Mais de 120 mil eleitores sofrerão com os impactos diretamente causados pela seca histórica que assola o estado do Amazonas para votar neste dia 6. E pelo menos 15 mil podem precisar do uso de helicópteros para chegar aos locais de votação. A estiagem afeta, em diferentes níveis, 263 locais de votação e 504 seções eleitorais em que as eleições municipais ocorrerão.
O Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas (TRE-AM) definiu um planejamento estratégico para combater os obstáculos causados pelo período de vazantes. De forma antecipada, 78 locais de votação precisaram do uso de helicópteros para o transporte de urnas a locais de votações que populações isoladas possam chegar.
Esses 78 locais de votação atendem, no total, 27.777 eleitores em 136 seções, nas quais estão incluídas 30 áreas indígenas com 55 seções eleitorais, totalizando 12.890 eleitores.
Os helicópteros, que pertencem ao Ministério da Defesa, podem ser usados para levar as urnas ou auxiliar os eleitores, mas o TRE-AM não tem um balanço até o fim das eleições.
O monitoramento foi dividido em quatro níveis:
Normal – não impactados pela vazante
Moderada – com dificuldade para chegar, impacto no tempo de deslocamento
Severa – dificuldade muito grande, eleitores podem precisar de auxílio de transporte
Impeditiva – local pode ficar isolado e necessitar de uso de helicópteros
Confira o número de eleitores em cada situação de acordo com o monitoramento do TRE:
Situação severa: 44.137 eleitores, de 192 seções em 108 locais de votação
Situação moderada: 60.291 eleitores, de 245 seções em 120 locais de votação
Em normalidade: 2.629.959 eleitores de 7868 seções em 1295 locais de votação
E os números podem ser ainda maiores no balanço que será feito após as eleições, já que os níveis dos principais rios amazônicos seguem em ritmo de descida.
Há também os moradores ribeirinhos que passam como invisíveis nos números. Isso porque vivem em áreas isoladas, apesar do local de votação não sofrer com a seca. É o caso do agricultor Marivaldo de Souza Castro. Ele saiu de casa no dia 26 de setembro para chegar a tempo da eleição.
“Preciso sair com antecedência com a família toda porque o rio está muito baixo. Batemos em algumas pedras no caminho, entortou o leme e agora estamos com goteiras em alguns pontos” relatou.
Ele e a família saíram da comunidade de Boa Vista, no Rio Unini, com direção a Barcelos. Um trajeto de aproximadamente 120 quilômetros que, por conta da seca, passou de três dias de duração para sete. Apesar dos riscos pelo caminho, ele acredita que a melhor escolha sempre é ir votar.
“Se não votarmos, não temos como cobrar que olhem a nossa situação. E a gente precisa de ajuda, ainda mais com esse período de seca”, disse o ribeirinho.
Mesmo com 74 anos e sem ter mais a obrigação de votar, a aposentada Maria do Patrocínio reafirma o desejo de mudança.
“Enquanto estiver ruim, vou continuar votando. Até que a situação da nossa comunidade melhore. Tem que ter esperança, né? A gente faz o nosso papel”, disse a aposentada.
*Por Matheus Maciel, Priscila Moraes e Milton Oliveira, Rede Amazônica AM
O Ministério Público Federal (MPF) entrou com recurso em que pede para que se mantenha o julgamento do réu Oseney da Costa Oliveira por júri popular, pelo assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. Para o MPF, Oliveira deve ser julgado por duplo homicídio qualificado. O recurso foi apresentado no iníco do mês de outubro, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).
A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) já havia pedido que o MPF interviesse. A entidade argumentou que se trata de um caso “tão importante e simbólico para o movimento indígena do país” e que, por isso, deveria ser “conduzido de forma correta e ilibada”.
Oseney Oliveira, também conhecido como Dos Santos, é um dos três réus do caso. Os outros réus são seu irmão, Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado, e Jefferson da Silva Lima, apelidado de Pelado da Dinha. Bruno Pereira e Dom Phillips foram executados em 2022, na Terra Indígena Vale do Javari, no oeste do Amazonas.
No dia 17 de setembro, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) analisou um recurso da defesa dos acusados e decidiu manter o julgamento de Amarildo da Costa Oliveira e Jefferson da Silva Lima por júri popular. Porém, entendeu que não havia provas suficientes para confirmar a participação de Oseney da Costa Oliveira no crime, algo que o MPF contesta.
Um dos aspectos que o MPF considera mais consistente e que usa de argumento contra Oseney é o de que, na confissão de Jefferson da Silva Lima, Amarildo chamou o irmão e outros parentes para que capturassem o indigenista e o jornalista britânico. O MPF ainda afirma que “há prova testemunhal colocando Oseney na cena dos crimes, inclusive com detalhes do encontro deste com seu irmão Amarildo no dia e hora dos assassinatos, como o relato de que Amarildo estaria esperando pelo irmão, em sua embarcação, e de que este estava com pressa para encontrar Amarildo”.
Além disso, Oseney é apontado como sendo o responsável pela revelação da localização dos corpos das vítimas. “Por fim, na data dos fatos, ele portava arma, e, em sua casa, que ficava próxima ao local dos crimes, foram encontrados bens das vítimas, tendo servido inclusive de abrigo para Jefferson após o início das diligências policiais”, escreve o órgão em nota.
“O cenário acima revela que, em que pese não tenha realizado o núcleo do tipo homicídio (‘matar alguém’) Oseney provavelmente concorreu, de qualquer modo, para a prática delitiva, seja com sua presença física no locus delicti [local onde o crime foi cometido], seja atendendo convocação do seu irmão Amarildo para matar Dom e Bruno, seja revelando onde os corpos estavam”, conclui o MPF, que ressalta que, embora talvez Oseney não tenha sido tão responsável como seus supostos comparsas, mas que teve envolvimento no crime e deve ser punido de maneira proporcional.
Ainda presos, Amarildo da Costa Oliveira e Jefferson da Silva Lima serão julgados por duplo homicídio qualificado e pela ocultação dos cadáveres das vítimas. Já Oseney aguarda a finalização do julgamento do caso em prisão domiciliar, com monitoramento eletrônico.
