Endêmico das Américas do Sul e Central, o ariá (Goeppertia allouia (Aubl.) Borchs. & S. Suárez), é um tubérculo que lembra uma batata, tem um gosto que remete ao milho e a crocância semelhante à da cenoura. Consumido por povos amazônicos há mais de 9 mil anos, seu elevado valor nutricional é indiscutível, afinal, é um dos alimentos que pode fornecer os nove aminoácidos essenciais que o corpo humano é incapaz de sintetizar. Mas, nas últimas décadas, esse produto amazônico perdeu espaço para culturas comerciais e produtos industrializados e se tornou um produto raro nas roças, feiras e mesas dos amazonenses.
Todos esses benefícios, aliados à alta capacidade de adaptação a adversidades climáticas, fazem do ariá uma alternativa de alimento nos períodos de seca na Amazônia, uma vez que é quando acontece a colheita do tubérculo ocorre entre julho a setembro.
Inspirados pelo potencial do ariá e pelas memórias afetivas despertadas durante uma pesquisa que mergulhou na cultura alimentar em torno desse tubérculo, um grupo de pesquisadores indígenas e não indígenas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) está reunindo informações científicas e narrativas culturais para que o amazônida ‘redescubra’ o ariá, resgatando sua importância científica, cultural e econômica.
Um dos objetivos do projeto ‘Diálogos científicos multiculturais sobre a sociobiodiversidade na Amazônia com potencial bioeconômico’ é promover a ressignificação do ariá e estimular o consumo e a produção desse tubérculo amazônico.
A bióloga, Mestre em Microbiologia Agrícola e Doutora em Recursos Naturais Noemia Ishikawa, que coordena o projeto, explica que a gastronomia pode ser o caminho para essa ressignificação, já que, além de altamente nutritivo e resistente às mudanças climáticas, o ariá é muito apreciado por seu sabor diferenciado e pelas opções de preparo, seja simples e prático ao nível doméstico ou em pratos sofisticados da alta gastronomia.
“Isso vai permitir que as pessoas despertem ao potencial alimentício do ariá e seus benefícios, fomentando essa cadeia que começa nos pequenos produtores”.
A importância do ariá para a cultura alimentar amazônica foi reconhecida pelo Inpa, que escolheu uma exsicata (amostra de planta seca e prensada) do ariá, coletada pela bióloga Marly Castro Lima, como símbolo da coleta de número 300 mil, um marco na história do Herbário Inpa, que completou 70 anos em 2024.
Ao longo de milhares de centenas de gerações, as populações tradicionais manejaram, selecionaram e melhoraram as variedades de ariá. O banco de germoplasma da Estação Experimental de Hortaliças do Inpa guarda uma amostra dessa variabilidade.
“É um backup, uma cópia de segurança que guardamos para tentar evitar o desaparecimento da espécie. É o que nos permite devolver o material para um grupo que deseja resgatar esse elemento da agrobiodiversidade, como é o caso do ariá”, explicou o diretor do Inpa, Henrique Pereira.
Segundo ele, a coleção de material genético do Inpa, aliada ao resgate do plantio de culturas tradicionais como o ariá, podem contribuir para o desenvolvimento de plantas mais adaptadas às mudanças climáticas.
“Para adaptar uma planta para ser resistente a doenças ou temperaturas mais elevadas, a matéria prima é ter variabilidade genética. O problema é que o mercado e a agricultura moderna produzem uma redução de diversidade genética: nossa dieta é mais pobre do que já foi. Essas coleções são uma segurança de que essa diversidade não se perderá por completo”, explicou.
Potencial nutritivo e culinário
Assim como peixes, carnes, ovos, cogumelos e a tradicional mistura de arroz e feijão, o ariá está entre os alimentos que fornecem os nove aminoácidos essenciais para uma boa nutrição. O tubérculo é classificado como fonte vegetal de proteína de alto valor biológico, daí sua importância histórica para os povos amazônicos: contém de minerais como ferro, potássio, magnésio, zinco, sódio, cálcio, manganês e fósforo, até vitaminas como a tiamina (vitamina B1), riboflavina (vitamina B2), niacina (vitamina B3) e ácido ascórbico (vitamina C).
Na culinária, o ariá é marcante por sua crocância e pela textura e, no cozimento do tubérculo, não há necessidade de acrescentar sal, sendo considerado um ‘sal vegetal’ pelos povos do Alto Rio Negro. O ariá pode ser consumido assado, em mingaus, na fabricação de bebidas, como o caxiri, ou em seu formato mais comum que é cozido.
