BR-319: A história e a realidade da rodovia que liga o Amazonas ao Brasil

Foto:Acervo/Leon Furtado

Inaugurada em março de 1976 para atender exigências econômicas, políticas e sociais do governo militar, a BR-319, principal ligação por terra entre Manaus (AM) e Porto Velho (RO), continua em meio a um debate incessante entre os que necessitam da reconstrução da estrada e os que afirmam que uma obra como essa poderia trazer impactos grandiosos para toda a Amazônia Ocidental.

Foto:Acervo/Orlando Holanda

Viajar pelos 877,4 quilômetros de extensão da estrada tornou-se uma grande aventura diante das erosões, lama nos períodos de chuva e poeira nos de seca. Desde o fim da década de 1980, a rodovia não recebe camada asfáltica em sua parte central, mais conhecida como “trecho do meio” (que vai do quilometro 250 ao 655,7), pela falta de licenciamento junto ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O fragmento é o menor entre os rios Purus e Madeira.

Foto:Acervo/Orlando Holanda

Impactos no interflúvio e possível ocupação desordenada

Segundo o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Fearnside, ecólogo que estuda a Amazônia há mais de 40 anos, a diversidade biológica existente nessa área poderia sofrer danos irreparáveis. Além disso, a rodovia daria acesso direto à floresta para imigrantes e integrantes de movimentos de ocupação, que poderiam aumentar o índice de desmatamento na localidade.

“Tem muito mais impacto do que é admitido. Se fala como se fosse uma estrada parque com reservas e sem desmatamento ao lado. Mas o impacto não é isso. Trata-se de levar a migração do ‘arco do desmatamento’, em Rondônia, para a Amazônia Central, que se espalha pelas estradas que já existem”, explicou.

Foto:Acervo/Orlando Holanda

Fearnside ainda ressalta que o distrito agropecuário de Manaus é um campo aberto para invasão onde existem fazendas abandonadas há mais de 30 anos, que seriam facilmente ocupadas por atores de desenvolvimento social.

“Se isso fosse no Mato Grosso ou em Rondônia, já estaria invadido em uma semana. Isso não acontece porque estamos sem essa ‘conexão fácil’ com o ‘arco do desmatamento’. A hora em que abrir para ônibus, aí que muda; é esse o problema, não é o asfalto. O problema é o que vem de lá para cá, não é o que sai daqui para lá”, afirmou o pesquisador.

De acordo com informações do Ibama, em 2017 ocorreram três vistorias na estrada. Já em 2018, foi realizada uma vistoria no mês de janeiro e estava prevista uma segunda em fevereiro com sobrevoo de helicóptero. Entretanto, por razões meteorológicas, a ação foi cancelada e está sendo replanejada.

Dados sobre o desmatamento da localidade, fornecidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), informam que, somente no período de 2015 até 2016, o desmatamento na área da BR-319 aumentou de 9.1 para 17.6 Km².

Agricultura familiar e desenvolvimento sustentável

Observando através de uma perspectiva voltada ao desenvolvimento sustentável nessa localidade, destaca-se a produção agrícola familiar, encontrada com mais frequência na região da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de São Sebastião do Igapó-Açú (Km  250) e na atual Vila de ‘Realidade’ (Km 570).

Além da produção agrícola, no assentamento, é desenvolvida a atividade pesqueira, concentrada na pesca realizada no rio Ipixuna.

Atualmente está sendo construído um tanque para criação e engorda de peixes, que não prevê produção em nível comercial. A criação de bovinos, aves (frangos e patos), carneiros e suínos, é outra atividade no assentamento. Esses animais são destinados para o consumo interno da vila e dos produtores.

As informações são de uma pesquisa desenvolvida pelo geógrafo Thiago Neto, que aponta que a expansão da agricultura com a inserção de possíveis fazendas pode acarretar na perda de recursos da floresta, inclusive a formação de latifúndios pela região. “A agricultura familiar em si preserva parte da floresta. Alguns agricultores plantam suas culturas com a presença de parte dela”.

O pesquisador considera essencial a inserção de um modal para o transporte de carga (caminhões) e transporte de passageiros entre os municípios de Humaitá, Lábrea, Manicoré e Porto Velho (RO). Ademais, o geógrafo ainda ressalta outros pontos considerados positivos com a pavimentação da rodovia.