Pela primeira vez, o Amazonas recebeu a programação ‘Expo Favela Innovation‘, a maior feira de cultura, inovação e empreendedorismo realizada pelas comunidades do país por meio da Central Única das Favelas (CUFA). Em Manaus, o evento foi realizado no Centro de Convenções Vasco Vasques e chamou a atenção dos manauaras.
O ‘Expo Favela Innovation’ contou com palestras, workshops, exposições, rodadas de negócios, pitches, mentorias, debates, cursos, shows, filmes, desfiles, games, entre outras iniciativas.
“A primeira edição da Expo Favela Innovation é a realização de um sonho, que é ajudar a realizar os sonhos de outras pessoas. Fiquei bastante emocionado, pois pude ver esses empreendedores que desejam ter o protagonismo. Esse foi só o primeiro evento de muitos outros”, destacou o presidente da CUFA Amazonas, Alexey Ribeiro.
De acordo com os organizadores, a ‘Expo Favela’ foi criada para que os empreendedores consigam conexões e possam ampliar o discurso de empoderamento dentro da sociedade. Na programação, o público pode ver de perto exemplos de moradores de comunidades que chegaram a expor seus negócios em outros países.
“A Expo Favela representa o início de um grande sonho da CUFA Amazonas, pois é um projeto de empreendedores onde eles mostram a visibilidade dos seus talentos e a conexão das favelas com o asfalto”, disse a representante do CUFA Amazonas, Fabiana Carioca.
Favela Games
E quem disse que o evento é só sobre empreendedorismo? A primeira edição da Expo Favela no Amazonas deixou uma área para os apaixonados por games. Um dos destaques do foi o jogo de dança Just Dance, que contou até com um campeonato para descobrir quem é o melhor dançarino da cidade.
“Nós do Just Dance MAO, que começamos como uma empresa pequena lutamos bastante para nos colocar no mercado. Então, essa oportunidade foi incrível. A gente pôde conhecer outras empresas, além de levar diversão para os visitantes”, afirmou Phil Rocha, um dos coordenadores do Just Dance MAO.
Segundo estudos publicados pela Embrapa, a evolução da pecuária leiteira e as tentativas de criar um rebanho de bovinocultura leiteira na Amazônia remontam ao final dos anos 1800. Mas esse cenário mudou, houve uma readaptação, principalmente nas dietas e raças que melhor se adaptassem ao clima tropical amazônico.
O Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), visando a alimentação balanceada na bovinocultura leiteira e de corte, levou para uma visita técnica em uma cervejaria no Acre, um grupo de alunos do curso técnico de zootecnia.
O resíduo de cevada, que é obtido pelo processo de fabricação de cerveja, é a alternativa que vem sendo utilizada na dieta de bovinos para produção de leite e corte.
A estudante Isabelle da Silva afirma que este tipo de atividade é importante para criar vivências durante a formação e obter instruções na prática.
“Aqui adquirimos mais conhecimentos. Hoje, por exemplo, aprendemos a como usar os resíduos da cervejaria como alimento para animais e a quantidade de nutrientes. Isso é muito importante para a minha carga de conhecimentos”, comentou Isabelle.
Foto: Reprodução/Amazon Sat
O zootecnólogo e instrutor da turma de curso técnico de zootecnia do Senar Acre, Jalceyr Figueiredo, relata como a alimentação do subproduto ajuda na propriedade do pequeno bovinocultor.
“O subproduto traz muitos aspectos positivos, especialmente para os que exercem a atividade leiteira. Apresenta uma riqueza nutricional que vai refletir no aumento da produção de leite dos animais. Por se tratar de um subproduto da indústria de cervejaria, tem um custo menor que os produtos tradicionais, que são o milho e o farelo de soja”, esclarece o zootecnólogo.
O instrutor frisa também que o fator econômico e ambiental é um aliado para quem pretende adotar esse tipo de alimentação para os animais.
“Além de alimentar suas vacas, se tratando de pecuária leiteira, com dieta de menor custo, terá reflexo em um maior retorno econômico da sua atividade, e você não deixa de lado o aspecto ambiental. A partir da utilização desse subproduto da indústria, você tem a eliminação desse resíduo que seria colocado aí numa forma de tratamento no meio ambiente, você vai otimizar a sustentabilidade ambiental”, comenta Figueiredo.
O Senar Acre informou que 14 alunos participaram do curso. A visita na cervejaria fez parte dos estudos da unidade curricular de Mercado de Nutrição e Alimentação Animal. Os alunos tiveram a oportunidade de conhecer a utilização de resíduos e subprodutos agroindustriais que têm desempenhado um papel importante na agropecuária brasileira, como, por exemplo, na alimentação e nutrição animal.
O reaproveitamento desses subprodutos de cervejarias, pode além de ajudar na dieta do gado, reduzir problemas de poluição e os custos do produtor rural.
Acompanhe mais detalhes sobre a bovinocultura no Programa Amazon Sat Agro:
As mulheres da Terra Indígena (TI) Kraolândia, no estado do Tocantins, mobilizaram-se para criar o grupo de Guerreiras Krahô. O objetivo foi implantar a vigilância indígena feminina no território. A estruturação do grupo foi feita durante o I Encontro de Mulheres para a Defesa Territorial e ‘Andada das Cahãj’, entre 16 a 27 de setembro, com apoio da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O encontro contou ainda com o intercâmbio de indígenas do povo Guajajara das TIs Caru e Arariboia, do estado do Maranhão, para a troca de experiências. As convidadas Guajajara e as anfitriãs Krahô participaram da primeira ‘Andada das Cahãj‘, expedição de vigilância de mulheres pelo território Krahô. Com a expedição, foi possível identificar desafios, os quais foram posteriormente discutidos com as lideranças indígenas e com a Funai para atuação conjunta em defesa do território para as atuais e futuras gerações Krahô.
A Funai participou da mobilização, do planejamento e da realização das atividades, por meio das Coordenações Técnicas Locais (CTLs) Itacajá e Carolina; do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial (Segat) da Coordenação Regional Araguaia-Tocantins (CR-ATO); e da Coordenação-Geral de Monitoramento Territorial (CGMT) da Diretoria de Proteção Territorial (DPT). Houve também parceria com o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) e Awana Digital.
