Após a retirada da mesa de negociação, Edinho Macuxi, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), falou das violências sofridas pelo movimento indígena. Foto: Adriano Machado/Greenpeace
Nesta quarta-feira (28), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) tomou uma decisão firme e histórica: se retirou da mesa de negociação convocada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir e “conciliar” diversas questões relativas ao Marco Temporal.
A decisão foi tomada de maneira coletiva, por lideranças de todo o território nacional, que enxergaram na convocação da Suprema Corte mais um gesto de violência do Estado brasileiro contra os povos originários do Brasil. A reunião de conciliação foi feita sem consulta anterior, sem regras claras e com representação minoritária dos povos indígenas – das 24 cadeiras na mesa, apenas 6 eram dedicadas ao movimento indígena (originalmente, era apenas uma).
Além disso, foram convocadas para esta conversa instituições como a Confederação Nacional dos Municípios (CNM) e o Fórum dos Governadores – organizações que, segundo o movimento indígena, não tem porquê se fazer presentes em discussões envolvendo os direitos dos povos originários.
Racismo e violências
A primeira reunião dessa mesa ocorreu no dia 05 de agosto – e, desde o início, diversos episódios incomodaram as lideranças indígenas. Representantes foram impedidos de entrar no anexo do Supremo Tribunal Federal, as falas dos indígenas foram constantemente interrompidas, e os juízes conciliadores tiveram discursos inadequados para com o movimento.
Um ponto especialmente preocupante foi a sugestão de que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) representasse as lideranças durante a negociação, caso a Apib decidisse se retirar. Essa proposta remete à doutrina da tutela do Estado sob os povos originários, uma ideia ultrapassada que, juridicamente, foi extinta na promulgação da Constituição em 1988. Isso enfureceu o movimento indígena. Ao final das seis horas de conversa, as lideranças saíram denunciando o racismo institucional e relatando violências simbólicas sofridas durante a conciliação.
A segunda reunião ocorreu ontem, 28 de agosto. A saída da mesa se deu com a divulgação de uma carta, lida no plenário por Maria Baré, Coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam). No documento, a Apib – que representa o movimento indígena em âmbito nacional – denunciou o ambiente de opressão enfrentado durante a primeira reunião, descrevendo-o como “um ambiente aflitivo” e que “ os apontamentos realizados durante a primeira audiência de conciliação foram violentos e opressivos”.
A Apib também expressou sua insatisfação com a falta de clareza sobre os reais objetivos da conciliação. “Não havia nitidez sobre o que se estaria a conciliar, quais seriam os pontos em discussão e o que poderia ser concretamente alterado no sistema de proteção dos direitos indígenas”. Além disso, a entidade criticou as visões ultrapassadas e inadequadas sobre a garantia dos direitos indígenas.
Após a retirada da mesa de negociação, Edinho Macuxi, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), falou das violências sofridas pelo movimento indígena © Adriano Machado/Greenpeace
Mesa de imposição
“A gente não enxerga essa mesa de conciliação como uma coisa jurídica. A gente enxerga uma sessão coordenada vinda de pressão política, de pressão econômica, neoliberalista, neocolonial, que continua com o desejo de a qualquer preço e a qualquer custo, explorar e dizimar os povos indígenas. Nosso sentimento, ao sair dessa mesa, é de alívio. A gente não vai compactuar com esse tipo de negociação”, disse Maria Baré.
Paulo Macuxi, liderança da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), contou que os representantes indígenas estão muito indignados e revoltados. “É inadmissível o que aconteceu aqui. A gente não considerou isso uma mesa de negociação. Foi uma mesa de imposição, de retaliação de nossos direitos. A partir do momento em que se fala que a mesa continua sem a nossa presença, não há dúvida de para quê ela serve”, declarou.
A saída da mesa de negociação vinha sendo discutida desde a reunião do dia 05, mas amadureceu ao longo de diversos encontros e conversas realizadas nas últimas duas semanas. Na madrugada do dia 28, foi finalizada a carta que sintetiza o sentimento e a posição oficial do movimento indígena brasileiro em relação a esse processo.
E agora?
Mesmo com a saída da Apib da mesa de negociação, o processo vai continuar ocorrendo. Segundo o despacho de junho do Ministro Gilmar Mendes, a mesa de negociação deve funcionar até o dia 18 de dezembro. Já existe a sinalização de novas reuniões em setembro. No entanto, após a saída da Apib, existem muitas dúvidas sobre a continuidade e legitimidade desse processo.
Uma das condições estabelecidas pela Apib para continuar participando da mesa de conciliação foi a suspensão da Lei 14.701. Promulgada em 2023, essa Lei restabeleceu o Marco Temporal em nosso ordenamento jurídico e colocou diversas dificuldades para a demarcação de territórios indígenas. O Ministério da Justiça já admitiu que diversos processos demarcatórios estão paralisados por conta dessa Lei. Embora um pedido de inconstitucionalidade tenha sido apresentado ao STF, ainda não houve resposta. Sem a derrubada da Lei 14.701, os territórios continuarão vulneráveis diante dos interesses ruralistas e do agronegócio, que permanecem na ofensiva contra os territórios originários.
Além disso, os territórios indígenas continuam a sofrer diversos tipos de ataques, incluindo invasões de garimpeiros, madeireiros, fazendeiros e jagunços. Recentemente, a situação se agravou com o uso criminoso do fogo, que espalhou fumaça por quase todo o país. Não podemos compactuar com essa situação! Para construir o futuro ecológico e inclusivo que queremos, é preciso proteger os territórios indígenas – que possibilitam a sobrevivência dos povos originários, protegem nossos ecossistemas e biodiversidade e ajudam na mitigação dos efeitos da crise climática.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Greenpeace Brasil