“Toda arte é uma forma de resistência e fortalecimento”: indígena tikuna produz bonecas que retratam seu povo

Marcada pela diversidade de elementos culturais, a cultura indígena mantém sua identidade através da arte e as bonecas de pano agora também fazem parte dessa expressão.

“A onça que nada para o outro lado do rio”. Este é o significado do nome de We’e’ena Tikuna, que nasceu na terra indígena Umariaçu no Alto Solimões, localizada no Amazonas. We’e’ena é responsável pela criação da primeira coleção de roupas feitas por uma nativa indígena.

E há cerca de três anos, a indígena produz bonecas manualmente com materiais extraídos da natureza. Bonecas que possuem traços da etnia tikuna e utilizam roupas de sua própria coleção.

O Portal Amazônia conversou com We’e’ena sobre como as bonecas tem representado a cultura indígena amazônica.

Conexão com a arte

Pinturas, grafismos, artesanato, cerâmicas e arte em geral. A cultura indígena é marcada pela diversidade de elementos artísticos cuja técnica é repassada de geração a geração. A pluralidade somada à técnica fazem com que os povos indígenas possuam uma conexão intensa com a arte.

We’e’ena Tikuna. Foto: Reprodução/Instagram-weena_tikuna

We’e’ena recebeu a equipe do Portal Amazônia com um simpático ‘Numaé’, uma forma de saudação em sua língua nativa.

Ela começa contando que início dos anos 2000, morava em Manaus, no Amazonas, quando recebeu uma bolsa para estudar artes plásticas no Instituto Dirson Costa de Arte e Cultura da Amazônia. Após se formar, foi para São Paulo, onde aprimorou sua técnica. “Eu comecei a fazer minhas próprias pinturas indígenas como uma forma de fortalecimento e também para mostrar a riqueza do meu povo para as pessoas que não conhecem a nossa história”, relembra.

Antes de confeccionar as bonecas, We’e’ena produzia peças de roupas apenas para uso pessoal. Com o passar do tempo, passou a fazer sob encomenda visando o consumo consciente. Quando produziu as peças para o primeiro desfile do Brasil Eco Fashion Week, em 2019, surgiu o desejo de que todos conhecessem seu trabalho. 

“Desde aquele dia nasceu um desejo de oferecer para todo mundo as minhas peças. Eu via que todo mundo tinha desejo, achava bonito as minhas peças porque elas têm a nossa identidade originária”,

comentou.

We’e’ena é a primeira indígena a criar a própria coleção de roupas. Foto: Divulgação

Bonecas tikunas 

Nesse contexto, as bonecas surgiram como uma forma educativa e lúdica para que pais e mães ensinassem seus filhos. Para a indígena, as bonecas contribuem para quebrar o preconceito e a discriminação e para que todos tenham conhecimento acerca dos povos indígenas. 

“Quando um pai, uma mãe, um irmão adquire uma boneca, ele não está levando apenas um pedaço de pano, está levando nossa história de luta, de resistência”,

ressaltou We’e’ena.

Artista indígena busca representatividade através de confecção de bonecas. Foto: We’e’ena/Instagram/Reprodução

Ela acrescenta que a infância é o momento em que as crianças aprendem sobre suas origens e que a escola possui um papel fundamental no ensino e consolidação do respeito às diferentes culturas.

“Se tivesse essa orientação na escola não haveria tanto preconceito, as crianças iam crescer aceitando a diversidade, respeitando que uma pessoa tem uma pele negra, indígena. Porque o Brasil é essa miscigenação de cores”,

afirma We’e’ena.

Representatividade 

Atualmente, é possível encontrar em lojas de brinquedos diversas bonecas que representam classes e grupos sociais. Médicas, engenheiras, advogadas, professoras e até astronautas são alguns grupos profissionais constantemente representados através de brinquedos e interações lúdicas.

Contudo, como ressalta We’e’ena, a mesma representatividade não é encontrada quando se trata de bonecas indígenas, “Eu via que nas lojas a gente não tinha identidade como indígena, a gente não tinha uma referência. Se você entra em uma loja de boneca, você não vê uma boneca indígena, não tem, não existe”, destaca.

Além do fato de ser feita por e representar os povos indígenas tikunas, as bonecas produzidas por We’e’ena possuem traços específicos e característicos daquele povo, como um fio pintado que passa pelo rosto. 

Foto: We’e’ena/Acervo pessoal

Produção

No início, somente We’e’ena confeccionava as bonecas. Com o passar do tempo, constituiu-se uma rede de apoio de pessoas próximas que a auxiliam. As bonecas são produzidas e costuradas à mão, desde os cabelos até o corpo como um todo.

Os materiais utilizados são insumos naturais, por exemplo, o preto e o vermelho utilizados nos grafismos são do jenipapo e do urucum, respectivamente. Além destas frutas, a artista utiliza o algodão cru e o tururi, fibra natural e vegetal, bastante resistente e flexível.

Leia também: Ancestralidade indígena: conheça as diversas utilidades do urucum

Com uma perspectiva de consumo consciente, We’e’na deixa encomendas em aberto apenas em três meses do ano: abril, outubro [dia das crianças] e dezembro.

Logo de cara, como recorda a empreendedora nativa, as pessoas ficaram impressionadas. Por carregar uma história de luta dos povos, as bonecas logo ganharam visibilidade nas redes de We’e’ena e se popularizaram. Grande parte do seu público são mulheres idosas.

Urucum é um dos insumos utilizados na produção de bonecas. Foto: Divulgação/Cruda

“Toda arte é uma forma de resistência” 

 A afirmação é da artista. Ela assegura que é por meio da arte que tem conseguido mostrar a importância da causa indígena no Brasil. “Tanto as minhas roupas quanto a minha coleção de bonecas são uma transformação, é uma resposta de resistência, de fortalecimento. Se nós indígenas não cuidarmos da nossa cultura, da nossa arte, dos nossos grafismos daqui a pouco a gente acaba perdendo a nossa essência e quando se perde uma história não tem como inventar”, justifica.

We’e’ena acrescenta ainda que a sua arte também pode ser uma forma de se conectar com a sociedade de maneira em geral e que essa união é uma via de mão dupla, não apenas uma relação unilateral.

“Nós estamos há 522 anos esperando essa união. Hoje a gente ‘tá’ mais próximo da civilização porque a gente aprende a língua do homem branco. Até os meus 12 anos eu não falava essa língua. Eu tive que aprender a língua do homem branco pra poder falar com vocês hoje”, 

releva.

Orgulho

Ao analisar sua trajetória e os frutos que vieram das bonecas, We’e’ena se mostra feliz e orgulhosa do espaço que as etnias indígenas têm ganhado na sociedade, apesar de ser preciso avançar bastante ainda.

“Hoje existem indígenas advogados, na política, empreendedores e eu me sinto honrada em poder fazer parte disso. Entrar em um lugar e as pessoas conhecerem nosso trabalho e é muito importante a gente ter esse apoio da sociedade”,

finalizou.

Confira mais alguns dos trabalhos da artista: 

Fotos: We’e’ena/Acervo pessoal 


Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Após 12 anos, Yanomami fazem encontro sagrado de xamãs

Encontro reuniu mais de 500 indígenas de 18 regiões de Roraima e Amazonas na comunidade Yakeplaopi, em Palimiu, em Alto Alegre, atacada por garimpeiros em 2021.

Leia também

Publicidade