Guerreiras Krahô
A vigilância indígena feminina Krahô partiu de uma demanda das ‘Cahãj’ (mulheres Krahô), de participarem das ações de proteção territorial assim como os homens, que já se organizavam em grupos de vigilância indígena. Com apoio da Funai, elas se mobilizaram e reuniram 13 indígenas que passaram a compor o grupo Guerreiras Krahô.
Foto: Ruth Ihprep Krahô
Para a coordenadora de Prevenção de Ilícitos substituta, da CGMT, Clara Ferrari, o trabalho demonstra a importância e o potencial das iniciativas indígenas em defesa dos territórios.
“É muito gratificante ver um trabalho respeitoso, com muito diálogo e alinhado às demandas, tempos e formas próprias de organização dos Mehî da TI Kraolândia, sobretudo das mulheres, com um olhar ímpar sobre o cuidado com os rios, as nascentes, as matas, as pessoas e todos os seres humanos e não humanos do território”, destacou.
A chefe do Serviço de Gestão Ambiental e Territorial da CR-ATO, Clarisse Raposo, avalia que reconhecer a perspectiva feminina em relação ao território é importante para que as ações de vigilância sejam planejadas e executadas considerando dimensões fundamentais para o modo de vida dos povos indígenas.
“As relações de sustentação mútua postas no cotidiano e a proteção do território são planos que estão intrinsecamente ligados. O envolvimento das mulheres Mehî nas ações de vigilância certamente irá contribuir com esse entendimento integrado”, observa.
Segundo Clarisse, proteger o território é também proteger a aldeia e cuidar das relações que nela se estruturam. “Nesse sentido, o trabalho que começou a se estruturar nesse encontro precisa continuar sendo incentivado, apoiado e fortalecido”, estimula.
Foto: Luzia Cruwakwyj Krahô
Com o reconhecimento das comunidades e lideranças Krahô para atuar na proteção territorial, o grupo de mulheres continuará fazendo expedições de vigilância pelo território. O próximo encontro será no Curso de Capacitação em Vigilância Indígena, a ser realizado pela Funai, por meio da CGMT, CR-ATO e parceiros, ainda este ano.
Vigilância indígena
A vigilância indígena reúne uma diversidade de ações, adaptadas a cada contexto, protagonizadas pelos povos indígenas na prevenção de ilícitos nas terras indígenas. Ações como caminhadas pelo território permitem conhecer melhor os limites, ocupar áreas estratégicas e monitorar ocorrências e, assim, colaborar para a tomada de decisão e estratégias de gestão territorial e ambiental por parte dos próprios indígenas, além de subsidiar outras ações de proteção territorial, como a fiscalização.
As iniciativas de vigilância indígena realizadas na TI Kraolândia, promovidas pelos Mentuwajê (Guardiões da Cultura) e Me Hoprê Catejê (Guerreiros), já possuem um histórico, dinâmica própria, motivação e iniciativa que parte do próprio povo Krahô e de suas lideranças comunitárias, agora fortalecidas também com a presença das Guerreiras Krahô.
Ao longo de mais de uma década, os Mehî (indígenas Krahô) vêm se esforçando para estabelecer parcerias que permitam estruturar, criar rotinas mais estáveis e consolidar essas iniciativas próprias de gestão e proteção da Terra Indígena e seus recursos baseadas nas ‘andadas’ (mêpa môr xà) pelo território (pjê).
De acordo com as próprias lideranças, guardiões e guerreiros Mehî, apesar das dificuldades e descontinuidades enfrentadas no apoio às ações de vigilância indígena, a Funai tem sido um pilar essencial no desenvolvimento dessa iniciativa.
Monte Roraima, na tríplice fronteira do Brasil, Venezuela e Guiana, se originou da história de Macunaíma. Foto: Jorge Macedo/Arquivo pessoal
“No fundo do mato-virgem, nasceu Macunaíma. O herói da nossa gente”.
É assim que Mário de Andrade inicia o romance modernista Macunaíma, de 1928. O poeta sudestino se inspirou nos escritos do antropólogo alemão Theodor Koch-Grunberg sobre o que os indígenas de Roraima lhe contavam do personagem considerado um herói do povo Macuxi.
Ao longo dos anos, Roraima passou a ser chamado localmente como “Terra de Macunaima”. E neste sábado (5), quando o estado completa 36 anos, pesquisadores e estudiosos comentam sobre a literatura indígena para entender a origem da expressão e como a história se entrelaça com a ancestralidade dos povos originários
‘Lugar sagrado’
Na cosmovisão do povo Macuxi, a “Terra de Macunaima” se refere a origem ancestral do espaço que é atualmente o estado de Roraima e é mais do que uma simples história: trata-se de um lugar sagrado. É o que explica o antropólogo e professor doutor do Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena (Insikiran) da Universidade Federal de Roraima, Jonildo Viana.
“Macunaima, curumim cheio de potencial, dotado de magias, de sabedoria, teve como local de nascimento o Monte Roraima. Cresceu, e se tornou um guerreiro, os Macuxi o proclamaram herói de sua etnia. A ‘Terra de Macunaíma’ é um lugar sagrado. Povoa o imaginário sociocultural roraimense”, explicou.
Na avaliação dele, Roraima ser chamado de “Terra de Macunaima” endossa, ainda que inconsciente, a relação histórica que se une aos saberes indígenas.
“Começa-se a ser chamada de Terra de Macunaima desde quando se percebe uma ligação umbilical entre ‘Homem e Natureza’ numa relação de equilíbrio, respeito, ancestralidade e os aspectos míticos, tendo Macunaima enquanto herói”, destaca.
No romance de Mário de Andrade, ele se inspirou, inicialmente, nos relatos de Koch-Grunberg, o explorador alemão responsável por vários registros históricos etnográficos de grupos indígenas e também um dos pioneiros no uso de recursos cinematográficos e fonográficos em pesquisas de campo na Amazônia.
“Ele andou pelo Rio Branco e foi até ao Orinoco [na Venezuela]. Nesse percurso, ouviu muitos indígenas que lhe contavam muitas histórias e lendas que eles acreditavam. Uma delas era desse personagem chamado de Macunaíma. Era um ser sem nenhum pudor, caráter ou personalidade”, conta escritor e autor do livro “Geografia e História de Roraima”, Aimberê Freitas.
