Entenda o que foram os cacicados amazônicos

Diferentes formas de organização do passado deram origem aos ‘cacicados’ e pesquisadores discutem sobre os possíveis cacicados encontrados na Amazônia.

A arqueologia amazônica busca entender as formas das mudanças e permanências do modo de vida dos grupos humanos que ocuparam ao longo do tempo o território Amazônico. O conceito de ‘cacicado’, que alcançou tanto destaque nas últimas três décadas, já foi associado com a América do Sul, inclusive a Amazônia, estando dentro do que se refere à arqueologia amazônica.

Mas o que foram esses cacicados e como surgiram? O Portal Amazônia conversou com o professor de arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e doutor com especialização em arqueologia amazônica, Claide Moraes, que explicou sobre o assunto. 

Origem histórica do termo ‘cacicado’

Segundo Claide Moraes, o termo ‘cacicado’ surgiu no contexto do encontro de espanhóis com americanos, especificamente com os indígenas americanos na região do Caribe, principalmente, na época das expedições dos espanhóis. 

“Naquela época, os cronistas que narraram essas viagens, tentaram descrever e apresentar para a Europa, qual era o contexto dessas populações que estavam encontrando, sempre em uma tentativa de comparar o que era um sistema americano de administração pública e governo com o sistema europeu. Então o cacique, a figura do chefe, o cacicado, foi descrita, como uma figura equivalente a um rei europeu da mesma época, alguém que comandava uma região, só que com uma visão de superioridade europeia, no contexto da colonização”, 

explicou o arqueólogo.

Sendo assim, uma das justificativas do colonialismo é a ideia de superioridade civilizatória dos europeus.

“É como se a classificação do cacique (cacicado) fosse algo para tentar explicar para o europeu que é algo próximo a um estágio inferior a um reinado europeu daquela época, mesmo estando a um passo atrás. Mas comparando com outras sociedades que foram consideradas tribais, os cacicados seriam o mais próximo de uma sociedade europeia que se podia esperar nessas outras sociedades que eles estavam tendo contato. É uma ideia de dizer que eles são mais sofisticados, do ponto de vista político e administrativo, do que sociedades tribais, eles são menos igualitários, tem diferenças de classe, tem poderes distintos entre essas sociedades”, completou o professor.

De acordo com o especialista, existe descrição de vários desses cacicados caribenhos. Um dos famosos descritos pelos espanhóis, por exemplo, é o dos chefes tainos (etnia Taino) do Caribe, que tiveram contato com alguns desses chefes (cacicados). Eles explicaram que eram chefes maiores de aldeias além das próprias aldeias.

“Ou seja, cacicado é um chefe ou um sistema de chefia cujo poder vai além da própria aldeia em que vive”,

definiu Claide Moraes.

Foto: Reprodução/Arquivo/Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Cacicados na Amazônia

Com o avanço das pesquisas arqueológicas na Amazônia, os arqueólogos identificaram sítios com estruturas de produção de cerâmica, construções de aldeias, em áreas muito maiores do que as aldeias indígenas que são documentadas atualmente ou que foram documentadas nesses contatos dos europeus com os indígenas.

Por consequência, alguns arqueólogos levantaram a possibilidade de que isso seria o exemplo de sociedades antigas que tinham experimentado uma estratégia de administração política diferente dessas sociedades ditas mais igualitárias.

O especialista explica que, com base nessas comparações com outros lugares, surge a ideia de que esses poderiam ser os equivalentes arqueológicos do que foi descrito na América Central como ‘cacicados’, logo essa seria a ideia de cacicados amazônicos.

“Os primeiros cacicados amazônicos surgiram na ilha de Marajó [no Pará], como as pessoas que construíram os aterros artificiais em Santarém, os grupos considerados tapajônicos que fizeram aldeias muito grandes, e nas proximidades de Manaus [no Amazonas], algumas ocupações por volta do ano 1.000 que estão relacionadas com a fase da arqueologia que é classificada como fase paredão, onde tem a presença de grandes aldeias, principalmente nos anos 80 e 90”,

afirmou Claide. 

De acordo com o professor, em relação as ideias de que essas formas mais complexas de administração política não haviam existido na Amazônia, vários arqueólogos apresentam esses casos como exemplos de cacicados amazônicos.

Por que o termo ‘cacicado’ está em desuso?

A raiz do desuso do termo ‘cacicado’ está muito ligada à ideia de que os estágios pelos quais a sociedade europeia passou (reinado europeu) são muito diferentes aos da América.

“Uma sociedade europeia mais descrita como indivíduos que lá no paleolítico superior viviam de caça e coleta, ocupavam abrigos naturais, construíram pequenos acampamentos e passaram milhares de anos nesses grupos caçadores pequenos, mas logo depois começam a se estruturar em aldeias. As pessoas começam a viver de forma fixa, como uma revolução neolítica, quando as pessoas passam de caçadoras a agricultoras, dando origem aos feudos e reinos, a sociedade europeia como é conhecida atualmente”, explica Claide.

Ainda segundo o especialista, não é somente sobre a história da Europa, mas do mundo, como conta a história da trajetória humana, em que a humanidade passou por um período que viviam de caça e coleta, depois aconteceu a revolução neolítica, chegando a agricultura e logo depois surgiram as sociedades urbanas.

No entanto, apesar do termo ‘cacicado’ ser bastante utilizado nesse contexto, o conceito vem sofrendo duras críticas no que se refere à tentativa europeia de explicar de uma única forma, uma vez que esse sistema acontece de forma diferente nos diversos lugares do mundo.

“Não é possível apenas encaixar as sociedades americanas nessa mesma trajetória. Por ser considerada uma sociedade inca estatal observada por aqui, não chega ao nível de um reinado europeu, apesar de ter construções de pedra, templos, administração política, pode até ter alguns paralelos, mas não é considerada um trajetória comum semelhante às sociedades europeias”,

afirma Claide Moraes.

Vale ressaltar que essas diferentes mudanças que aconteceram nas sociedades não necessariamente evoluíram do pior para o melhor. O pesquisador citou o antropólogo francês, Pierre Clastres, que trabalhou nas Américas, e que nos anos 80 e 90, teve seus trabalhos bastante conhecidos nas discussões sobre povos indígenas. 

Segundo ele, Pierre fez uma proposta que ao invés de serem sociedades americanas que não possuíam estado, que não chegaram ao patamar desenvolvimentista e administrativo do estado, essas sociedades desenvolveram mecanismos contra o estado. É a ideia de que as sociedades americanas não estavam em um estágio pré-estado (referindo-se aos cacicados e as sociedades igualitárias).

“A ideia da hipótese de Pierre era que na verdade a trajetória de desenvolvimento dessas sociedades era contra o estado, sociedades que desenvolvem mecanismos para inibir o poder centralizador das pessoas. Então, com essas críticas e essa ideia evolutiva, a arqueologia começou a analisar qual seria a validade de usar esses termos classificatórios de estágios evolutivos, com os pensamentos críticos de que os desenvolvimentos das sociedades não são comparáveis ou compatíveis com o que é descrito nas sociedades urbanas europeias A gente prefere pensar que são trajetórias diferentes. Uma sociedade amazônica jamais chegaria em um estado equivalente a uma sociedade europeia, mas pode-se dizer que pode ser algo paralelo distinto. Talvez tivessem outros sistemas políticos diferentes do rei que tentam comparar, mas que não necessariamente isso é um estado semelhante às sociedades europeias”, concluiu. 

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