na Mata Atlântica e na Amazônia. Estes dois biomas são conhecidos por suas chuvas intensas e elevada umidade. E é principalmente a quantidade de água presente nestas florestas que as torna tão diversas, sobretudo em espécies de aves.

Em 2011, fiz parte de uma expedição de campo no Rio Madeira, juntamente com uma equipe de pesquisadores e técnicos do Museu Paraense Emílio Goeldi e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. Nosso objetivo era catalogar espécies de aves, plantas, formigas, peixes e solos às margens (nas várzeas) do Rio Madeira. Para isso, percorremos cerca de 800 km em um barco ao longo de 40 dias.

Nosso ponto de partida foi a cidade de Porto Velho (RO) e navegamos até a foz do Rio Madeira, no encontro com o Rio Amazonas. Paramos em 16 locais, sendo dois dias em cada local para fazer o trabalho de campo. Para a pesquisa sobre as aves, usamos dois métodos: censo e captura. No censo, anota-se todas as espécies que são observadas em um dado local e a identificação pode ser tanto visual, quanto sonora. Para a captura, utilizamos armadilhas chamadas de rede de neblina, que é um método semelhante à pesca com rede ou malhadeira. Escolhemos ir nos meses de agosto e setembro porque é o período do ano em que as chuvas são escassas na região. Mas, como dizem, “no inverno amazônico chove o dia todo, já no verão chove todo dia”.

Logo no início dos trabalhos, tivemos uma visão surpreendente de uma nuvem movendo-se no mesmo sentido que o nosso barco. Tão logo armamos as armadilhas de captura de aves, caiu um toró. Chuva forte, daquelas de “pingo de um litro”. Na hora, o jeito foi correr para fechar as redes e eventualmente tirar o que tivesse caído na armadilha, podendo ser aves, insetos, mas também folhas e pedaços de galhos. Tudo isso no meio de um temporal. A chuva costuma ser rápida durante o verão amazônico, mas também pode ser volumosa e com ventos fortes. Em menos de uma hora depois parecia que nada havia acontecido. Céu azul e sol. Com as armadilhas novamente abertas, diversos passarinhos e outras aves acabaram caindo nas redes. Pensei: “valeu a pena a chuvarada”.

No caminho do próximo local onde iríamos realizar o trabalho, mais uma vez estava lá a nuvem. E o cenário se repetiu de forma parecida, tudo muito rápido, quase no mesmo horário: redes armadas, vento e chuva forte, corrida para fechar as redes, corrida para abrir, redes cheias de passarinhos, insetos, galhos e folhas. A rede de neblina precisa ser o mais invisível possível para que uma ave seja capturada. Por isso, é importante tirar todas as folhas e galhos que ficam presos. Isso é importante também para facilitar o processo de abrir e fechar as redes, pois os nós se criam com facilidade. Ou seja, um vento e/ou chuva forte no meio da mata gera um processo trabalhoso. E isso se repetiu ao longo de alguns dias.


Quem trabalha com captura de aves sabe que, às vezes, nos deparamos com indivíduos que têm garras e bicos afiados. Durante o trabalho no Rio Madeira, encontramos com frequência uma ave bastante desafiadora para manipular em uma armadilha de rede de neblina: a mãe-de-taoca (Phlegopsis nigromaculata). Dentre as características desta espécie, está o hábito dos indivíduos andarem em grupos ou em pares, geralmente próximos ao chão da floresta, além da presença de pernas fortes, unhas e bico afiados.

As pernas fortes, provavelmente, são importantes no seu papel de seguidoras de formigas-de-correição (também chamadas de taocas), pois a mãe-de-taoca se alimenta destas formigas que andam juntas em milhares de indivíduos. Possivelmente, logo após a chuva, as formigas também estavam mais ativas, o que deve ter alertado grupos de mãe-de-taocas. O resultado desta combinação foram vários dias com as marcas de unhadas e bicadas nas mãos.


Indivíduo de mãe-de-taoca (Phlegopsis nigromaculata) capturado pelo método de rede de neblina nas várzeas do Rio Madeira. Foto: Bianca Darski

A chuva é um elemento importante quando decidimos fazer um trabalho de pesquisa sobre aves (e certamente isso se aplica a outros grupos de animais). Isso porque os “penudos” ficam mais quietos e parados quando está chovendo. Desse modo, a detecção das espécies pelo pesquisador em campo fica comprometida, seja pelo canto, visualização ou captura das aves. O horário que decidimos ir a campo também é fundamental, porque estes animais têm hora para começar a cantoria. Se você perder a hora de maior atividade, por exemplo, no início da manhã e no fim da tarde, infelizmente não fará uma boa amostragem sobre as aves do local. Há outros fatores que influenciam, como o barulho que você faz ao entrar na floresta, as cores das roupas que você usa e os equipamentos que você tem à mão, por exemplo, gravador e binóculos. De certo modo, alguns fatores são controláveis, mas a chuva é algo que realmente acaba com a brincadeira.

Por outro lado, logo após a chuva passar, especialmente quando o sol aparece, as aves e outros animais se movimentam mais. Isso pode ocorrer no meio da manhã, ou seja, fora do horário que consideramos “ótimo”. E pode ter sido justamente essa conjunção de fatores que intensificou a captura de aves nas redes. Não havia muito tempo para esperarmos a condição climática ideal. Tínhamos que executar o trabalho em dois dias e logo depois navegar até o próximo ponto. Ao chegar em cada local, ouvíamos dos moradores da beira: “Faz tempo que não chove. Essa nuvem parece estar acompanhando vocês”. No total, entre as aves capturadas, vistas e ouvidas, registramos mais de 400 espécies. Bendita nuvem.


A chuva seguida do sol também proporcionou momentos com arco-íris às margens do Rio Madeira. Foto: Bianca Darski

Com a colaboração de:

Bianca Darski-Silva é analista de pesquisa e desenvolvimento em popularização da ciência, tecnologia e inovação do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. É bióloga, mestre em zoologia pelo Museu Paraense Emílio Goeldi e doutora em ecologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É co-fundadora da Rede Conexões Amazônicas e entusiasta de uma ciência colaborativa e inclusiva. Atualmente se dedica a atividades de comunicação e extensão para promoção de uso sustentável dos recursos naturais e igualdade socioambiental na Amazônia.

Sobre o Conexões Amazônicas

O coordenador da ONG Rede Conexões Amazônicas, Ayan Fleischmann, é pesquisador titular do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, sendo mestre e doutor em recursos hídricos. Em sua trajetória tem pesquisado as águas e várzeas amazônicas em suas múltiplas dimensões. É representante da ONG na coluna no Portal Amazônia, onde recebe pesquisadores convidados que contam os bastidores de suas experiências de pesquisa na Amazônia.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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