Uma pesquisa publicada na revista ‘Rónai’, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que trata sobre estudos clássicos e tradutórios, registrou que a ideia de Mário com o romance de Macunaíma era desconstruir a figura do herói de trazer uma reflexão do Brasil “fazendo com que as múltiplas características nacionais se unissem criando uma identidade para a cultura brasileira.”
‘O filho do Sol’
Segundo o livro “Mitos do Povo Makuxi”, com registros do monge beneditino Dom Alcuíno Meyer, o nome do herói Makunaimî é pronunciado “Macunaíma”, no português. O autor Mário de Andrade adotou a pronúncia “Macunaíma” na sua obra.
E se para o romancista Macunaíma era “filho do medo da noite”, para o povo Makuxi, é “filho do Sol”, o que faria sentido com Roraima, como explica professora de Literatura da UFRR, poeta e editora Makuxi, Sony Ferseck.
“Em histórias que ouvi de alguns anciões da Terra Indígena São Marcos, Makunaímî nasce pelos poderes do Sol. E gosto muito dessa relação, faz todo sentido. Estamos acima da linha do Equador, o único estado a estar acima desta linha. Nosso bioma é o lavrado, a savana que é repleta de plantas resistentes ao sol. Os povos literalmente se vestem de sol com as saias, adornos feitos de fibra de buriti e inajá, ‘pari’, em Makuxi, que quer dizer ‘palha’ e faz parte de ‘parisara’, ou ‘parixara’, a dança da palha”, exemplificou a professora.
Também pesquisadora da UFRR, a professora do curso de Gestão Territorial Indígena do Insikiran Ananda Machado ainda faz um alerta: cada povo indígena ressignifica a figura de Macunaima de acordo com as próprias experiências e tradições. Desse modo, as versões não podem ser chamadas de “lendas”.
“É uma palavra que reduz um pouco o sentido dessas histórias tão poderosas, é um texto potente que atravessa tantos mundos”, explicou.
Um estado, muitas identidades
Roraima não é plural somente em narrativas sobre sua origem. Trazendo para os dias atuais, se o estad entrasse em uma trend no Tiktok, seria naquela das pessoas serem um mosaico daquilo que amam, numa mistura sobre identidade etno-cultural como o dizer popular “Roraima, terra de Macunaima”.
As heranças nordestinas, a ancestralidade indígena e a influência das fronteiras com a Venezuela e a Guiana, tornaram o estado com muitas identidades e culturas, mesmo com o menor número populacional em comparação aos outros 25 estados brasileiros e o Distrito Federal.
Atualmente, Roraima tem 636.707 habitantes, de acordo com o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Neste aniversário do Estado necessitamos refletir sobre quem somos dentro desse mosaico, nos perguntar: qual ou quais as identidades de Roraima? Mas sobretudo, percebermos que vivemos em uma Unidade da Federação, nova, que é habitada pelos povos originários (indígenas), migrantes de todas as regiões do Brasil, migrantes venezuelanos, migrantes haitianos, pessoas oriundas da Guiana, além de pessoas de outros países das Américas e de outros continentes”.
“Dessa maneira, é importante nos conscientizarmos que existe uma multiculturalidade, que precisa ser pensada numa perspectiva intercultural crítica, estabelecendo diálogos possíveis para o bem-viver”, reforça o antropólogo Jonildo Viana.
Uma criança nascida no extremo norte do Brasil, tem vivências que giram em torno de diferentes círculos socioculturais. É chamado de “curumim” ou “cunhatã”, e cresce sabendo que o correto é “do Caburaí ao Chuí”, e não do “Oiapoque ao Chuí”.
E o roraimense também é uma junção de expressões nortistas e locais. Como o “telezé?”, quando indignado. E não é “grande”, é “maceta”. Fora o “portunhol”, uma espécie de idioma praticamente obrigatório fortalecido pela da migração venezuelana – entre tantas outras gírias que são encontradas no estado numa rápida conversa com qualquer roraimense, ou “roraimado”, como são chamados os que se auto naturalizaram.
Nos laboratórios do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), há um lugar informalmente chamado de ‘sala do futuro’. Nesta sala, é simulado um cenário de extremo de mudanças climáticas, conforme as projeções do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, o IPCC: temperaturas cerca de 5 ºC mais quentes daquilo que é medido em tempo real, em Manaus (AM), e maior concentração de CO2 na atmosfera (708 partes por milhão a mais, precisamente). Ali, a bióloga Samara Souza conduziu um experimento com tambaquis, expondo-os, para além dessas condições extenuantes, a uma mistura de agrotóxicos encontrados nas águas das proximidades da capital amazonense.
“Quando se fala em mudanças climáticas, o aumento das temperaturas não é o único elemento em que devemos prestar atenção”, explica Adalberto Val, coordenador do Instituto Nacional de Tecnologia (INCT-Adapta), onde a pesquisa foi conduzida.
“Também devemos avaliar como a temperatura e a concentração de CO2 na atmosfera interagem com outros degradadores ambientais, como é o caso da poluição por agrotóxicos, formando sinergias perigosas”.
Especializada no efeito de contaminantes em peixes amazônicos, Samara já tinha uma compreensão madura de como diferentes agrotóxicos afetam os animais. Combiná-los a um cenário extremo de mudança climática é, para ela, uma maneira de compreender melhor o que ocorre nos habitats e quais desafios os organismos enfrentarão no futuro, na ausência de políticas que lidem com essas questões.
“Porém, é impossível recriar em laboratório tudo que ocorre no ambiente”, pondera Samara. “Podemos pensar inclusive que, no habitat, essas interações e seus efeitos podem ser mais negativos que as encontramos nos experimentos”.
Foto: Rafa Neddermeyer / Agência Brasil
Para o estudo, 36 tambaquis juvenis foram divididos entre um cenário que simula as condições atuais de temperatura e CO2, e o cenário extremo, sendo expostos a esses ambientes por 96 horas. Dos quatro agrotóxicos utilizados, dois (clorpirifós e malathion) são inseticidas, além de um herbicida (atrazina) e um fungicida (carbendazim), em concentrações semelhantes às encontradas nas águas das proximidades de Manaus.