Para comunidades indígenas, é uma alternativa, também, aos alimentos industrializados e processados, que invadiram a rotina alimentar nas aldeias nos últimos anos.
“A gente já vê uma grande mudança no perfil de saúde dos parentes. Hoje temos pessoas diabéticas, com hipertensão e outras doenças por causa da má alimentação. O resgate do cultivo de culturas como o ariá pode ser o pontapé inicial para a reconstrução de uma estrutura alimentar mais saudável”, afirmou o biólogo Alexandre Tyson Ferreira de Souza, um dos pesquisadores que integra o projeto, e que lidera uma iniciativa para reintroduzir o ariá na cultura alimentar de indígenas Sateré-Mawé da aldeia Nova União, na TI Andirá-Marau, no Amazonas.
Geração de renda: no mercado e nas comunidades tradicionais
Ressignificar a produção e o consumo desse tubérculo amazônico também é uma estratégia para incrementar a geração de renda das comunidades tradicionais durante a seca. No Alto Rio Negro, o ariá é uma das apostas de indígenas dos povos Bará, Tuyuka e Tukano para se tornar uma nova fonte de renda: eles estão desenvolvendo o caxiri (bebida indígena fermentada) de ariá.
“Isso amplia as nossas possibilidades e nos permite agregar valor a um alimento que era só para subsistência. O projeto nos ajudou a enxergar essas oportunidades de negócios sustentáveis.”, disse Silvio Sanches Barreto, filósofo, mestre e doutor em Antropologia. Pesquisador e indígena do povo Bará, ele agora busca inserir o produto no mercado.
Estudante de 17 anos se inspira na avó para sugerir a pesquisa
A ideia de ressignificar o ariá surgiu da curiosidade de um jovem de 17 anos e da memória afetiva da avó dele. Estudante do ensino médio, Eli Minev-Benzecry propôs o tema após transformar, sob a orientação do professor Valdely Kinupp, do Instituto Federal do Amazonas (IFAM), um campo de futebol em desuso em um Sistema Agroflorestal, tendo o ariá como uma das espécies cultivadas.
“Essa ideia surgiu de um projeto que iniciamos no nosso sítio. Minha avó falou: ‘planta ariá, que eu gosto muito’. Eu nem sabia o que era, mas plantamos e eu fiquei curioso em saber mais sobre aquela ‘batatinha’, que era tão comum no passado, e hoje é tão difícil de encontrar. À medida que fomos pesquisando, as evidências arqueológicas, registros históricos e o valor nutricional revelaram um potencial enorme de um alimento para o qual as pessoas não dão muita atenção”, contou Eli, que pretende cursar Bioengenharia e Economia.
Um dos caminhos escolhidos para a popularização do ariá foi a elaboração de um livro de popularização da ciência com curiosidades, informações científicas e históricas e memórias afetivas em torno deste tubérculo amazônico, resgatando sua importância cultural.
“O livro destaca a parte nutricional, a questão cultural e as tradições que envolvem o ariá, com a intenção de transformá-lo, novamente, em um alimento da mesa do dia a dia”, disse Eli, primeiro autor do livro. Com a participação do Silvio Bará, o livro traz conteúdos da região do Alto Rio Negro e será publicado em língua portuguesa e na língua Ye’pâ-masâ (Tukano).
Ariá no Herbário Inpa
O ariá é um dos 300.000 espécimes que fazem do Herbário INPA, o quinto maior do país e o maior acervo de coletas da Amazônia brasileira. O primeiro exemplar de G. allouia inserido no Herbário INPA, que recebeu o registro número 2696, foi uma doação do Museu Paraense Emilio Goeldi, no Pará.
A espécime foi coletada no dia 13 de janeiro de 1952, pelo taxonomista botânico e fitogeográfico João Murça Pires, um dos orientados do botânico austríaco Adolpho Ducke.
Consumido há mais de 9 mil anos
Segundo evidências arqueológicas, o ariá é consumido nas Américas há mais de nove mil anos. Ele é descrito como alimento tradicional dos povos originários desde os primeiros registros europeus, quando, durante a colonização do Caribe, em 1535, o capitão Gonzalo Fernandes de Oviedo y Valdes relatou que o tubérculo, abundante nas ilhas e terras firmes da região, tinha um sabor incomparável.