“A produção rural de ‘Realidade’ (Vila) será escoada para Manaus e ainda a consolidação como ‘polo’ agrícola; os transportes de carga do Polo Industrial de Manaus (PIM) vão poder ter duas opções para o transporte; ocorreria uma relativa geração de empregos em hotéis e postos de combustíveis, motoristas de ônibus, e trabalhadores das obras em pontes e pavimentação. Mas é necessária a presença do Estado com a instalação de postos da Polícia Rodoviária Federal, Ibama, Ipaam, Cma, etc”, finalizou.

A exigência do EIA/RIMA e os projetos de pavimentação

Na década de 1970 a exigência de Estudos de Impactos Ambientais (EIA) eram menos rigorosas que as dos anos posteriores. Através da resolução n°001/86, de 23 de janeiro de 1986, do antigo Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), atual Ibama, tornou-se uma obrigatória a elaboração de um EIA e um Relatório de Impactos ao Meio Ambiente (RIMA) para a construção de rodovias, ferrovias e o desenvolvimento de atividades sociais e econômicas que envolvam o impactos ao meio ambiente.

Foto:Acervo/Orlando Holanda

Em 2008, o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) encaminhou ao Ibama um EIA, que foi devolvido por precisar de complementações. O documento não possuía ‘proposta de governança para área de influência do empreendimento’ nem considerava as ‘Unidades de Conservação de maneira adequada’. Tais ajustes, até hoje, não foram enviados pelo Departamento, de acordo com o Ibama.

A Licença Prévia, que no procedimento ordinário de licenciamento seria a primeira licença do processo, somente pode ser emitida pelo Ibama quando comprovada a viabilidade ambiental do empreendimento. Esta análise só pode ser realizada a partir da entrega e aprovação do EIA.

A BR-319 possui uma Licença de Instalação (LI 1.111/2016) vigente para a manutenção do leito natural (estrada de terra), que autoriza a manutenção da via com atividades como aplicação de britas, nivelamento, recuperação de pontes e etc.

Foto:Acervo/Leon Furtado

O Portal Amazônia entrou em contato com a superintendência do DNIT em Manaus e com a assessoria de comunicação do Ministério dos Transportes. Contudo, até o fechamento desta matéria, não tivemos resposta.

Protagonistas de uma história de altos e baixos

Há quem diga que a rodovia traz um misto de “satisfação e decepção”. Essa é a descrição que o engenheiro Orlando Holanda, que projetou a rodovia em 1967, faz ao contar sobre sua participação no desenvolvimento da via que integraria toda a Amazônia Ocidental.

Foto:Acervo/Orlando Holanda

“É uma satisfação que a gente tenha trabalhado em um projeto em prol da amazônia ocidental com o resto do país. Outro é um sentimento de decepção porque, até hoje, esse projeto iniciado em 1967, com obras iniciadas em 1969, ainda não está em pleno funcionamento. Para mim essas são duas posições que me vem à mente; isso nunca me sai da memória. Nós partimos e participamos de eventos que mudaram a história do Estado”, contou.

Com o surgimento da rodovia, muitas famílias criaram esperança de se desenvolver economicamente nas margens da rodovia, construindo mercadinhos, hotéis e até postos de gasolina.

Nilda Castro, mais conhecida como ‘Dona Mocinha’, é uma das moradoras que tem inúmeras histórias a contar sobre a chamada “rodovia fantasma”. Residente na comunidade de São Sebastião do Igapó Açú, ela ainda possui esperanças de se desenvolver economicamente nas margens da rodovia por não ter perspectivas de migração.

“A nossa expectativa é porque não temos para onde ir. Sair daqui é pior. Até porque ninguém tem emprego e ele tá difícil. É favorável que a gente aqui mesmo na comunidade. Só que nós temos algumas dificuldades. Precisamos da BR, o passo principal é a BR-319 pra nós, além de alguns benefícios como educação, saúde”, contou.

Uma das parteiras da comunidade, Doracy Dias, moradora da localidade há 44 anos, conta que um dos piores períodos para todos foi o de 2003 a 2011, quando ocorreu o ‘isolamento total’.

“A nossa pior situação foi quando fechou essa estrada de uma vez mesmo, quando você não via carro. Não tinha telefone, não tinha nada. Não tinha energia, não tinha nada. Se queria sair era de barco. Essa minha filha quase morria de malária (doença endêmica da região). A gente não sabia o que fazer, mas agora estamos vivendo um momento mágico”, finalizou ao comentar sobre o atual tráfego de ônibus interestaduais.

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