Mesmo em concentrações abaixo do que é considerado letal para os peixes, a mistura dos compostos já traz impactos negativos aos tambaquis, como danos no fígado e efeitos adversos no sistema nervoso, que levam à paralisia e perda de funções. Porém, somado ao cenário climático extremo, alguns desses danos se exacerbam. Em outras palavras, em temperaturas mais altas, os peixes perdem a capacidade de metabolizar e se livrar desses compostos em seu corpo.
Isso se dá porque o aumento da temperatura ambiente de maneira tão aguda exige do peixe ajustes em seu metabolismo. As consequências disso são graves. Por exemplo, a contaminação por inseticidas organofosforados leva à inibição de uma enzima crucial na propagação de impulsos nervosos dos peixes, a acetilcolinesterase (AChE), e de outras enzimas que têm ação antioxidante nas brânquias.
Conforme explica Samara, “em contato com a água contaminada, os peixes que já estavam lidando com a temperatura alta e a maior concentração de CO2 ficam mais suscetíveis aos agrotóxicos por seu metabolismo não ter a resposta apropriada a eles, produzindo efeitos mais nocivos em comparação ao cenário atual de condições climáticas.”
Essa combinação produziu danos irreparáveis no fígado dos animais, além de danos também no DNA de suas células sanguíneas.
“Os resultados demonstram que um futuro de mudanças climáticas combinado com pesticidas será prejudicial para os peixes da Amazônia, potencialmente levando à perda de biodiversidade”, conclui Samara.
Os efeitos de agrotóxicos nos peixes
Atualmente, o Brasil possui cerca de 4.455 agrotóxicos registrados para uso agrícola, segundo dados do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), com usos e formulações diversas, que vão desde a lavoura até a pastagem. Desses, 1.017 são inseticidas organofosforados, a exemplo do clorpirifós e do malathion, utilizados na pesquisa com os tambaquis.
Diversas pesquisas têm se voltado ao efeito dos organofosforados em organismos aquáticos devido ao modo como esses compostos agem. Em insetos, a quem buscam eliminar, esses químicos atrapalham o bom funcionamento do controle do impulso nervoso, inibindo a produção da enzima acetilcolinesterase.
“Isso coloca o sistema nervoso em curto, levando a uma paralisia muscular e à morte dos insetos”, explica Roberto Artoni, biólogo e geneticista da Universidade Federal de São Carlos.
Todavia, o composto não afeta apenas as pestes-alvo. Em contato com corpos d’água, esses organofosforados têm o mesmo efeito em peixes ou em insetos aquáticos. Artoni também é autor de pesquisas que testam esses efeitos em tambaquis, sobretudo de um outro organofosforado muito acessível no mercado, o triclorfon.
“O composto leva o peixe a perder o equilíbrio. Dependendo da concentração, o animal passa a nadar de lado, com uma letargia que o impede de fugir de um predador ou de migrar em seu habitat natural”, explica. “Pouquíssimos peixes voltam quando expostos já a 50% da concentração considerada letal.”
Analisando tecido do fígado de tambaquis, Artoni e sua equipe também averiguaram como o triclorfon leva à morte celular, ativando genes relacionados à formação de tumores.
“Usando o tambaqui como modelo, podemos presumir que, no ambiente, esses compostos também irão prejudicar a saúde de outros peixes, ou mesmo a insetos aquáticos, que fazem parte da cadeia alimentar dos rios. Em última instância, esses agroquímicos podem chegar a humanos, conforme são acumulados nos músculos dos peixes, levando a consequências igualmente relevantes à saúde”, explica Artoni.
Como os agrotóxicos chegam aos rios da Amazônia
Em dezembro de 2019, o ecotoxicologista espanhol Andreu Rico esteve na Amazônia brasileira para avaliar as concentrações de agrotóxicos nos corpos d’água de Manaus, Belém, Santarém e Macapá. Foi a partir da pesquisa de Andreu que Samara estabeleceu o que seriam concentrações realistas dos compostos para utilizar em seus experimentos com tambaquis.
Andreu conduziu uma avaliação da capacidade tóxica desses componentes na Amazônia a partir de dados já existentes sobre a letalidade dos compostos para diferentes espécies. Com isso, foi possível determinar como, próximos a essas cidades, as concentrações encontradas dos inseticidas clorpirifós e malathion são altamente perigosas para a biodiversidade aquática. Ao todo, 11 compostos foram detectados nas águas.
“Porém, usamos como referência espécies que já foram estudadas na literatura, sendo que não havia dados suficientes ainda para avaliar o risco especificamente de espécies amazônicas”, avalia Andreu. “Nos agrotóxicos que nós testamos, não achamos uma diferença significativa na sensibilidade entre peixes da Amazônia em comparação com peixes de outras regiões”.
Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom / Agência Brasil
O crescimento da população urbana na Amazônia gerou um aumento na demanda por comida, que passou a ser atendida por atividades agrícolas de pequeno porte ao redor das regiões metropolitanas. Segundo dados do MapBiomas, a área dedicada à agricultura aos arredores de Manaus saltou de 16 hectares, em 2004, para 197, em 2022.
Um artigo publicado pela The Royal Society of Biological Sciences, em 2013, demonstrou como o cultivo de frutas e vegetais não-nativos é responsável por um aumento do uso de agrotóxicos para combater pestes e competição com outras plantas. Uma vez no solo, os químicos se lixiviam e chegam aos rios com facilidade.
Todavia, os levantamentos sobre uso de pesticidas na região são feitos por universidades e centros de pesquisas, apenas. Atualmente, não há um acompanhamento oficial sobre esse crescimento. A falta de dados disfarça, inclusive, outros usos diversos desses compostos que ocorrem na região sem o devido controle ou fiscalização.
Por exemplo, a professora do Departamento de Parasitologia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Ana Gomes, explica como o triclorfon é utilizado para o combate de parasitas no cultivo de peixes, pela aquicultura da região.
“Como este agroquímico não tem regulamentação para aplicação em animais aquáticos, seu uso na aquicultura é irregular. Também não há iniciativa por parte dos setores do governo da região em monitorar esses produtos na aquicultura”, explica.
Publicações científicas, como as do próprio Roberto Artoni, trazem relatos de piscicultores que expõem seus peixes a banhos de imersão com estes compostos, o que gera os efeitos negativos já mencionados nos próprios animais de cultivo. Os estudos evidenciam que organofosforados em peixes cultivados podem ficar até 15 dias nas vísceras do animal sob tratamento. Além disso, se não houver controle de entrada e saída da água neste cultivo, “a possibilidade desses compostos irem para os rios é muito relevante”, alerta Ana.
Procurada pela reportagem, a Associação Independente de Aquicultores do Estado do Amazonas não reconheceu o uso dos compostos citados na piscicultura do estado. Todavia, não há uma avaliação formal dessa utilização por parte da associação.
Agroquímicos no Brasil e suas alternativas
“O aumento da área agrícola explica apenas em parte o consumo de agroquímicos no Brasil”, defende o biólogo Charles dos Santos. Em 2018, Charles publicou um estudo com o levantamento que colocou o país como o maior consumidor de defensivos agrícolas no mundo, com um crescimento da demanda de 150% em 15 anos.
Foto: Reprodução/Governo de Rondônia
Embora esse acréscimo esteja diretamente relacionado à expansão da fronteira agrícola do país, Charles coloca como outro fator importante nesse aumento o uso inadequado desses compostos. “No temor de perder a produção, há uma tendência para se usar muito mais do que é recomendado, inclusive misturando compostos, para ter essa sensação de maior controle”, aponta Charles.
Todavia, esses agroquímicos tem uma alta persistência e alta mobilidade no meio ambiente. O herbicida atrazina utilizado na pesquisa de Samara, por exemplo, persiste até 100 dias na água antes de se dissolver completamente. Na Europa, a atrazina é banida já há 20 anos, à semelhança do clorpirifós, também proibido. Todavia, o Brasil continua sendo um mercado consumidor desses produtos cuja patentes sequer são nacionais.
Especificamente para a Amazônia, um cenário de mudanças climáticas somado aos efeitos destes compostos se apresenta como uma ameaça à segurança alimentar da região, que encontra nos peixes sua principal fonte de proteínas. Afinal, apenas em Manaus se consome cerca de 400 toneladas de tambaqui por ano. Além de risco à saúde, essa combinação também representaria perdas de produtividade na pesca e na aquicultura da região.
Por outro lado, o Brasil também é um mercado em potencial para alternativas aos agroquímicos. Por exemplo, Charles é um entusiasta do controle biológico nas lavouras, que consiste em introduzir uma espécie que preda a peste em questão até reduzir sua população ou eliminá-la.
“Mas há ainda outras alternativas como rotação de culturas e um manejo integrado de pragas até com drones”, complementa Charles. “As novas gerações de agricultores familiares precisam ter acesso ao que há de mais novo em ciência e tecnologia para reduzir o uso de agrotóxicos e até mesmo reduzir seus custos”.
Já na aquicultura, além da necessidade de haver controle na entrada e saída da água, também estão sendo desenvolvidas pesquisas no âmbito do Inpa e do INCT-Adapta para utilização da tecnologia de bioflocos. Trata-se do uso de microrganismos para a melhoria da qualidade da água nos sistemas de criação, levando a ganhos imunológicos nos animais e, consequentemente, reduzindo o uso de agroquímicos e outros medicamentos.
*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Tiago da Mota e Silva
Cavalos ajudam em fazendas de Roraima. Foto: Ronny Alcântara/Rede Amazônica RR
Olhar o rebanho, conferir se o gado está bem e recolhê-los com segurança. Essa é a rotina diária de um vaqueiro e seu cavalo. Em Mucajaí, Sul de Roraima, Antônio Gomes Silva, vaqueiro, cuida de uma área de 300 hectares e valoriza a parceria com seu fiel companheiro de trabalho.
“Uso cela e cabresto que não machucam. Eu também não uso esporas, só o calcanhar. Depois do trabalho, dou um banho e ração para ele”, conta Antônio.
Além de vaqueiro, Antônio trabalha ao lado de Ronaldo Silveira, veterinário e proprietário da fazenda. Ronaldo destaca a importância de cuidar da saúde dos animais, garantindo descanso adequado e alimentação apropriada. Ele reforça que o manejo inclui fornecer ração após o trabalho como uma recompensa.
Capim, grama, ração e água são essenciais para a dieta dos cavalos. No entanto, Ronaldo alerta para as estiagens, que afetam o fornecimento de capim. Ele recomenda o uso de feno durante períodos de seca como uma boa alternativa.
Segundo a Agência de Defesa Agropecuária de Roraima (Aderr), o estado possui cerca de 10 mil equinos de diversas raças. Eles são fundamentais nas atividades rurais, além de serem usados para reprodução animal.
Na fazenda de Ronaldo, os cavalos Amajari e Pampa ajudam a lidar com o gado e, como destaca o veterinário, o bem-estar deles é uma prioridade.
Ronaldo ainda orienta quem deseja iniciar a criação de cavalos a pesquisar sobre a raça mais adequada para o manejo, além de seguir protocolos vacinais rigorosos. Ele lembra que surtos de doenças, como as encefalites, podem ocorrer devido à falta de vacinação.
“Nos últimos anos, enfrentamos surtos de doenças aqui em Roraima, principalmente pela falta de orientação no manejo dos equinos”, ressalta Ronaldo.
Ele reforça que, além dos cuidados básicos, é essencial observar a dentição dos animais e ter soro antiofídico à disposição em caso de emergências, como ataques de outros bichos ou ferimentos. Com os cuidados adequados, os cavalos se mantêm fortes e produtivos, prontos para o trabalho no campo.
Uma vitória histórica e profundamente simbólica para os povos indígenas da Amazônia e do Brasil foi celebrada em 26 de setembro. A assinatura da portaria que finalmente reconhece a Terra Indígena Sawré Muybu, localizada na bacia do Rio Tapajós, no Pará, entre as cidades de Itaituba e Trairão, é a realização de uma luta de anos.
Com 178.173 hectares, o povo Munduruku assegura a posse permanente de um território que sempre lhes pertenceu, mas que esteve ameaçado pelo garimpo, pela extração ilegal de madeira e por projetos de infraestrutura.
A Terra Indígena Sawré Muybu, além de ser um território rico em biodiversidade, é o coração espiritual e cultural do povo Munduruku. Garantir a proteção dessa terra é assegurar a continuidade de um modo de vida ancestral, que sempre esteve em harmonia com a floresta.
A portaria declaratória é uma das etapas do processo de demarcação de uma Terra Indígena, que define os limites dos territórios quando não há mais disputas administrativas ou judiciais. Ela foi assinada em 25 de setembro pelo Ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, numa cerimônia em Brasília (DF).
Isso não significa, no entanto, que o processo demarcatório está completo – agora é a hora de fixar os marcos físicos e proceder com a retirada de ocupantes de dentro do território. Em seguida, o presidente da República homologa o território e aí sim o rito estará completo.
Autodemarcação
O processo de demarcação da Sawré Muybu teve início em 2007. Mas ele ficou parado durante muito tempo por questões políticas, principalmente pela força econômica que o garimpo tem na região.
Em 2014, o povo Munduruku promoveu a autodemarcação de seu território, realizando incursões por contra própria dentro do território, fixando placas nos limites da Terra Indígena e expulsando invasores. Esse gesto teve grandes implicações políticas e virou referência de incidência no movimento indígena, inspirando diversos povos a fazerem a mesma coisa em seus territórios Brasil afora – num gesto poderoso, corajoso e inspirador de autonomia e independência.
A portaria que demarca Sawré Muybu pode ter repercussões significativas para projetos de grande escala, como a Ferrogrão, um corredor ferroviário estratégico para o governo federal, e a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. O arquivamento do projeto da usina pelo Ibama, em 2016, foi uma grande vitória para os povos indígenas. No entanto, a reativação dos estudos pela Eletrobrás, neste ano, mostra que a luta ainda não acabou. O reconhecimento da terra Munduruku representa, mais do que nunca, um obstáculo para qualquer projeto que ignore os direitos e a autodeterminação dos povos originários.
Força dos pajés
A portaria declaratória da Sawré Muybu é a quarta a ser assinada pelo Ministério da Justiça em 2024. Outros três territórios tiveram os limites declarados no início de setembro, todas na região do Tapajós: Maró, Cobra Grande e Apiaká do Pontal e Isolados.
Em declaração nas redes sociais, a liderança Alessandra Munduruku celebrou a assinatura da portaria declaratória, mas lembrou que seu povo ainda enfrenta diversos problemas.
“Foi uma luta e tanto, de autodemarcações, pressão na Funai, no Ministério da Justiça. Fizemos um movimento de luta e ocupação, de mostrar que o território é nosso. Um governo anterior do PT quis construir uma usina hidrelétrica no território, mas nós batemos o pé e dizemos que ele era nosso e que a usina não ia sair. Fizemos autodemarcações, discutimos protocolos de consulta. Tinha muita polícia e pesquisador em nossa área para pesquisar sobre a hidrelétrica, barramos a entrada de todos eles. Estou grata pelas pessoas que acreditaram na luta do nosso povo, na força dos nossos pajés, que sempre nos disseram pra escutar a floresta e nossos antepassados. Parabéns pra todos nós. Mas a luta ainda não acabou – ainda hoje sofremos, estamos sofrendo com a seca e as queimadas, nossos poços secaram”.
Aliança
Desde que o povo Munduruku abriu as portas de suas aldeias para o Greenpeace Brasil, em 2013, na aldeia Sai Cinza, uma aliança foi selada. A decisão de apoiar a resistência Munduruku contra o avanço da usina de São Luiz do Tapajós foi tomada não apenas pela gravidade ambiental do impacto, mas pelo compromisso ético com a autonomia dos povos da floresta. Ao longo desses anos, muitas batalhas foram travadas, algumas vencidas, outras ainda em curso, mas sempre com a convicção de que essa terra precisava ser protegida.
Para Danicley Aguiar, Campaigner Sênior do Greenpeace Brasil, é gratificante ver o resultado desse longo processo de lutas.
“Hoje é um dia especial para os Munduruku, mas também para todos nós que, durante anos, nos mantivemos firmes na luta por Sawré Muybu. Desde 2013, quando o Greenpeace Brasil aceitou o chamado do povo Munduruku para apoiar essa causa, entendemos que a luta pela floresta e pelos direitos dos povos indígenas é uma só. Foram mais de 4 mil dias de resistência, e essa vitória é também uma conquista dos guerreiros do arco-íris. É um momento de celebração e de reconhecimento da força coletiva que nos trouxe até aqui”, disse.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Greenpeace
Em 2019, o mundo assistiu horrorizado enquanto imagens da Amazônia em chamas inundavam as notícias. Mais de 70 mil incêndios florestais arderam descontroladamente, matando animais selvagens, enchendo hospitais com pacientes lutando para respirar, poluindo rios, interrompendo o tráfego aéreo e lançando uma sombra escura sobre as maiores cidades do Brasil.
E agora, está acontecendo novamente.
Terras devastadas nas margens do Rio Xingu, afetado pela seca, no Território Indígena Capoto-Jarina, em 12 de setembro de 2024. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace
A mudança climática não é mais uma ameaça distante; está aqui, tornando-se mais severa a cada ano. Estamos testemunhando um aumento de eventos climáticos extremos — furacões mais frequentes e intensos, enchentes e secas. O nível do mar está subindo e inundando as costas, ameaçando nações insulares inteiras, bem como grandes cidades americanas como Nova York e minha cidade natal, Nova Orleans. Ondas de calor cada vez piores ameaçam tornar vastas regiões do Oriente Médio e do subcontinente indiano inabitáveis. Refugiados climáticos e secas só podem levar a mais sofrimento humano e a novos conflitos.
Número de focos de incêndio detectados pelo satélite Aqua em biomas brasileiros entre 1º de janeiro e 26 de setembro, de 1998 a 2024, segundo o INPE.Número de focos de calor detectados pelo satélite Aqua na Amazônia brasileira (Amazônia) entre 1º de janeiro e 26 de setembro, de 1998 a 2024, segundo o INPE.
Ironicamente, alguns dos povos mais tradicionais da América do Sul foram dos primeiros a soar o alarme sobre a mudança climática global. No documentário de Alan Ereira de 1990, “Do Coração do Mundo”, o povo Kogi da Sierra Nevada de Santa Marta, no norte da Colômbia, relatou que suas geleiras estavam derretendo, e eles corretamente culparam os excessos da civilização ocidental pelos danos.
Ignoramos seus avisos, e agora a situação só piorou.
Não podemos dizer que não fomos avisados — e não apenas pelos Kogi.
Há cerca de 20 anos, enquanto caminhava por um jardim agrícola indígena em uma das partes mais remotas da Amazônia colombiana, notei que a mandioca — o alimento básico da comunidade — estava morrendo. Perguntei ao cacique, meu amigo e guia, o que havia causado a falha na colheita. Ele balançou a cabeça tristemente e disse: “Cambio de clima” — mudança climática — as chuvas nunca vieram.
Na mesma época, no Suriname, no nordeste da Amazônia, onde conduzi grande parte da minha pesquisa, os sinais estavam se tornando evidentes. Quando visitei pela primeira vez em 1978, as estações seguiam um padrão confiável — duas estações chuvosas e duas estações secas distintas, tão regulares que funcionavam como um relógio meteorológico. Mas, no virar do século, isso começou a mudar. As estações não chegavam ou terminavam como esperado. A estação chuvosa tornou-se ainda mais úmida, levando a enchentes e destruição de colheitas, enquanto a estação seca ficou mais severa, dizimando colheitas. Em um país onde grande parte da população depende da agricultura — sejam agricultores indígenas cultivando safras de subsistência no sul ou industriais surinameses operando grandes plantações de arroz na costa — essas mudanças tiveram impactos devastadores.
Mais uma vez, são as pessoas em sociedades não industrializadas que estão sofrendo as maiores consequências dessas mudanças — mudanças que elas não causaram.
Guia indígena Kichwa na Amazônia. Foto: Rhett A. Butler
As serpentes brasileiras — agora geram bilhões de dólares anualmente, embora nenhum dos lucros seja revertido para a Amazônia — uma situação injusta que não é mais aceitável. No entanto, muito do conhecimento medicinal mantido por xamãs tribais e outros curandeiros herbais mal foi explorado. Pesquisas adicionais poderiam desbloquear ainda mais o valor potencial da Amazônia para a humanidade.
E encontrar novos benefícios medicinais e aplicações úteis para a biodiversidade não se limita a aprender com o brilhantismo dos professores indígenas. Por exemplo, os fungos — um dos grupos de organismos menos estudados na Amazônia — oferecem um potencial extraordinário e inexplorado. Estudos de campo na floresta tropical realizados pelo etnobiólogo Glenn Shepard com seus professores Matsigenka demonstram que a perspicácia indígena sobre a utilidade de alguns fungos supera a dos cientistas ocidentais. E o micologista Paul Stamets e sua equipe estão experimentando com extratos de fungos que mostram grande promessa para evitar o colapso das colônias de abelhas, atacar e destruir pragas de insetos em casa e até prolongar a duração e a profundidade da eficácia das vacinas.
A importância agrícola das plantas amazônicas é igualmente subestimada. Muitas culturas de importância global, como abacates, cacau, pimentas, mandioca, amendoins e abacaxis, ou se originam na Amazônia ou têm parentes selvagens próximos lá. Essas variedades podem oferecer diversidade genética que fortalece as culturas cultivadas, tornando-as mais resistentes a pragas e doenças.
Chuva sobre o rio Amazonas. Foto: Rhett A. Butler
Além de sua biodiversidade, a Amazônia desempenha um papel crucial na regulação do clima global. Pesquisadores da Universidade de Leeds estimam que a Amazônia contém um quinto do carbono terrestre do planeta. Quando essas florestas são destruídas, o carbono é liberado na atmosfera, exacerbando as mudanças climáticas. As florestas tropicais vivas absorvem e armazenam carbono; o desmatamento o libera.
A Amazônia também regula os ciclos da água localmente, regionalmente e globalmente. Ela age tanto como uma esponja quanto como um bico, absorvendo a chuva e depois liberando umidade na atmosfera através da fotossíntese. Cientistas brasileiros estimam que até 80% da umidade amazônica permanece dentro desse ciclo fechado. O desmatamento está interrompendo esse processo, reduzindo as chuvas locais e contribuindo diretamente para as secas — secas que agora estão alimentando os incêndios que consomem a Amazônia.
Foto: Marizilda Cruppe / Greenpeace
As chuvas da Amazônia são cruciais para a agricultura além da região, incluindo os campos de soja do Brasil, conhecidos como cerrado. O desmatamento tem sido associado a secas severas em São Paulo, o coração econômico do Brasil, e pode até estar afetando os padrões de chuva tão longe quanto os Estados Unidos.
Com a guerra tanto na Europa quanto no Oriente Médio, os incêndios na Amazônia não dominaram as manchetes como fizeram em 2019. No entanto, o inferno amazônico pode estar acontecendo em uma escala maior do que há apenas cinco anos. Por um lado, o evento El Niño — que normalmente perturba os padrões climáticos globais — criou condições mais quentes e secas e reduziu as chuvas em grande parte da América do Sul tropical. Mas o próprio desmatamento também reduziu as chuvas, intensificando ainda mais a seca. Ao contrário da situação de 2019, quando Bolsonaro estava no poder, o presidente Lula do Brasil e o presidente Petro da Colômbia assumiram o cargo prometendo uma melhor gestão de suas florestas tropicais nacionais, embora as agendas tenham sido desaceleradas por disputas burocráticas e outros fatores.
Para mim, a razão mais convincente para proteger a Amazônia não é uma utilitária, mas uma ética. Escolhemos verdadeiramente viver em um mundo onde nós — e nossos filhos e netos — somos privados da beleza e da maravilha de criaturas amazônicas como o boto cor-de-rosa ou a borboleta morpho azul-cobalto — ou até mesmo baleias, elefantes e pandas — simplesmente por causa da miopia e ganância humanas?
No Suriname, há um ditado: “A Amazônia guarda respostas para perguntas que ainda não fizemos!”.
Neste momento, algumas dessas respostas estão sendo consumidas pelas chamas.
O autor:
O etnobotânico Mark Plotkin é presidente da Amazon Conservation Team e apresentador do popular podcast “Plants of the Gods”. Atualmente, ele está no nordeste da Amazônia, ajudando a inaugurar o novo Centro para os Guardiões do Conhecimento Ancestral.
*O comentário de responsabilidade de Mark J. Plotkin foi originalmente publicado pela Mongabay